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Sujeitos que falam e o sujeito do qual se fala.

Considerações sobre um caso exemplar de segredo de justiça e atuação profissional psicológica em processo judicial

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24/11/2009 às 00:00
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4. Um caso exemplar: a voz de um "desamparado".

Sob o título "Caso Sean: A guerra na mídia expõe publicamente vísceras de uma criança", um texto de 18 de junho de 2009, publicado na Rede Mundial de Computadores [02] e escrito por Fabio Panunzzio [03], resume este caso exemplar:

"Tenho acompanhado esparsamente o caso do garoto Sean Goldman.(...) Alvo de uma contenda entre o pai americano e o padrasto brasileiro, Sean (...) nasceu em Red Bank, Nova Jersey, fruto do casamento do americano David Goldman com a brasileira Bruna Carneiro Ribeiro. Quando ele tinha quatro anos de idade a mãe, já decidida a encerrar o casamento, veio com o garoto para o Brasil e jamais permitiu que ele retornasse. Bruna nunca tentou obter sua tutela na justiça americana. Comunicou a separação ao marido quando já estava em solo brasileiro. E se casou com o respeitabilíssimo advogado Paulo Lins e Silva, filho de uma família aristocrática do Rio de Janeiro.

A contenda judicial se arrasta desde então. Mas foi um infortúnio que selou a sorte de Sean e o colocou no centro de uma arena em que uma guerra judicial transcorre em meio a várias batalhas de mídia. A mãe dele morreu no parto do segundo filho. Sean ficou aos cuidados do padrasto. (...) O caso está nas mãos da Justiça Federal. Já percorreu todas as instâncias (...) quero falar sobre uma das peças, que me chegou por e-mail, enviada pela assessoria de imprensa do escritório que representa a família Lins e Silva no caso. Trata-se de algo que a justiça brasileira não permitiu no curso do processo: a manifestação de vontade da criança.

Os Lins e Silva contrataram uma psicóloga para entrevistar Sean. A sessão foi gravada e (...) anexada ao processo, mas não tem valor na disputa judicial. Serve, basicamente, para municiar a imprensa -- daí sua divulgação. A entrevista, feita pela psicóloga (...) aconteceu no dia 15 passado, no setor de psiquiatria da Santa Casa de Misericórdia. Logo no começo Sean é advertido de que a consulta será gravada. Ele sabe que o vídeo será exibido a quem vai decidir a questão. (...) Sean é instado a desenhar sua família. É por meio desse desenho que ele passa a descrever seus laços afetivos. (...) Estimulado a falar sobre sua origem, passa a descrever memórias esparsas de um mundo do qual pouco se lembra. De Nova Jersey, apenas o frio. E logo aparece a primeira afirmação categórica. "Eu quero ficar no Brasil", exclama o garoto. "Porque aqui eu tenho minha família que eu gosto, que é meu pai, minha irmã"... "Como é que você imagina se você fosse para lá, para os Estados Unidos?", indaga Dra. (...). "Deve ser muito ruim. Eu não vou gostar", responde o menino.

De repente a criança, que não consegue se lembrar de nada, diz que David, tratado pela psicóloga apenas como ´´pai biológico´´, mudou muito. "Ele agora tá fingindo que ele tá muito sofrido, ele tá fingindo, dá pra perceber", diz Sean. Fico me perguntando de onde partem impressões com esse nível de assertividade. De que referencial elas lhe foram trazidas? É inevitável supor que as imagens que compõem a figura paterna lhe chegam pelas fontes que têm acesso a ele -- a família brasileira.

Sean diz que o pai está fingindo. A figura que aparece é quase draconiana para uma criança compelida a conviver com um estranho. "Ele estragou meu final de semana, eu tinha uma viagem marcada pro Beach Park e ele estragou meu final de semana falando que ía vim aqui me visitar (...) e acabou que ele não apareceu". (...)

O garoto deixa claro que não quer ter nenhum contato com o "pai biológico". Reitera e reafirma isso o tempo todo. Fala para a câmera. E ameaça: "se for pra lá eu vou começar a quebrar tudo, eu não vou gostar". Sean quer ficar com as idas ao shopping, os fins-de-semana num haras, o deleite de pertencer a uma aristocrática e acolhedora família. Não há espaço para David no psiquismo do garoto.

Nem poderia haver. Pelo que contou à terapeuta, eles jamais teve um momento privado com o pai. "Sempre que ele vem fazer uma visita, tem alguém presente", afirma na entrevista. Visitas que sempre ocorreram no condomínio onde ele mora. (...) A verdade é que, desde que Sean foi abduzido dos Estados Unidos pela mãe, David nunca teve nenhuma chance com o próprio filho.

(...) Como se vê, quanto mais tempo passar, mais arredio o menino Sean vai ficar à imagem do pai. E mesmo que fique no Brasil, no futuro distante, quando ele tiver discernimento suficiente para entender o que aconteceu nos seus primeiros anos de vida, o que será que vai pensar do amor ao mesmo tempo generoso e obsessivo do padrasto que o privou conviver com o "pai biológico"?

O que está em questão nesse caso não é apenas o lugar onde Sean vai reconstruir sua vida. É a possibilidade dessa criança se tornar um adulto feliz em meio a uma adversidade dessa dimensão. Contribuiria muito para isso se a família brasileira tirasse a lide dos jornais e oferecesse a ele o que toda criança inocente tem direito quando é alvo de uma disputa mesquinha como essa, o segredo de justiça."

Talvez encontremos concordância com as conclusões de Kelsen sobre ser o direito a materialidade do discurso do Outro, do Estado, este lugar onde nenhuma palavra é suficiente para significá-lo, mas que talvez por isso mesmo, está na posição de poder falar em nome da lei.

A legalidade do sentido do texto do direito se dá por intermédio de uma montagem ficcional que opera "como se" o discurso fosse falado (autorizado) por alguém. Neste argumento Kelsen encontra a possibilidade de encontrar o conceito de Estado nesta categoria de uma idéia, ideologia mesmo: sendo representação, estaria no lugar do ideal do eu; portanto podendo falar em nome de um pai.

Deste modo, ao se afastar das justificativas teológicas e metafísicas, a fundamentação positivista do direito acaba por reeditar uma autoridade imaginária que garante, em última instância, a validade das normas jurídicas, da lei, conclamando os sujeitos à obediência devida em nome deste lugar Outro. Em 1995, a Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Fernanda Otoni de Barros, em seu "A Representação da Paternidade no Campo Jurídico e a Constituição do Laço Social¨ - Projeto de Mestrado em Psicologia Social pela UFMG – já enunciava esta problemática nestes termos e nesta base conceitual.

Assim como o jornalista, apesar de não-especializado, expõe o cerne da abordagem: o segredo de justiça. É uma condição imposta pelo Código de Processo Civil em questões familiares, inclusive. Uma consulta à Rede Mundial de Computadores não nos pode revelar o andamento processual do caso Sean. Sequer as partes envolvidas. Mas detemos e transcrevemos com fontes uma peça processual de natureza técnica e, com algum interesse e facilidade, pode-se obter nomes e currículos de todos os citados.

No caso específico, a psicóloga entrevistadora está na condição de assistente técnico da parte (no caso, o padrasto que, apenas de fato, detém a guarda de Sean; atua, presumidamente, em nome do garoto). A profissional, no caso, sequer pode ser considerada suspeita, impedida ou inabilitada. Uma mostra do trabalho que Paulo Lins e Silva publicou, sobre direito, família, filhos e separação, em seu sítio na Rede, como sua opinião:

"Certo é que estamos sofrendo um processo de mudanças sobre o conceito da família. Não podemos dizer processo evolutivo, mas uma necessária mudança de ótica sob o significado do que corresponde a família da forma que a sociedade hoje se comporta. Estamos nesse momento quebrando normas sociais impostas por tradições culturais originalmente criadas pelo Estado e pela Igreja. Uma série de fatos históricos contribuiu para tal, como a revolução feminista, com a quebra da ideologia patriarcal. A própria necessidade da mulher em buscar atividades fora do lar contribuiu para a quebra do patriarcalismo, que vislumbrava o homem como força dominante e controladora do lar (seguindo a tradição romana do patrimonium)." [04]

"O mais incrível de tudo é que esse anteprojeto distante 30 anos de sua fase embrional e que já recebeu mais de 300 emendas somente no Senado, ou seja mais de 10% de seus artigos, não trata das novidades que envolvem a família do Século XXI como os da biomédica, envolvendo os exames de DNA, as locações de útero, as inseminações artificiais, as fertilizações "in vitro", as adoções de ovos, os bancos de sêmen e óvulos, os clones humanos, as guardas compartilhadas, os ressarcimentos dos danos morais e materiais entre cônjuges, das influências da era da informática na estrutura da família, nada absolutamente nada. O que estamos vendo é o atendimento ao capricho e a vaidade de pouquíssimos interessados nessa aprovação contra a repulsa e o afastamento dos grandes e verdadeiros civilistas vivos na contribuição desse anteprojeto de grande risco social. Possivelmente esses interessados serão os únicos doutrinadores e interpretes que irão editar os comentários dessas normas velhas e ultrapassadas que nos querem impor e cujo benefício cultural para o povo será nulo e dispendioso, pois teremos de adquirir essas obras e nos afastar de nossa verdadeira história e tradição já vivenciada por quase um século de grande experiência. Ao invés de crescer e evoluir, no Direito de Família, continuaremos no 3º ou quem sabe no 4º Mundo!" [05]

"(...)Um bom ou excelente acordo tem que ser equânime ou seja em equilibrado, justamente para evitar que o separando fique escravizado ao Poder Judiciário, necessitando todos os anos ou meses, buscar a assistência de um advogado para exercitar um direito seu que não está sendo obedecido pela outra parte.(...) O mesmo ocorre em relação aos filhos, principalmente quando são de tenra idade. Alguns exigem pernoite em fase de amamentação, regime de visitação estilo "guarda compartilhada", ou mesmo um critério onde ficam a maior parte dos dias e finais de semana com os filhos, sem observar um critério justo e equilibrado em relação aos menores.(...) O resultado é sempre o mesmo. (...) pois prejudicam a criação dos filhos menores e mais ainda, essa insistência com vantagens unilaterais, obtidas originariamente num sentido de vindita, passam a trazer uma indisposição com os próprios filhos, já traumatizados com a separação e já aos poucos, quando vão crescendo, sentem o estreitamento de suas fronteiras de vida pessoal, com a própria natural liberdade que necessitam e começam a lamentavelmente a querer evitar aquele contato exagerado com o pai ou com a mãe, vindo igualmente a trazer motivos para uma revisão de critérios no futuro. O mais triste é quando essas crianças se transformam em armas dos próprios pais, uns contra os outros." [06]

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Ora: sequer podemos, dado ao segredo de justiça, aferir em qual condição a psicóloga atuou no caso. Mas inclinamo-nos a admitir a possibilidade de ter sido na qualidade de assistente técnico da parte em prova pericial. É lícito, moral e legal, a distribuição à imprensa, por parte da assessoria de imprensa do escritório que representa a família Lins e Silva no caso, da íntegra da peça processual? [07]

O segredo de justiça é uma exceção no direito brasileiro. Em tese, todos os processos são públicos; apenas em alguns casos a divulgação dos detalhes é proibida. Qualquer pessoa pode se dirigir aos tribunais e ler cópias de casos que lhe interessam. As exceções começam quando os casos envolvem a dignidade, a honra e a intimidade das pessoas. O artigo 155 do Código do Processo Civil determina que processos de casamento, filiação, divórcio e guarda de menores sejam resolvidos sob sigilo total. Só têm acesso aos detalhes do caso as pessoas envolvidas, o juiz, os advogados dos dois lados e o Ministério Público. Mais ninguém, sem atuação processual determinada, pode ver, ler ou copiar qualquer documento. O artigo 5º da Constituição Federal também trata do sigilo como fundamental para defesa da intimidade.

O Superior Tribunal de Justiça, julgando o Processo de RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA de número 199300201484, decidiu, por unanimidade, em Ementa: LIBERDADE DE IMPRENSA. SEGREDO DE JUSTIÇA. SE, DE UM LADO, A CONSTITUIÇÃO ASSEGURA A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO, CERTO É QUE, DE OUTRO, HÁ LIMITAÇÕES, COMO SE EXTRAI NO PARAGRAFO 1o. DO ART. 220, QUE DETERMINA SEJA OBSERVADO O CONTIDO NO INCISO X DO ART. 5., MOSTRANDO-SE CONSENTÂNEO O SEGREDO DE JUSTIÇA DISCIPLINADO NA LEI PROCESSUAL COM A INVIOLABILIDADE ALI GARANTIDA. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE NEGOU PROVIMENTO. (DIÁRIO DA JUSTIÇA - DATA: 08/05/1995 PG:12383 - RDR VOL.:00002 PG:00190).

E como fica a situação da Psicóloga que teve sua atuação difundida? A parte processual que a contratou tem o direito de divulgar seu trabalho, seu método de atuação e sua conduta? O Código de Ética da profissão de Psicólogo, vigente desde agosto de 2005, prescreve uma quantidade considerável de ponderações a respeito do exercício; dentre elas se destaca, para o caso:

Art. 8º - Para realizar atendimento não eventual de criança, adolescente ou interdito, o psicólogo deverá obter autorização de ao menos um de seus responsáveis, observadas as determinações da legislação vigente;

§1° - No caso de não se apresentar um responsável legal, o atendimento deverá ser efetuado e comunicado às autoridades competentes;

§2° - O psicólogo responsabilizar-se-á pelos encaminhamentos que se fizerem necessários para garantir a proteção integral do atendido.

Evidente, pelo descrito, que a sessão de entrevista foi na presença de autoridades competentes, sendo a profissional não-responsável pela divulgação da transcrição na imprensa. Não é por acaso que o repertório de jurisprudência da Justiça Federal tenha pouco a revelar sobre o tema: questões de família normalmente são dirimidas na Justiça Comum Estadual. O caso de Sean Goldman só foi até a Justiça Comum Federal por razões técnicas: o Estado Brasileiro ser signatário de um protocolo internacional que, em tese, dá ao pai biológico do garoto o direito de retornar com ele ao país de origem. Sobre isto - e mais especificamente o segredo de justiça - Paulo Lins e Silva fez publicar, no jornal "O Globo", em cinco de março de 2009, uma longa carta [08] ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, de onde de destaca:

"Hoje sou RÉU DE UM PROCESSO MOVIDO CONTRA A UNIÃO ONDE SE PLEITEIA O RETORNO DE SEAN E VISITAÇÃO EM FAVOR DE UM NORTE-AMERICANO!!!!! Mesmo que o pedido tenha sido feito perante o Juízo de Família e mesmo que o pedido de retorno se repete, cujo mérito já foi julgado pelo STJ!!! A União pleiteia um direito em favor PARTICULAR de UM AMERICANO CONTRA UM BRASILEIRO que vem sendo massacrado pela imprensa, que não dorme com calma, que se vê obrigado a requerer à Justiça liminares para que o assunto não seja mais divulgado mesmo que esteja protegido pelo segredo de Justiça.

Meu país não pode agir contra um VERDADEIRO PAI BRASILEIRO, A PONTO DE INTERCEDER NUM ASSUNTO COMPLETAMENTE PARTICULAR. A QUE PONTOS CHEGAMOS???? ESTAMOS ENTÃO SUJEITOS AO INTERESSE ESTRANGEIRO ACIMA, INCLUSIVE DE DECISÕES DOS NOSSOS TRIBUNAIS?"

Mesmo iniciando uma meia-dúzia de laudas sob o alerta de que não se dirige ao Conselho Nacional como advogado, coloca-se no lugar de "verdadeiro pai brasileiro", misturando emblematicamente todo o exposto na parte anterior do presente texto. Vai às raias da xenofobia, cita outra Psicóloga (Maria Helena Bartolo) que, em suas (dele, Lins e Silva) palavras, "sempre foi categórica em afirmar que Sean, por falta de iniciativa do pai biológico, perdeu a referência de seu passado americano, por não mais praticar a língua e por ter vindo muito novo para o Brasil".

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Sobre o autor
Marconi Alvim Moreira

Procurador Federal, chefe da Procuradoria Jurídica da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Marconi Alvim. Sujeitos que falam e o sujeito do qual se fala.: Considerações sobre um caso exemplar de segredo de justiça e atuação profissional psicológica em processo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2337, 24 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13895. Acesso em: 24 dez. 2024.

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