RESUMO
O aumento contumaz dos índices de criminalidade em que há envolvimento de crianças e adolescentes, traz à tona a discussão acerca da redução da idade penal, que hodiernamente, em nosso ordenamento jurídico, está fixada em dezoito anos. A proposta reducionista passa necessariamente por uma alteração do texto constitucional, porquanto o art. 228 da Carta Republicana preceitua que são inimputáveis os menores de dezoito anos, sendo-lhes aplicável a legislação penal específica. Para muitos respeitados doutrinadores, a referida norma constitucional está protegida por uma cláusula de intangibilidade, portanto, não pode ser modificada sequer por Emenda à Constituição. Como existem diversas propostas de Emendas Constitucionais tramitando no Congresso Nacional que tratam do rebaixamento da idade penal, torna-se imprescindível estudarmos os contornos da temática, bem como suas conseqüências jurídicas e políticas. Tentaremos verificar, como objetivo geral, se as tentativas de redução da idade penal são constitucionais em diversas acepções. Para tanto, traçamos como objetivos específicos os seguintes: a) expor os aspectos históricos da maioridade penal, cujo desiderato é demonstrar a evolução dos direitos da criança e do adolescente; b) examinar se os direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal são meramente exemplificativos, sem embargo de regramentos implícitos ou mesmo explícitos em outros dispositivos constitucionais; c) investigar se o art. 228 da Carta Magna constitui garantia individual (fundamental) da Criança e do Adolescente e, portanto, cláusula pétrea (art. 60, §4º, inciso IV). Outrossim, verificar se haveria violação ao princípio da isonomia a tentativa de tratar igualmente aqueles que, em tese, não são iguais (maiores x menores de dezoito anos); d) verificar, ademais, se, sob os aspectos da proporcionalidade e da legitimidade, seria constitucional a redução da idade penal como forma eficaz de diminuir os índices de criminalidade. Pesquisa predominantemente teórica, a aquisição dos dados efetivou-se por meio de documentação indireta, ou seja, pesquisa documental — textos legislativos — e, principalmente, bibliográfica. O presente ensaio monográfico encontra-se, assim, dividido em três capítulos: o Capítulo I, intitulado Aspectos Históricos da Maioridade Penal, traça a evolução da maioridade penal com o desiderato de contextualização do tema; o Capítulo II a matéria será delimitada e estudar-se-á A contextualização do tema sob a ótica Constitucional; enfim, o Capítulo III, intitulado Análise de legitimidade das tentativas de redução da idade penal, analisará se as propostas reducionistas são constitucionais nos aspectos da proporcionalidade e legitimidade.
Palavras-chave: Imputabilidade Penal. Direitos e Garantias Fundamentais. Limites ao Poder de Reforma Constitucional.
ABSTRACT
The increase common rates of crime where there is involvement of children and adolescents, especially those crimes that cause most social outcry, brings to light the discussion about the reduction of criminal age, which currently in our legal system, is set at eighteen years . The proposal reductionist inevitably means a change of the constitutional text, as the art. 228 of Republican Charter stipulates that minors are anpunishable of eighteen years, and they are applicable to special criminal law. For many respected sudious, that standard is protected by a constitutional clause of inviolability therefore can not be changed even by Amendment to the Constitution. As there are various proposals for Constitutional Amendments processed in the National Congress dealing with the lowering of age criminal, it is essential studying the contours of the theme, as well as its legal and political consequences. Based on the historical evolution of majority criminal until its current context, always with emphasis on the Federal Constitution of 1988, attempt to verify such as general purpose, if the attempts to reduce the criminal age are constitutional in several respects. For both, draw as specific goals the following: a) describe the historical aspects of majority criminal, whose goal is to demonstrate the evolution of the rights of children and adolescents. b) examine if the rights and guarantees provided for in article 5º of the Federal Constitution are merely illustrative, however, rules implicit or even explicit in other constitutional provisions. c) to investigate whether the art. 228 of Magna Carta is guaranteed individual (basic) of the Child and Adolescent and therefore "cláusula pétrea" (Article 60, § 4º, item IV). Also, see if there would be violation of the principle of parity the attempt to also address those who, in theory, are not equal; d) verify Moreover, if, under the aspects of proportionality and legitimacy, it would be constitutional to reduce the age criminal and effective way to reduce the rates of crime. Search predominantly theoretical, data acquisition be by means of indirect documentation, or documentary research - legislation - and, especially, literature. This test monograph is thus divided into three chapters: Chapter I, entitled Historical Aspects of Criminal Majority, traces the evolution of majority criminal with the goal of contextualization of the issue, the Chapter II the matter will be enclosed and study The background will be the theme from the perspective Constitution; finally, Chapter III, entitled Analysis of legitimacy of attempts to reduce the criminal age, consider if the proposals are reductionist in the constitutional aspects of proportionality and legitimacy.
Key-words: Criminal Punishable. Basics Writs and Garateed. Constitutional Limitation of the Power´s Reform.
INTRODUÇÃO
A crescente onda de violência que acomete a população brasileira faz emergir a sensação de que enclausurar é a melhor solução, ou seja, marginalizar ainda mais aqueles que já são socialmente marginais. A nação reclama segurança e soluções simplistas são encorajadas, até mesmo porque se estabelece um raciocínio não menos simplista: já que não se pode vencer a pobreza (fundamento da criminalidade no Brasil), também a violência não pode ser vencida. A celeuma que gira em torno da responsabilidade penal juvenil costuma ser conduzida para a proposta do rebaixamento da idade penal, como se esta fosse a solução para o sistemático problema.
A idéia de que a criança de hoje não é a mesma de anos atrás é o principal argumento utilizado por aqueles que simpatizam com a redução da idade penal. Essa conclusão simplista não considera a situação crítica pela qual passa o sistema penal hodierno e não reputa como odiosa a verdade de que os presídios contemporâneos são verdadeiras "escolas do crime". As tentativas de incluir o menor de 18 anos no sistema penal geral partem do pressuposto genérico de que este (o menor) já possui discernimento suficiente para determinar os próprios atos, do que não discordamos (em termos). Não olvidamos que existem adolescentes capazes de compreender suas ações, porém, desistir de sua re-socialização não parece ser a medida mais razoável, porquanto é sabido que o caminho da prisão (nos moldes atuais), salvo raríssimas exceções, não comporta retorno.
Tema deveras discutido, a "delinqüência juvenil" tem se mostrado alvo de inúmeros discursos eleitoreiros, que de nada servem para elucidação do problema. A maioridade penal, como uma das muitas facetas dessa intensa temática, emerge como a mais recente moeda para a captação de votos, principalmente porque surge como promessa de diminuição da criminalidade no Brasil. Problemas complexos exigem soluções sistemáticas, não necessariamente complicadas, mas sempre planejadas. Parece mais razoável implementar políticas adequadas de redução da pobreza, tais como educação familiar nas populações carentes, com o fim de controlar a natalidade nesses centros de pobreza, aumentando, a longo-prazo, as perspectivas de sucesso daqueles menos abastados.
Imagine-se o perigo, ademais, de se perder o significado da social democracia positivamente instituída, a duras penas, pela Constituição Federal de 1988. A crescente onda pode justificar a burla de determinadas garantias fundamentais que foram petrificadas pelo povo, por meio de seus constituintes? Tal violação pode representar o estopim para uma perigosa autocracia das emendas constitucionais, já que estas (as emendas) poderão, se forem permitidos vilipêndios dessa natureza, modificar toda e qualquer norma positivada pela Constituição ou mesmo princípios sensíveis que se encontram implícitos. Hoje a liberdade dos menores, amanhã a dos demais cidadãos? São questionamentos que não podem ser olvidados.
A curto-prazo, como sucedânea da medida paliativa de encarcerar os menores de 18 anos como se adultos fossem, existe a possibilidade de sistematização da legislação específica, mormente no tocante à execução das medidas sócio-educativas como formas de re-socialização efetiva.
A contribuição desta pesquisa não termina na problematização da redução da maioridade penal em face da Constituição Federal, pois, será investigada se tal redução é legítima, sobretudo se considerados os fundamentos políticos e sociais da República Federativa do Brasil.
Almeja-se, ao término deste projeto bibliográfico, que as respostas para as questões seguintes estejam alicerçadas; são elas: a) É plausível afirmar que a evolução histórico-legislativa dos direitos da criança e do adolescente se coaduna com as recentes discussões acerca da maioridade penal? b) Com relação à localização dos direitos e garantias fundamentais no ordenamento pátrio, é adequado afirmar que estes se limitam aos positivados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988? c) O artigo 228 da Constituição Federal prevê uma garantia à liberdade dos menores de 18 anos? d) Qual a semântica ontológica do princípio da isonomia aplicada ao tema? e) Sob o aspecto político, mormente no que toca à re-socialização, seria razoável incluir o menor (ainda em desenvolvimento sócio-político) no sistema penal geral?
Com o desiderato de sistematizar o estudo e facilitar a compreensão do tema, no Capítulo I serão traçados Aspectos Históricos da Maioridade Penal, haja vista ser tal evolução indispensável para a efetiva contextualização da disciplina, mormente porque é estudando o passado que se compreende o presente. No Capítulo II, como conseguinte lógico, a matéria será delimitada e estudar-se-á A contextualização do tema sob a ótica Constitucional. Enfim, no Capítulo III, intitulado Re-socialização do menor infrator e a falência do sistema penal hodierno, serão traçados aspectos jurídicos e sociológicos que argumentam contra a redução da idade penal como forma de mitigar a violência.
Os dados adquiridos para a exposição dos argumentos, por ser uma pesquisa predominantemente teórica, foram concretizados basicamente por meio de documentação indireta (pesquisa documental).
Capítulo I
É sabido que o Código Napoleônico, já nos primeiros anos do século XIX, fixou o marco moderno do direito civil. Mais de cem anos depois, precisamente em 1º de janeiro de 1916, o codex francês inspirou o Código Civil brasileiro (posteriormente substituído pelo "Novo" Código Civil – Lei 10.406, de 10.01.2002).
No que toca à responsabilidade civil, especificamente, tanto no Código Napoleônico quanto nos diplomas pátrios hodiernos, pode-se reputar que não há diferença significativa entre a responsabilidade de donos de animais pelos atos praticados por estes e a responsabilidade dos pais por atos praticados por menores sob sua égide.
A propósito, leciona Maria Helena Diniz (2002, p. 250) que: "A responsabilidade paterna, como decorrente que é dos deveres do poder familiar, não depende de ser ou não imputável o filho, pelo menos em face os princípios comuns dos arts. 186, 927, 932, I e 933".
Portanto, do ponto de vista da responsabilidade civil, o século XIX iniciou (e tal idéia se manteve) creditando resposta similar tanto ao animal quanto ao menor, ou seja, cabe ao "proprietário" à responsabilidade dos atos praticados por eles.
1.2- As Ordenações Filipinas.
Quando D. João VI desembarcou no Brasil com sua corte, em 1808, estavam em vigência no Brasil, no plano do Direito Penal, as Ordenações Filipinas. Estas Ordenações vigeram em Portugal a partir de 1603 e no Brasil até 1830, com o implemento do Código Penal do Império.
Naquele tempo, como sabido, os primados da Igreja Católica eram preponderantes e tal circunstância foi estendida ao conhecimento jurídico; portanto, o Direito Canônico presidia a jurisdição do Estado. Pelo catecismo católico, a idade da razão plena era atingida aos 07 (sete) anos. Como o Estado não se separava da Igreja, tal idade foi estendida à responsabilidade penal.
A propósito do tema, José Henrique Pierangelli (apud SARAIVA, 2005, p. 27) destaca que as Ordenações Filipinas asseguravam apenas, em favor dos menores de dezessete anos, a inaplicabilidade da pena de morte; reportando-se ao Título CXXXV do Livro Quinto daquele diploma legal:
Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte anos cometer qualquer delito, dar-lhe-á a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e cinco anos passasse.E se for de idade de dezessete anos até vinte, ficará ao arbítrio dos julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E neste caso olhará o julgador o modo com que o delito foi cometido e as circunstâncias dele, e a pessoa do menor; e se achar em tanta malícia, que lhe pareça que merece pena total, dar-lhe-á, posto que seja de morte natural.E parecendo-lhe que não a merece, poder-lhe-á diminuir, segundo qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delito foi cometido.E quando o delinqüente for menor de dezessete anos cumpridos, posto que o delito mereça morte natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do julgador dar-lhe outra menor pena. E não sendo o delito tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a disposição do Direito comum.
Em suma: quando D. João embarcou no Brasil, no início do século XIX, a imputabilidade penal tinha início aos sete anos de idade, eximindo-se o menor, em qualquer caso, da pena de morte. Entre dezesseis e vinte um anos havia um mecanismo peculiar, no qual o adolescente poderia ser condenado à morte, ou, a depender do caso, ter sua pena atenuada. A imputabilidade penal plena era observada àqueles maiores de vinte um anos, aos quais era permitida até a pena de morte em certos delitos.
Enquanto no Brasil, notadamente atrasado em aspectos políticos e sociais, vigorava essa legislação vetusta e violentadora, na Inglaterra, pais de notável cunho iluminista, era editada a primeira norma de combate ao trabalho infantil, conhecida como "Carta dos Aprendizes", de 1802; este ato normativo limitava a jornada de trabalho à criança trabalhadora ao máximo de doze horas diárias e proibia o trabalho noturno (SARAIVA, 2002, p. 19).
1.3- O Código Penal do Império de 1830.
Como corolário da proclamação da "independência" do Brasil em 1822, deu-se em 1830 a criação do primeiro Código Penal brasileiro. Este codex fixava a idade penal plena em 14 anos. [01]
O código previu ainda um critério biopsicológico para punição de crianças entre sete e catorze anos. Consoante lição de Rolf Koerner Júnior (1998, pp. 124-125), em parecer de sua lavra:
Declaração do Tribunal de Relação da Corte, proferida em 23 de março de 1864, assentou que os menores de sete anos não tinham responsabilidade alguma, não estando, portanto, sujeitos a processo. Entre os sete e quatorze anos, os menores que obrassem com discernimento poderiam ser considerados relativamente imputáveis e, nos termos do artigo 13 do mesmo Código, serem recolhidos às casas de correção "pelo prazo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda à idade de dezessete anos.
Mister relembrar, para melhor contextualização das proposições, que em 1840 foi procedida a emancipação de Dom Pedro II, que aos 14 anos de idade tornou-se imperador do Brasil, extinguindo-se o período da Regência. O imperador, malgrado ter apenas 14 anos de idade, era considerado, à época, adulto, e contraiu matrimônio aos dezessete anos.
1.4- Os avanços na luta pelos direitos em meados do século XIX.
Na vigência do Código Penal de 1830, travava-se no Brasil a luta abolicionista; enquanto isso, nos Estados Unidos, tomava força o movimento feminista, o qual, mais tarde, germinaria a ideologia de um Direito de Menores.
É preciso lembrar, para efeito ilustrativo, o dia 8 de março de 1857, marcado por ser o dia de uma das primeiras manifestações organizadas por trabalhadores do sexo feminino. Como cita o magistrado João Batista Costa (2005, pp. 29-30):
Centenas de mulheres das fábricas de vestuário e têxteis de Nova Iorque iniciaram uma marcha de protesto contra os baixos salários, o período de 12 horas diárias e as más condições de trabalho. Durante a greve, deu-se um incêndio que causou a morte a cerca de 130 manifestantes. A data de 8 de março restou reverenciada, desde 1975, pela ONU, como o Dia Internacional da Mulher.
No caso específico do Brasil, considera-se um marco histórico na luta pelos direitos humanos o movimento abolicionista, mais especificamente com a edição da Lei do Ventre Livre (Lei 2.040, de 28.09.1871).
A referida Lei, que em seu tempo constituiu indubitável avanço, se aposta em análise contemporânea, reputar-se-ia como cruenta; seu teor costuma ser ignorado nas escolas quando se estuda o movimento abolicionista. Como exemplo de tal indiferença, vejamos:
Art.1º- Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.
§1º. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.
No primeiro caso o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.
No final do século XIX e início do século XX o Brasil veio a conhecer as primeiras instituições públicas de abrigamento, justamente para abrigar esses jovens "livres". Antes disso, a Igreja tinha o quase monopólio da atividade assistencial; na prática, os menores "livres" eram acolhidos pelas Santas Casas de Misericórdia (instituição religiosa), locais de abandono intelectual, afetivo e material (MARCÍLIO, 1998, p. 97).
1.5- O Código Penal de 1890.
Em 1889, com o advento da República, o antigo Código Penal do Império foi substituído pelo Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (primeiro nome dado ao Estado republicano brasileiro). O referido Código se deu com a publicação do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890.
Como visto, no início do século a imputabilidade penal se dava aos sete anos de idade e, pelo Código Penal do Império, tal critério puramente biológico foi substituído por um sistema biopsicológico, o qual era baseado no discernimento entre sete e quatorze anos. O Código Republicano de 1890, por sua vez, estipulou ser irresponsável penalmente o menor com idade até nove anos (art. 27, 1º).
A imputabilidade plena permanecia, tal como no Código Imperial, fixada para os maiores de quatorze anos (art.30).
Acerca do Código Penal de 1980, o critério biopsicológico, fundado ainda na premissa do "discernimento" foi ratificado com as seguintes modificações: o maior de nove anos e menor de 14 anos submeter-se-ia à avaliação do Magistrado (art. 27, 2º) sobre "a sua aptidão para distinguir o bem do mal, o reconhecimento de possuir ele relativa lucidez para se orientar em face das alternativas do justo e do injusto, da moralidade e da imoralidade, do lícito e do ilícito".
Repare-se na subjetividade do comando normativo proposto pelo referido Código. Caberia ao Magistrado, de acordo com critérios "objetivamente" propostos pela norma, mas efetivamente subjetivos, aquilatar o grau de discernimento do menor infrator, para assim aplicar a pena que lhe fosse mais arrazoada. Sabe-se que por mais imparcial que seja o juiz, não pode olvidar de critérios subjetivos adquiridos por experiências próprias. Daí a falha desse sistema [02].
Ao final do século XIX, em suma, por critério "objetivo", a imputabilidade penal era alcançada aos quatorze anos, podendo retroagir aos nove, conforme o discernimento do infrator. Comparada esta era com o início do século, quando a imputabilidade penal era fixada em nove anos, podemos considerar que já houve avanço.
1.6- O fim do século XIX. Primeiro Tribunal de Menores.
Remonta ao ano de 1896, final da última década do século XIX, um grande marco histórico para o Direito da Criança, o chamado "Caso Marie Anne". O caso é informado como precedente histórico da luta pelos direitos da infância nos Tribunais do mundo. Conta João Batista Costa Saraiva (2005, p.33) que:
A menina de nove anos sofria intensos maus-tratos impostos pelos pais, fato que chegou ao conhecimento público de Nova Iorque daquela época. O certo é que os pais julgavam-se donos dos filhos e que poderiam educá-los como lhes aprouvesse. O castigo físico- até hoje utilizado por alguns- era visto como método educativo e sendo as crianças- como animais- propriedade de seus donos, no caso dos pais, poderiam ser educadas da forma que entendessem.
O fato é que a situação degradante, de tão notória que ficou, chegou aos Tribunais. Daí é que se encontra o ponto crucial e chocante: a entidade que ingressou em juízo para pleitear os direitos de Marie Anne e elidi-la dos seus agressores foi a Sociedade Protetora dos Animais de Nova Iorque. A ironia do caso é que não existia uma sociedade que protegesse a criança, mas já havia uma entidade protetora de animais.
Com o fito de defender os direitos da criança, a fim de demonstrar legitimidade para agir, a Sociedade alegou que se Marie Anne fosse um cavalo, um cachorro ou um gato não deveria ser submetida a tratamento tão brutal, imagine sendo uma pessoa.
De qualquer forma, a ação foi vencida pela entidade; teve início uma nova era no Direito. Antes tratada como "coisa", a criança passou a condição pelo menos de protegida do Estado. Estava nascendo o Direito de Menores. Já em 1899, instalava-se no Estado Americano de Illinois o Primeiro Tribunal de Menores do Mundo.
2. O século XX
2.1- Contextualização jurídica no início do século
Como visto, o movimento das mulheres estava em plena evolução no início do século XX; reivindicava, principalmente, o direito ao voto e à igualdade de oportunidades e direitos em relação aos homens.
O primeiro Tribunal de Menores foi criado em Illinois, nos Estados Unidos da América, em 1899. Como era de se esperar, outros países seguiram o modelo americano e aderiram à sistemática (em ordem cronológica): Inglaterra em 1905, Alemanha em 1908, Portugal e Hungria em 1911, França em 1912, Argentina em 1921, Japão em 1922, Brasil em 1923, Espanha em 1924, México em 1927 e Chile em 1928.
De maneira paralela, construía-se a Doutrina do Direito do Menor, fundamentada no binômio carência/delinqüência. Dois episódios se mostraram fundamentais no início do século XX. O primeiro foi a realização do Congresso Internacional de Menores, realizado em Paris, no interstício de 29 de junho a 1º de julho de 1911. Esse evento foi fundamental porque além de reunir grandes juristas renomados à época, também sedimentou o que seria o novo conjunto de princípios do novo direito. Ademais, influenciou a criação de inúmeros Tribunais especializados na Europa (MENDEZ, 1998, p. 53).
Infelizmente, no entanto, a política adotada pelos ditames principiológicos discutidos no evento, mostraram-se extremamente discriminatórias e ineficazes. A pretexto de "proteger" o menor, a doutrina mitigava vários princípios gerais (como o da a legalidade). Em suma, dispensava-se ao menor tratamento igual ao destinado aos adultos, igualando aqueles que não eram iguais. Estava sendo abarcada a Doutrina da Situação Irregular, que consagrava o binômio carência/delinqüência.
A critica que pode ser feita quanto à violação ao princípio da legalidade, como destaca Emílio Garcia Mendez (1998, p. 53), é que o juiz passou a ter um amplo poder em face do menor e prerrogativas de um pater familiae. A pedra angular das reformas consistiu em alterar substancialmente as funções do juiz. A jurisdição de menores deveria possuir caráter familiar e o juiz deveria ser um pai e um juiz de vigilância.
O segundo evento de grande relevância no início do século XX foi a Declaração de Gênova dos Direitos da Criança, porquanto foi, no dizer do professor João Batista Costa Saraiva (2005, p.38), tal evento constituiu-se "no primeiro instrumento internacional a reconhecer a idéia de um Direito da Criança".
2.2- Da Consolidação das Leis Penais em 1922 ao Código Mello Matos de 1927.
O binômio carência/delinqüência, que marcou o sistema adotado no início do século, e a conseqüente confusão ontológica, que não distinguia, em tese, os abandonados dos infratores, serviu como fundamento para a criação das primeiras legislações brasileiras no tocante ao "novo" Direito da Criança.
Entre 1921 e 1927, importantes inovações legislativas foram inseridas no ordenamento jurídico pátrio. Vejamos os principais.
A Lei. 4.242, de 5 de janeiro de 1921, por exemplo, abandonou o sistema biopsicológico vigente desde o Código Penal da República, em 1980. Esse diploma assevera, no art. 3º, §16, a exclusão de qualquer processo penal de menores que não tivessem completado quatorze anos de idade. Passou-se a adotar, portanto, um critério objetivo de punibilidade, qual seja, a idade.
E seguida, com o Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, estabelecia-se o Código de Menores (também conhecido como Código Mello Matos), preceituando que quando com idade maior de 14 anos e inferior a 18 anos, submeter-se-ia o menor abandonado ou delinqüente ao regime estabelecido neste Código. Parece ter sido revivido, pelo menos em parte, o critério biopsicológico para análise de aplicabilidade na norma processual penal.
2.3- Progresso no Direito das Mulheres. Rápido Paralelo.
Enquanto o Direito da Criança dava os primeiros passos à ascensão, o movimento em prol dos Direitos da Mulher, no âmbito internacional, já angariava grandes conquistas.Conta o Professor João Batista da Costa Saraiva (2005, pp. 41-42) que no Brasil, em 1917, Deolinda liderou uma passeata de 84 "sufragettes", no Rio de Janeiro. Era a criação de uma Associação de Mulheres visando a centralizar os esforços para intensificar a luta pelo voto.
No ano de 1928, o Estado do Rio Grande do Norte se fez pioneiro no direito ao voto feminino. O então Governador Juvenal Lamartine antecipou-se à União e introduziu na Constituição do seu Estado a alteração da Legislação Eleitoral, proporcionando às mulheres potiguares o direito ao sufrágio. Naquele mesmo ano, ainda no estado potiguar, foi eleita a primeira Prefeita do Brasil: Alzira Soriano de Souza, no município de Lages. Finalmente, em 1932, o Presidente Getúlio Vargas promulgou o novo Código Eleitoral, que garantiu à mulher o direito ao voto.
Esse paralelo mostra um ponto importante: a mulher conquistou seu espaço de maneira célere devido a sua alta organização e grande capacidade de reunião. Os menores, no entanto, raramente teriam tais atributos e eram poucos os que reclamavam pelos direitos deles. Daí a necessidade de uma tutela efetiva de Proteção Integral às crianças e aos adolescentes.
2.4- O Código Penal de 1940.
O tema da responsabilidade penal juvenil no Código de 1940, a seguir o modelo tutelar vigente, fundou-se na premissa de imaturidade do menor.
A exposição de motivos do referido código bem demonstra essa acepção quando reza que "não cuida o projeto dos imaturos (menores de 18 anos) senão para declará-los inteira e irrestritamente fora do direito penal (art. 23), sujeitos apenas à pedagogia corretiva da legislação especial".
A legislação especial citada na exposição de motivos, relembre-se, tinha como objeto, sem distinção, tanto os delinqüentes, quanto os abandonados, ou seja, eram levados às casas de reforma tanto os adolescentes infratores como os abandonados; eram tratados sem distinção. Em 1942, no Governo de Getúlio Vargas, com o desiderato de atender essas pessoas, criou o SAM (Serviço de Assistência aos Menores).
No dizer de Antônio Carlos Gomes da Costa (1991, p. 14), o SAM era um órgão do Ministério da Justiça que funcionava como um similar do Sistema Penitenciário Geral com uma diferença: servia para a população menor de idade. O SAM possuía orientação eminentemente correicional-repressiva; seu sistema era baseado em internatos (casas de correção e reformatórios). Seguia o modelo europeu-continental de reforma juvenil. O que reforça a tese de serem tratados sem distinção os delinqüentes dos abandonados era o fato de que, em tais sistemas, tanto eram abrigados adolescentes autores de infração penal como também patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para os menores carentes e abandonados.
A idéia de incapacidade dos menores os colocava em condição equivalente aos inimputáveis por condição psíquica, tanto que as medidas aplicáveis aos menores se efetivavam por tempo indeterminado, tal como ocorria com aplicação das medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis por incapacidade mental. A premissa da total irresponsabilidade do menor é corolário da tutela Doutrinária da Situação Irregular.
A Segunda Guerra Mundial, oficialmente terminada no final da década de 40, despertou o mundo para os direitos da pessoa humana. As atrocidades cometidas contra os judeus e outras civilizações, além dos horrores próprios de qualquer guerra, foram mostrados ao mundo como uma vitrine da pior face do ser humano: as crueldades que podemos cometer contra o próximo. Viu-se como premente a necessidade de serem instituídos preceitos que regrassem e protegessem a dignidade da pessoa humana, em sua acepção mais ampla.
É nesse contexto que surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Onze anos depois, a ONU produziria um novo documento fundamental, A Declaração dos Direitos da Criança, alertando a necessidade de proteger a geração garantidora do amanhã.
2.5- A Declaração Universal dos Direitos da Criança.
A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil, se constitui, como afirmado, em um mecanismo fundamental para conquistas relevantes nos direitos da criança. A legislação internacional começa a se livrar das amarras da cultura tutelar (total irresponsabilidade juvenil) para dar os primeiros passos para atingir a Doutrina da Proteção Integral. Tenta-se retirar o menor da condição de objeto da norma e transformá-lo em sujeito da norma, titular de direitos e obrigações.
No contexto internacional, no final da década de 50 e início dos anos sessenta, surgem no mundo diversas conquistas inerentes aos Direitos do Homem, notadamente os ligados à dignidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, os negros obtêm importantes avanços, dos quais pode ser citado o acesso à Universidade em condições igualitárias com os brancos.
A Lei 4.513/64 estabelecia a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, criando-se uma gestão centralizada e vertical, baseada em padrões uniformes de atenção direta implementados por órgãos executores inteiramente uniformes em termos de conteúdo, método e gestão (COSTA, 1991, p. 18).
O órgão nacional gestor desta política passa a ser a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor), e os órgãos estaduais eram as FEBEMs (Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).
O professor João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 47) comenta a respeito da referida Lei:
Esta ordem legislativa (que teria mais adiante seu arcabouço completado pelo Código de Menores de 1979- Lei 6.697) não se dirigia ao conjunto da população infanto-juvenil brasileira. Movida pela Doutrina da Situação Irregular, tinha por destinatários apenas as crianças e os jovens considerados em situação irregular, onde incluíam aqueles menores em estado de necessidade em razão da manifesta incapacidade dos pais para mantê-los, colocando-os na condição de objeto potencial de intervenção do sistema de Justiça, os Juizados de Menores.
Consoante verificado, a norma tutelou o princípio da situação irregular, que não diferencia delinqüente de carente, portanto, parte de um pressuposto que reina até os tempos hodiernos: da pobreza nasce o crime. O cunho eminentemente tutelar da legislação e a idéia de "criminalizar" a pobreza, culminarão com o advento do Código de menores de 1979, a positivação da situação irregular.
2.6- O Código de Menores, Lei 6.697/79. A Doutrina da situação Irregular.
O Código de Menores (Lei 6.697/79 de 10 de outubro de 1979) foi claramente inspirado na Doutrina da Situação Irregular. Em síntese, tal Doutrina parte da premissa de que o menor é objeto da norma somente quando se encontrar em estado de abandono social.
O artigo 2º do mencionado corpo normativo preceituava:
"Art.2º: Para efeito deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I- privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II- vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III- em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração de atividades contrária aos bons costumes;
IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V- com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI- autor de infração penal." (grifo nosso)
É fácil perceber, em uma rápida passagem de olhar pelo texto da norma acima, que o menor negligenciado é equiparado àquele que cometeu uma infração penal. A declaração da situação irregular tanto pode derivar de sua conduta pessoal (infração praticada por ele), como da família (maus-tratos) ou da própria sociedade na qual está inserido (abandono).
Mary Beloff (1991, pp. 9-21), professora de Direito Penal Juvenil na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, propõe uma série de distinções entre a Doutrina da Situação Irregular, que imperava no Código de Menores e nas legislações latino-americanas da época, e a Doutrina da Proteção Integral, que foi adotada pela Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança (dominante na nova ordem internacional).
Do excelente trabalho da professora, podem ser reputadas como características da situação irregular:
a) As crianças e os jovens aparecem como meros objetos de proteção, ou seja, não são reconhecidos como sujeitos de direito.
b) Estabelece-se uma distinção entre as crianças que nasceram em lares abastados e aquelas em "situação irregular". Em outras palavras, a definição de criança não se confundiria com a de menor (contradição em termos). Enquanto a este seria aplicado o Juízo de Menores, àquela caberia o Direito de Família.
c) Surge a idéia de que o menor é absolutamente incapaz e irresponsável. Por tal motivo, sua opinião seria irrelevante.
d) O juiz de menores, ao tratar da questão da criminalidade juvenil, deveria locupletar as lacunas deixadas pela falta de políticas públicas, porquanto, como visto, os abandonados eram tratados tais como os delinqüentes. Tal fenômeno ficou conhecido como "sequestro e judicialização dos problemas sociais" (SARAIVA, 2005, p. 48).
e) As garantias inerentes ao Estado de Direito somente eram asseguradas aos que fossem adultos, já que os menores não eram sujeitos de direito.
f) As garantias processuais asseguradas aos adultos para aplicação de medidas constritivas de direito não seriam aplicadas aos menores, posto que a aplicação de sanção não está submetida necessariamente ao fato cometido e sim ao requisito de estar o menor em "situação irregular".
O professor João Batista Costa Saraiva (2005, p. 53) conta que no período de vigência do Código de Menores, cerca de 80% dos menores que ocupavam o sistema FEBEM não cometeram infrações penais definidos em nossa legislação. Estavam lá não por serem autores de infrações, mas por serem vítimas do descaso. Existia, na verdade, uma espécie de controle da pobreza. Cerceavam a liberdade dos menores sem respeitar garantias mínimas processuais.
Era preciso mudar tal acepção. No tocante ao Direito Penal houve diversas tentativas de alteração da legislação penal brasileira. No Projeto Hungria, em 1963, era mantida a idade de inimputabilidade penal aos dezoito anos, no entanto, seria possível incluir no sistema de aplicação penal ao maior de dezesseis anos que fosse considerado maturo. Seria, portanto, a retomada do critério biopsicológico da imputabilidade penal, afastado pelo Código de 1940. Esse projeto do saudoso Nelson Hungria, todavia, nunca entrou em vigor [03].
A percepção de que a imputabilidade penal será aplicada ao menor com capacidade de discernimento é superada em parte pela Doutrina de Assis Toledo, que inspirou a Reforma Penal de 1984. A Exposição de Motivos da Lei 7.209/84 (reforma) assevera que a imputabilidade penal aos dezoitos anos é fixada por um critério de política criminal.
A reforma penal de 1984 deu nova redação à parte geral do Código penal brasileiro. Manteve, em seu artigo 27, a imputabilidade penal aos dezoito anos, observando um critério puramente biológico.
Deveras pedagógica é a Exposição de Motivos de 1984 ao tratar da inimputabilidade penal aos menores de 18 anos, por isso passamos a expô-la:
Manteve o Projeto a inimputabilidade penal ao menor de 18 (dezoito) anos. Trata-se de opção apoiada em critérios de política criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, isto é, naturalmente anti-social na medida em que não é socializado e instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinqüente, menor de 18 (dezoito) anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinqüente adulto, expondo-o à contaminação carcerária.
Com a publicação da Constituição Federal de 1988, a inimputabilidade penal do menor de 18 anos foi finalmente elevada à categoria de garantia fundamental. No plano interno, como veremos, a Carta da República erigiu a inimputabilidade do menor de 18 anos como clausula pétrea.
2.7- A Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança.
Como visto, no ano de 1979 vigorava no Brasil o Código de Menores. A despeito disso, no âmbito internacional, notadamete na Europa, a ONU estabelecia aquele mesmo interregno como Ano Internacional da Criança. Em 1989, dez anos após, portanto, ocorre a Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança.
Para tanto, a Comissão de Direitos Humanos da ONU organizou um grupo de trabalho aberto para elaborar a questão. Em 1989, a Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas, reunida em Nova Iorque, aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Desde então, o antes famigerado Direito da Infância foi sedimentado em um documento normativo global, idôneo a vincular os países signatários, entre os quais se inclui o Brasil (SARAIVA, 2002, p. 15). A tão aclamada Convenção consagrou a Doutrina da Proteção Integral; é considerado como o principal documento internacional de Direitos da Criança (SARAIVA, 2005, p. 56).
O epigrafado documento tratou das regras mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça de Menores, as regras mínimas para a proteção dos jovens privados de liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinqüência juvenil. Este corpo de legislação internacional, com força coativa de lei para os países signatários (entre os quais se inclui o Brasil), modifica total e em definitivo a vetusta doutrina da situação irregular. A Doutrina da Proteção Integral foi encampada pela Constituição Federal [04], tendo sido aprovada pelo plenário do Congresso Constituinte pela esmagadora votação de 435 votos a favor e apenas 08 contra. O texto pátrio Constitucional (vigente em outubro de 1988) se antecipou à Convenção, porquanto o texto desta somente foi aprovado pela Assembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 (SARAIVA, 2002, p. 15). [05]
A Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança estão alicerçadas a partir destes quatro documentos:
a) Convenção Internacional sobre Direitos da Criança (20/11/1989);
b) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração dos Direitos dos Menores, conhecidas como "Regras de Beijing" (29/11/1985);
c) Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade (14/12/1990);
d) Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecidas mundialmente como "Diretrizes de Riad" ou "Riad Rules" (14/12/1990).
Assevera João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 57) [06], ao mencionar a importância dos citados documentos, notadamente pelo o implemento da Doutrina da Proteção Integral:
Este conjunto normativo revogou a antiga concepção tutelar, trazendo a criança e o adolescente para uma condição de sujeito de direito, de protagonista de sua própria história, titular de direitos e obrigações próprios de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, dando um novo contorno ao funcionamento da Justiça da Infância e Juventude, abandonando o conceito de menor, como subcategoria de cidadania. (grifo nosso)
Com a inclusão do menor no sistema de garantias individuais, notadamente as de caráter processual penal, estes passaram a gozar efetivamente de tais prerrogativas, tal como já ocorria com os maiores de 18 anos. Os menores não seriam mais meros objetos de direitos e sim sujeitos de direitos.
Continua o supracitado autor, destacando que malgrado serem fundamentais, as garantias processuais penais não eram asseguradas aos menores em "situação irregular", porquanto o Estado, a pretexto de proteger o menor, violava os princípios da reserva legal, do devido processo legal, do pleno e formal conhecimento da acusação, da igualdade na relação processual, da ampla defesa e do contraditório, da defesa técnica por advogado, da privação de liberdade como excepcional e somente por ordem expressa da autoridade judiciária o em flagrante, da proteção contra a tortura e tratamento desumano ou degradante, entre outros inúmeros postulados (SARAIVA, 2005, p. 58).
No louvável trabalho de Mary Beloff (1999, pp. 18-9), a autora lista as principais características da Doutrina da Proteção Integral, quais sejam:
a) São definidos os direitos fundamentais das crianças, os quais são dotados de plena eficácia, cuja violação ou ameaça devem ser expurgadas pela família, sociedade, de sua comunidade e do Estado. Estes entes, sem embargo de outros, devem restabelecer o exercício do direito atingido, por meio de mecanismos e procedimentos efetivos e eficazes, tanto administrativos quanto judiciais, se for o caso.
b) Não mais existem as imprecisões terminológicas e conceituais observadas na Doutrina ultrapassada, tas como "categoria de risco", "perigo moral ou material", "circunstâncias especialmente difíceis", situação irregular", entre outras excrescências.
c) Ocorre uma mudança de interpretação fática: quando uma criança encontra-se ameaçada ou violada, implica dizer que a criança não está em "situação irregular", mas sim o seu responsável, seja o Estado, a sociedade ou a família, já que não cumpriram com suas incumbências de proteção.
d) É estabelecida uma importante diferenciação estrutural, posto que são separadas as competências sociais, voltadas principalmente para questões de abandono pontual, das competências jurisdicionais penais, voltadas precipuamente para questões atinentes às infrações penais (fim do binômio carência/delinqüência).
e) Proteção efetiva dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes: diferentemente do modelo anterior, que visava à "proteção" do menor por meio de medidas que mais prejudicavam que protegiam. No novo modelo são preconizadas garantias positivas em favor do menor, que efetivamente o protegem contra os riscos sociais.
f) Este conceito de proteção resulta no reconhecimento e promoção de direitos, sem violá-los nem restringi-los. Também por este motivo a proteção não pode significar intervenção estatal coercitiva, salvo se agindo na estrita legalidade legítima.
g) Âmbito universal do novo conjunto normativo; com o fim do binômio carência/delinqüência, não faria mais sentido a Justiça de Menores somente para aqueles que se encontrasse em situação de abandono. A proteção integral não faz acepção de classe para definição de sujeição à nova ordem.
h) Não se tratam mais de pessoas incapazes ou incompletas, mas sim de pessoas completas, cuja particularidade é que está em desenvolvimento. Por isso são sujeitas de todos os direitos aplicáveis às demais pessoas, além de outros específicos que lhe dão uma condição peculiar, haja vista sua especial qualidade de pessoa em desenvolvimento.
i) Corolário dessa premissa é um imperativo lógico: o direito de a criança ser ouvida e sua palavra e opinião serem devidamente consideradas.
j) O juiz da Infância, obviamente, está limitado em sua intervenção pelo sistema garantidor.
k) Na questão do adolescente em conflito com a lei, enquanto autor de uma conduta tipificada como crime ou contravenção, reconhecem-se todas as garantias que correspondem aos adultos nos juízos criminais, segundo as constituições e os instrumentos internacionais pertinentes, mais garantias específicas. Destas, a principal é de que os adolescentes devem ser julgados por tribunais específicos, com procedimentos próprios e que a responsabilidade do adolescente pelo ato cometido resulte na aplicação de sanções distintas daquelas do sistema de adultos, estabelecendo, deste ponto de vista, uma responsabilidade penal juvenil distinta daquela do adulto.
l) Por conta da nova ordem, deve ser estabelecido um rol de medidas específicas aplicáveis ao adolescente infrator, que preverá somente em caráter excepcional, pedagógico e com limitação temporal severa, a medida de privação de liberdade.
Enfim, a Doutrina da Proteção Integral incorpora à questão do adolescente infrator a proposta de Luigi Ferraioli, conceituada por Noberto Bobbio como um sistema de garantismo, com a construção de colunas mestras do Estado de Direito (intransponíveis e inquebrantáveis), que tem por fundamento lógico a tutela das liberdades do indivíduo (e, portanto, das crianças e dos adolescentes enquanto sujeitos de direito) face às variadas maneiras de exercício arbitrário de poder estatal, notadamente aquelas observadas no declaradamente falho direito penal. [07]
2.8- A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Constituição Federal de 1988, consoante já asseverado, antecipou-se à Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança e encampou o princípio da proteção integral, proclamando-o positivamente nos arts. 227 e 228. [08]
O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 seguiu a postura ideológica da Carta da República no que toca à doutrina da proteção integral. Consoante ressalta o professor João Batista da Costa Saraiva (2005, pp.72- 73), o Brasil não somente foi o primeiro país da América Latina a positivar em seu ordenamento infraconstitucional os primados preconizados pela Convenção das Nações Unidas, como também elevou tais princípios à categoria de norma constitucional petrificada, já que trata de direitos e garantias individuais da pessoa humana.
O princípio da prioridade absoluta, insculpido no art. 227 da Constituição Federal, está ratificado no art. 4° do citado conjunto normativo infraconstitucional.
Como destaca o professor João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 76), o Estatuto da Criança e do Adolescente se estrutura a partir de três grandes sistemas de garantia, harmônicos entre si, quais sejam:
a) o Sistema Primário, que dá conta das Políticas Públicas de Atendimento a crianças e adolescentes; de caráter universal, visando a toda população infanto-juvenil brasileira, sem quaisquer distinções.
b) o Sistema Secundário que trata das Medidas de Proteção dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, não autores de atos infracionais, de natureza preventiva, ou seja, crianças e adolescentes enquanto vítimas, enquanto violados em seus direitos fundamentais. As medidas protetivas visam a alcançar crianças e adolescentes enquanto vitimizados.
c) o Sistema Terceário, que trata das medidas sócio-educativas, aplicáveis a adolescentes em conflito com a Lei, autores de atos infracionais, ou seja, quando passam à condição de vitimizadores.
Esse tríplice sistema, consoante o autor (2005, p. 57), opera de forma harmônica, com acionamento gradual de cada um deles. Quando a criança ou o adolescente escapar ao sistema primário de prevenção, aciona-se o sistema secundário, cujo grande agente operador deve ser o Conselho Tutelar. Estando o adolescente em conflito com a lei (transgressor de normas penais), o terceiro sistema de prevenção, operador das medidas sócio-educativas, será acionado, o que pode ser chamado genericamente de "Sistema de Justiça" - Polícia / Ministério Público/ Defensoria Pública/ Judiciário/ Órgãos Executores das Medidas Sócio-educativas.
O desenvolvimento histórico do Direito da Criança e do Adolescente e suas implicações nacionais, mormente na categoria de norma constitucional, implica a adoção, hodiernamente, do princípio da proteção integral, sendo qualquer medida reducionista eminentemente inconstitucional, tanto do ponto de vista legal (por ferir núcleo sensível solidificado pelo histórico constitucional), quanto no aspecto da legitimidade (por não ser razoável incluir a pessoa em peculiar condição de desenvolvimento no sistema penal geral).
Consoante assevera o mestre Eugênio Couto Terra (apud SARAIVA, 2005, p. 80), o artigo 228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto é preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição jurídica outorgada, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, é insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer possibilidade de que sofra alteração.
Lembremos, ademais, que a evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente assegurou a esses clientes a condição de sujeitos de direito e não meramente de objeto de direito. Daí a necessidade de, oportunamente, investigar se esses indivíduos sociais possuem ou não direito subjetivos e garantias individuais contra eventuais arbítrios estatais. Tal estudo, portanto, será exposto em tópico próprio.