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Digressões sobre os direitos disponíveis, os crimes patrimoniais e a ação penal de iniciativa pública

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30/10/2009 às 00:00
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Introdução

(8º mandamento)

Vivemos em sociedade, na latência de conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas. Valemo-nos, necessariamente, de um arcabouço normativo que procura ordenar nossos atos e comportamentos, impondo-nos deveres e direitos, sempre com a finalidade de podermos conviver pacificamente de forma coletiva e organizada.

O Estado como fonte do nosso ordenamento tornou-se quase onipresente, traduzindo o significado da nossa diversidade social e cultural, o que é destacado pelo desenvolvimento multilateral das relações nacionais e internacionais, decorrendo uma profusão de preceitos. Por outro lado, não se torna incomum o aparecimento de normas que guardam aparente contradição, ao menos no mundo dos efeitos, embora o ordenamento jurídico constitua "um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis." [01]

A nossa organização nos impõe gradação de direitos, isto é, de normas dotadas de status diferenciados, que auxiliam os argumentos hermenêuticos, inclusive com aparato constitucional. Nessa microsociedade normativa temos que conviver com todas as espécies de comando, o que nem sempre revela uma uniformidade, exigindo-se a compreensão e a superação de inúmeros dogmas para o devido ajuste de convivência social.

Embora a Constituição Federal garanta o direito de propriedade (art. 5º, XXII), bem como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), a lei penal tipifica inúmeros crimes e decide, de forma discricionária, a iniciativa da ação penal, o que pode constituir, em determinadas situações em uma afronta aos direitos da própria vítima.

Essa contradição se revela especialmente quando a lei trata dos crimes contra o patrimônio, que com diversas tipificações que regulam a espécie, permite a iniciativa da ação penal de forma pública, incondicionada ou condicionada à representação, ou ainda de forma privada.

O que nos propomos agora é discorrer sobre algumas situações incoerentes, especialmente em face da natureza dos direitos disponíveis, da tipificação de delitos patrimoniais, do direito de ação penal e da natureza jurídica da sua iniciativa.


Dos Direitos Disponíveis

Numa concepção civilista, bem jurídico também pode ser conceituado como coisa material ou imaterial apropriável, útil à pessoa humana e revestida de valor econômico que pode ser objeto de uma relação jurídica. Paulo Nader sustenta uma diferenciação entre bem e coisa, sendo aquele considerado gênero, porquanto pode comportar objetos sem valor econômico, enquanto, este, espécie, uma vez que se refere somente a objetos corpóreos. [02] Welzel doutrina que "o bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é juridicamente protegido". [03] Nas palavras de Toledo, "é tudo que nos apresenta como útil, necessário, valioso" [04].

Por outro lado, em uma concepção pura do direito penal, lecionam Zaffaroni e Pirangeli, que "bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam [05]". Portanto, o bem jurídico que se protege "não é a propriedade, e sim o direito de dispor dos próprios direitos patrimoniais" [06]. Não havendo essa possibilidade de disposição, afeta-se a conduta como lesiva, tornando-a objeto da tutela penal.

Assim, o direito civil revela ser a coisa apropriável, útil e de valor econômico. Tal conceituação interage com o direito penal, que, contudo, vai focar na disponibilidade da coisa em relação ao seu titular para se afetar uma conduta que perturba a disposição desse bem, civilmente considerado. Essa interação é inevitável, desfazendo-se fronteiras temáticas e nos obrigando a uma compreensão geral, especialmente na localização de soluções que guardem compatibilidade com a natureza dos institutos em questão.

Todos nós somos dotados de direitos subjetivos, ou seja, da "permissão de fazer ou não fazer e de ter ou não alguma coisa sem a violação de preceito normativo" [07] ou ainda, na expressão maior de Goffredo Telles Jr., "o de defender direitos ou proteger o direito comum da existência, ou seja, a autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela violação da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar a reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena" [08].

A Constituição Federal assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e a lei civil dispõe que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou a detenha (art. 1228). Tal propriedade se presume plena e exclusiva, até prova em contrário (art. 1231). No mesmo sentido, trata a lei civil da posse, que não seja violenta, clandestina ou precária (art. 1200), considerando-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade (art. 1196). Ou seja, o poder de usar, gozar e dispor da coisa.

A propriedade é um fato absoluto, erga omnes, pleno, "sendo incontestavelmente, o mais extenso e o mais completo de todos os direitos reais" [09], conferindo ao titular o "poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros" [10].

Limitando-nos a tratar de coisas apropriáveis, úteis e de valor econômico, que podem ser de alguma forma objeto de subtração, usurpação, destruição, dentre outras condutas dos tipos elencados nos crimes contra o patrimônio, podemos concluir, com segurança, que uma característica qualificada do poder inerente à propriedade e a posse é a disposição.

Pode-se dispor da propriedade por diversas formas e, dentre elas, pela renúncia (art. 1275, II). Ou seja, na melhor descrição de Orlando Gomes, "ato pelo qual o proprietário declara explicitamente o propósito de despojar-se do seu direito. Independe do abandono material da coisa. Para valer, não necessita de aceitação de quem quer que seja. É nimiamente um ato unilateral. Mas para produzir efeitos, mister se faz, em nosso direito, que o ato renunciativo seja transcrito no Registro de Imóveis. A renúncia da propriedade dos bens móveis não está subordinada a qualquer exigência para a sua eficácia" [11].

Assim, se constitucionalmente temos a garantia do direito de propriedade, na mesma gradação temos o direito de renunciar à propriedade, constituindo-se, também e por derivação, em uma garantia de concepção constitucional, porquanto inerente à própria natureza da disponibilidade do instituto da propriedade. O exercício do direito de ter ou não ter (direito subjetivo), desde que não viole comando normativo, não pode sofrer qualquer limitação, sendo da mesma forma absoluto, não guardando, por conseqüência, qualquer dependência de autorização ou aceitação de terceiros.


Dos Crimes contra o Patrimônio

Patrimônio, segundo Heleno Cláudio Fragoso, é "um complexo de ações jurídicas apreciáveis em dinheiro, ou que tenha valor econômico, concebidos como uma universalidade de direitos, ou seja, uma unidade abstrata distinta dos elementos que a compõe, conceito que é próprio do direito privado". [12] Em uma concepção civilista, é a "constituição econômica da pessoa natural e jurídica". [13] Pode-se, portanto, concluir que "não há crime patrimonial sem lesão de interesse economicamente apreciável". [14]

Qualquer que seja o conteúdo que se possa emprestar a noção de patrimônio, o certo é que a tutela penal à disponibilidade patrimonial é tão antiga quanto o aparecimento da propriedade privada. Assim, o furto foi previsto e incriminado "em textos antiqüíssimos do direito romano" [15], bem como o estelionato que também surgiu na clássica época romana no século II da nossa era.

Heleno Cláudio Fragoso ensina que a "longa evolução histórica permite que estes crimes tenham atingido, na doutrina do direito penal, um grau notável de acabamento". [16] Embora o direito penal se apresente como autônomo e constitutivo "nesta parte dos crimes patrimoniais o direito penal aparece nitidamente como critério sancionatório, no sentido de proporcionar a sanção penal a certos direitos estabelecidos pelo direito privado". [17]

Desde 1940, a parte especial do nosso Código Penal subdivide os crimes contra o patrimônio em sete capítulos, que deliberam sobre o furto, o roubo e a extorsão, a usurpação, o dano, a apropriação indébita, o estelionato e outras fraudes e a receptação, distribuídos em trinta e quatro tipos penais distintos, além de inúmeras circunstâncias que qualificam o delito, contribuindo para o aumento ou diminuição da pena.

Nesse universo repressivo, encontramos penas que variam o seu mínimo de 15 dias, no caso do crime de outras fraudes, previsto pelo art. 176, para o mínimo de 20 anos, quando ocorre o roubo seguido de morte, disposto na segunda parte do §3º do art. 157. Podemos encontrar também todas as três possibilidades de se iniciar uma ação penal: a incondicionada, a condicionada à representação e a privada, além das causas que se encontram inserida no Capítulo VIII que regula as disposições gerais.

Trata-se de delitos relacionados, em sua grande parte, com a criminalidade convencional, em face da relação jurídica decorrente do ser humano e a propriedade ou posse de um bem corpóreo, chamado de coisa, seja móvel ou imóvel, que pode ser objeto de subtração, usurpação, dano, apropriação, receptação e fraude. Sempre presente, portanto, o aspecto real da propriedade e da posse e a idéia de que se trata de uma coisa que se possa mensurar um valor econômico de tal monta que repercuta no patrimônio da vítima.

Assim, o Código Penal regula a ocorrências dessas condutas delituosas, expressando, no entanto, inúmeras incoerências. A mais enfática delas, dentre tantos tipos penais, e que no imaginário geral pode exemplificar todo e qualquer crime dessa natureza, é o furto. Trata-se de uma conduta tão antiga quanto o próprio direito de propriedade, de grande repercussão histórica, moral e religiosa, porquanto sua proibição já constava nos dez mandamentos ou no decálogo, conjunto de leis que segundo a Bíblia, teriam sido originalmente escritos por Deus em tábuas de pedra e entregues ao profeta Moises. Do mesmo modo, o Código de Hamurábi, uma das mais antigas legislações codificadas, já previa, inclusive, a pena de morte para o crime de furto.

O furto, que não é uma novidade comportamental, consiste em subtrair coisa alheia móvel para si ou para outrem, com o fim de se apoderar definitivamente. Assim, o núcleo do tipo penal é a subtração, o objeto material é a coisa móvel e o elemento normativo do tipo é ser a coisa alheia. Nada mais simples e direto, não envolve violência ou qualquer outro ardil que possa induzir em erro a vítima. Toda pessoa, de qualquer idade, tem uma idéia do que seja um furto, denominando-se de "ladrão" o autor do fato.

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No entanto, tal conduta, em comparação com alguns outros crimes contra o patrimônio, demonstra uma reprovabilidade exacerbada e sem nenhuma explicação aparentemente jurídica. Talvez sociológica ou cultural, mas não jurídica.

Por exemplo: a pena do furto é no mínimo de um ano e no máximo de quatro de reclusão. Assim, não tem muita importância qual objeto (coisa) está sendo subtraído, com exceção de veículo automotor, que tem previsão normativa própria (art. 155, §5º), a pena mínima e máxima vai sempre variar de um a quatro anos. A forma de se cometer o crime é que pode qualificar a conduta e aumentar a pena (§1º e §4º do art. 155), ou se pequeno o valor da coisa subtraída, pode-se substituir a reclusão por detenção, diminuir a pena de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa.

No Código Penal de 1890 [18], havia uma sistemática interessante. O art. 330 dispunha diferentes penas para o delito de "subtrahir, para si, ou para outrem, cousa alheia móvel, contra a vontade de seu dono" de acordo com os valores fixados nos §§ 1º a 4º. Assim a pena alternava de no mínimo um mês e no máximo três anos de "prizão celular", além da pena de multa que variava em porcentagem de cinco a vinte por cento sobre o valor da coisa subtraída, o que já foi um avanço com relação à legislação anterior. No Código Penal do Império, de 1830 [19] a pena mínima do crime de "tirar cousa alheia contra a vontade de seu dono, para si ou para outro" (art. 257) era no mínimo de dois meses e no máximo de quatro anos, sem estabelecer valores. De qualquer forma, só para efeitos de comparação a pena do Código Penal de 1830 corresponde a 1/5 da pena mínima e ½ da pena máxima prevista atualmente.

Conclui-se, portanto, que houve um relevante recrudescimento no tratamento que o Código Penal de 1940 trouxe ao crime de furto. Tratando-se de subtração de coisa móvel é indispensável a comparação com a usurpação, no delito específico de alteração de limites (art. 161). Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia tem previsão de pena de um a seis meses de detenção. Ou seja, a subtração de coisa imóvel alheia, pela alteração de limites divisórios, é um crime cuja pena mínima corresponde a 1/12 da pena mínima do crime de subtração de coisa móvel alheia.

Com se não bastasse a desproporcionalidade da pena, a alteração de limites é uma infração penal de menor potencial ofensivo, segundo o art. 61 da Lei nº 9099/95, e o furto não. A pena daquele é de detenção e deste de reclusão. A prescrição em abstrato do crime de furto é de oito anos (art. 109, IV) e da alteração de limites de apenas dois anos (art. 109, VI).

Percebe-se, em uma escala de valores, que o Código Penal empresta maior reprovabilidade à conduta do furto do que a de alteração de limites, apesar de ambas serem uma forma de subtração/apropriação de coisa alheia. Onde estaria, no entanto a explicação para tão improvável distinção? Seria na possibilidade de recuperação da coisa? Talvez não, pois o desforço necessário é permitido também para as coisas móveis (art. 1210, §1º), desde o Código Civil anterior (art. 502). Ademais, a alteração de limites se faz em regra de forma clandestina, sem que o proprietário da coisa imóvel possa perceber o que de fato ocorreu, se não se valer de um estudo topográfico do seu terreno. Isso tem importância, à medida que essa medição pode ser inviabilizada pelo seu custo em comparação às condições econômicas do subtraído/usurpado. E, por fim, apesar de clandestina, essa posse pode ser usucapida, transformando-se em propriedade do autor do fato (art. 1238) que se beneficiou da prescrição aquisitiva.

Vista por todos os ângulos, inclusive de defesa e preservação das relações sociais, essa conduta é tão ou mais reprovável que uma simples subtração de coisa móvel. Os efeitos sociais e a possibilidade de geração de inúmeros conflitos são reais e cotidianas. O crime de esbulho possessório (art. 161, II), que se revela com a invasão, mediante violência ou grave ameaça ou concurso de mais de duas pessoas, a terreno ou edifício alheio (bem imóvel), também é reprimido com a mesma pena da alteração de limites. Sem nos atermos na profusão de problemas agrários existentes até hoje em nossa sociedade, o Código Penal decreta que a subtração simples de coisa móvel é definitivamente mais grave que a invasão a imóvel com o fim de usurpar, mesmo se cometido com violência ou grave ameaça. Contra essa patente ausência de lógica, não há argumentos.

Seria, então, a figura do sujeito ativo do delito, que no furto sempre se atem aos elementos marginalizados, sem importância social, de conotação pejorativa, e que, em regra, não são proprietários de imóveis? É possível. Apesar de existir furto de obras de artes de grande valor econômico, obviamente o imaginário social conecta a figura do ladrão a algo biltre, reles, vil. Por outro lado, para se apropriar de um bem imóvel, alterando limites, pressupõe-se que o autor do fato não é marginal, mas proprietário de terra e o mais grave, vizinho do lesionado.

Essas disposições normativas, talvez, na década de 30 pudessem fazer algum sentido, apesar do recrudescimento com a legislação anterior. Mas, no contexto atual vale uma reflexão. O nosso Código Penal tem quase 70 anos e neste particular nunca foi alterado, como se fosse incomum a apropriação de coisa imóvel alheia alterando-se os seus limites ou mesmo o esbulho possessório, com todas as implicâncias em conflitos sociais que testemunhamos diuturnamente. São fatos jurídicos, que não parecem se situar também na esfera penal, como se estivessem eqüidistante, em um mundo próprio, limitado a apenas uma repercussão de natureza civil, camuflando transgressões e enfretamentos que permanecem latentes na sociedade.

O furto também é marginalizado com relação ao crime de dano, ou seja, destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia (art. 163), que na sua forma simples prevê a pena de detenção de um a seis meses, idêntica à alteração de limites. Desse modo, se alguém subtrair coisa alheia que posteriormente for encontrada e restituída ao proprietário, configurando, no entanto, a consumação do crime de furto, será apenado com reclusão de um a quatro anos. Se, no entanto, em vez da subtração, o agente resolver destruir o mesmo objeto, que nunca mais terá utilidade para o seu dono, que perderá, assim, a possibilidade de usar, gozar ou dispor do seu bem (ofensa real ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado), a pena mínima é será de 1/12 e a máxima de 1/8 da pena do crime de furto.

É interessante, também, destacar que o objeto material do crime de dano tanto pode ser a propriedade móvel como imóvel, diferentemente do furto. Além do mais se o dano for cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; com emprego de substância inflamável ou explosiva; contra o patrimônio público, de concessionária de serviço público ou sociedade de economia mista, ou, ainda, por motivo egoístico com prejuízo considerável para a vítima (art. 163, parágrafo único), a pena mínima continua sendo somente a metade (seis meses) do crime de furto simples ou ¼ da pena mínima do furto qualificado (art. 155, §4º). Trata-se de uma desproporção igualmente inexplicável

No Código Penal de 1890, a pena do crime de dano (art. 329 - destruir, ou damnificar, cousa alheia, de qualquer valor, móvel, immovel, ou semovente) era de um a três meses mais a pena de multa que variava de cinco a vinte por cento sobre o valor do dano, o que era absolutamente proporcional às penas do furto à época. Já em 1830, a pena para "destruir ou damnificar cousa alheia de qualquer valor" era de apenas 10 a 40 dias de prisão (art. 266), além da multa mantida pelo Código de 1890. No entanto, há uma disposição curiosa prevendo que "se a destruição, ou damnificação neste caso fôr feita para se apropriar o delinqüente do terreno alheio"(art. 267, segunda parte), a pena será a mesma do furto (mínimo de dois meses e máximo de quatro anos). A história, assim, nos ensina que a nossa sociedade no século XIX convivia, ao menos sob o ponto de vista da ciência penal, com critérios mais proporcionais e menos incoerentes quando normatizava as condutas relativas aos crimes patrimoniais.

Seguindo os ensinamentos de Zaffaroni e Pirangeli, se a tutela penal se alinha à relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, como explicar a baixa reprovabilidade do dano com relação ao furto, se nunca mais vai ser utilizado o objeto danificado, além do fato que pode ser cometido inclusive com violência? O sujeito ativo do delito pode ser, da mesma forma que o furto, qualquer pessoa, salvo o proprietário. Poderia, inclusive, ser o elemento marginalizado, despossuído de bens, que acima relatamos. Seria, então, o desapego do autor do fato às coisas materiais, a possibilidade de não se utilizar do produto da sua subtração? Provavelmente não, uma vez que o que vier a ser feito com o objeto, no crime de furto, é exaurimento, não guardando nenhuma repercussão jurídico-penal. A subtração por si, aqui, segue o seu rumo de gravidade, sem nenhuma outra razoável explicação.

No direito comparado, só para ficarmos aqui no Mercosul, o Código Penal uruguaio [20] que é contemporâneo (1933) de nosso Código de 1940, prevê para o crime de furto (hurto – art. 340) a pena de três meses a seis anos; para o crime de usurpação (usurpación – art. 354), que engloba tanto a alteração de limite, quanto o esbulho, uma pena de três meses a três anos; e, por fim, o crime de dano (daños – art. 358) na sua forma simples é punido somente pela pena de multa.

O Código Penal argentino [21], elaborado 44 e 51 anos respectivamente depois do brasileiro e do uruguaio (1984) impõe ao furto (hurto – art. 162) a pena de um mês a dois anos, muito aquém dos outros dois códigos penais. No entanto, para o dano, na sua modalidade simples (daños – art. 183), os argentinos imputam uma pena de quinze dias a um ano, ao contrário dos uruguaios, que optaram pela multa, mas proporcional ao Brasil, cuja pena é de um a seis meses. No entanto, se tratando da usurpação, englobando aí a alteração de limites e o esbulho, enquanto a opção de nosso legislador foi de apenas um a seis meses de detenção, os uruguaios, como acima assinalado, definiram a pena de três meses a três anos e os argentinos de seis meses a três anos (usurpación – art. 181). Ou seja, com relação à lesão a bem imóvel as penas são sempre maiores no Uruguai e na Argentina que no direito brasileiro.

Trata-se de uma diferença considerável, porquanto naturalmente existe um sentimento de reprovabilidade mais acentuado na usurpação, não encontrado aqui no Brasil, que optou por reprimir com maior veemência a subtração simples de coisa móvel. Como não era dessa forma valorado nos códigos penais do império e da república no século XIX, é possível concluir que o crime de furto ingressa no imaginário brasileiro na década de 30, de uma forma exacerbada, com grande conteúdo de reprovação, mas que infelizmente não soubemos superar nestes quase 70 anos de vigência do Código Penal. Não seria crível acreditar que esse tempo não poderia produzir significativas mudanças nesse cenário. Mas, por uma constatação histórica, nada fizemos nos últimos 70 anos e contra isso não há, também, nenhum argumento.

Afinal, é possível sorver cada palavra pregada por Cesare Beccaria [22], desde o século XVIII, incomodado com a demora na reação do Estado a problemas que com nitidez são identificados, e que até hoje depende de uma postura mais ativa da sociedade no sentido de enfrentamento dessas graves questões. Nada do que foi escrito por Beccaria, é resultado de uma mera coincidência:

Um roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem, seja despojado do seu.

Mas, se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) só deixou a existência como único bem, as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número de indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico talvez criminoso.

(...)

O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política deve admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos, há uma distância infinita.

Essas coisas foram ditas, mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em práticas. Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido; é, porém, moroso, imprimir-lhe um novo movimento.

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Sobre o autor
Fernando Antônio Calmon Reis

Defensor Público do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Fernando Antônio Calmon. Digressões sobre os direitos disponíveis, os crimes patrimoniais e a ação penal de iniciativa pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2312, 30 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13767. Acesso em: 19 abr. 2024.

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