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A ordem urbanística como direito difuso

23/01/2010 às 00:00
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1 Introdução

O processo de evolução urbana impõe à administração municipal a regularização da ocupação do espaço urbano respeitando os paradigmas do desenvolvimento sustentável. O simples e desordenado crescimento urbano é um dos causadores de agressões ao meio ambiente sistematicamente considerado.

A partir desse pressuposto, desenvolveremos uma discussão, à luz da política constitucional urbana e do Estatuto da Cidade, sobre os paradigmas que devem orientar um desenvolvimento sustentável que respeite o equilíbrio ecológico, mais especificamente da ecologia urbana.

Abordaremos a importância do cumprimento das funções sociais da cidade, de acordo com os ditames constitucionais, e a relevância do Plano Diretor enquanto instrumento básico de desenvolvimento e expansão urbana e ao mesmo tempo como instrumento disciplinador da ocupação urbana que ameace o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Isso tudo induz a uma abordagem conjuntural: do desenvolvimento sustentável, da política de desenvolvimento através do Plano Diretor, das funções sociais da cidade, culminando com uma visão que considera a ordem urbanística como bem difuso. Respeitadas, portanto, tais premissas, concluiremos sobre a definição de ordem urbanística como interesse difuso.

O nosso propósito, em verdade, é considerar todos esses aspectos respeitando a definição de cidade como meio ambiente artificial que deva ser preservado no âmbito de um Estado Democrático de Direito.

Desse modo, a distribuição espacial da cidade, dentro de um processo evolutivo expansionista, há de considerar o cumprimento da função social da propriedade de modo planejado e efetivado pelo Plano Diretor com respeito a uma ordem urbanística sustentável.


2O crescimento urbano e o necessário desenvolvimento sustentável

A urbanização é um fato irreversível em todo planeta [01]. Um fato condicionado, em efeito, pela revolução industrial a partir de quando se percebeu que a migração campo-cidade ocorreu de modo acelerado.

Mas desde os tempos remotos, o homem, gregário, na sua relação com o meio ambiente natural fez surgir o meio ambiente construído ou artificial modificando a natureza e criando um espaço de interação com ela.

Contudo o crescimento demográfico notório estabeleceu-se com a revolução industrial que impulsionou o crescimento das cidades que se agigantavam absorvendo a mão de obra rural ávida por trabalho que se tornara escasso nos feudos

Só que esse processo ocasionou irregularidades no adensamento populacional das cidades. O notório crescimento das cidades não correspondia a uma ocupação ordenada do espaço urbano. As cidades industriais cresciam sem planejamento adequado apto promover uma regularidade e equanimidade na distribuição do solo.

A segregação econômica, dentre tantos fatores, ocasionou uma explosão demográfica no século XX desordenada e excludente. Esse processo foi sendo verificado em várias regiões do mundo de modo diversificado [02].

O meio urbano é a concretização desse processo. A cidade se configura, a partir do processo de urbanização, como o meio ambiente artificial por excelência desencadeado pelo crescimento populacional indisciplinado. Embora tenhamos exemplos de cidades planejadas desde a fundação, o caso é que a constituição do meio urbano como meio ambiente artificial talhado por mão dos homens não segue, em regra, um planejamento.

Consideraremos aqui, convencionalmente, o "meio urbano", a cidade, como "meio ambiente artificial". Especialmente porque a esse aspecto do meio ambiente está diretamente relacionado o conceito de cidade, pois o vocábulo "urbano", do latim urbs, urbis, "significa cidade e, por extensão, os habitantes desta" (FIORILLO, 2001, p. 196). Portanto, urbano significa cidade, considerando-se, implicitamente, as relações indivíduo e meio; diga-se, meio ambiente e, por resultar dessas relações, meio artificial.

.Com essa definição necessária, passemos a considerar que a urbanização é resultante do progresso tecnológico, que entre outros fatores, tal como afirmamos acima, é artifício da revolução industrial. Nesse contexto é devido considerar que o crescimento econômico influiu no crescimento urbano, a partir do processo de transformação encetado pela revolução industrial.

Houve assim, uma aceleração dos resultados das relações de produção e, por conseguinte, da urbanização. Entretanto, o crescimento por si só, não significa desenvolvimento. O crescimento é par de um processo quantitativo, enquanto que desenvolvimento prima pela qualidade do crescimento. Em outras palavras, este "é induzido por um fator de fora, não provoca propriamente progresso mas infla a economia" (NUSDEO, 2001, p. 350).

Se, em sentido amplo, quando há apenas crescimento econômico sem o necessário desenvolvimento e, tendo em conta que as cidades são resultantes do processo econômico, perde-se em qualidade, quando o crescimento prepondera, sem o necessário equilíbrio na relação homem versus meio ambiente.

Assim sendo, o espaço urbano é inflado sem um ordenamento estruturante e sustentável com fim a um desenvolvimento, ocorrendo ausência funcional da cidade enquanto meio vital de convivência humana.

A concentração urbana gera enormes problemas. Deteriora o ambiente, "provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e de saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem urbana" (SILVA, 2000, p. 27). Essa constatação é o aspecto do crescimento que mais se evidencia. O aspecto inverso em termos de crescimento econômico e urbano que reivindicam um o desenvolvimento sustentável.

Tendo em conta todas essas questões de relevo social, o direito não poderia deixar de incidir sobre elas. Contudo, consideraremos, para os propósitos deste trabalho, os mandamentos constitucionais, abstraindo qualquer evolução histórica normativa em matéria de direito ambiental e urbanístico. Importa, pois, mencionar aqui a disciplina constitucional e infraconstitucional da proteção ao meio ambiente urbano.

Desse modo, se é um imperativo constitucional, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF/88), e em sendo o espaço urbano meio ambiente construído ou artificial, entende-se que há uma "ecologia urbana" a ser protegida de modo equilibrado, como decorrência não só desse ditame constitucional, mas como imperativo de ordem econômica, política e social. Isso é assim, pois se têm em vista os princípios e regras constitucionais no conjunto sistemática da Carta Magna incidentes no todo social (art. 1º, III, IV; art. 3º, I, II, III; art. 6º, caput; art. 170, caput, e incisos II, III, VI, VII, todos da Constituição da República de 1988)

Afinal, "a ecologia urbana envolve a sustentabilidade econômica, social, energética das relações humanas e daquelas entre o ambiente natural e construído" (SIRKIS, 2003, p. 218).

Devemos salientar, entretanto, que não se deve desconsiderar que o crescimento deva ser obstado de modo arbitrário, reprimindo a evolução do processo das relações humanas fundadas no princípio da liberdade e decorrente deste o princípio da livre iniciativa (art. 3º, IV e art. 170, caput, da CF/88). Deve haver uma ponderação na relação entre crescimento e desenvolvimento.

Assim, uma política ambiental vinculada a uma política econômica, com vistas a um desenvolvimento sustentável, "é essencialmente uma estratégia de risco", mas é também "destinada a minimizar a tensão potencial entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ecológica" (DERANI, 1997, p. 136).

O que se busca com essa estratégia é evitar um colapso do sistema globalmente considerado: o sistema econômico mais o sistema ecológico. E em termos de ocupação do espaço urbano, que deva ser condicionado por um modelo estruturalmente equilibrado, existem os instrumentos aptos para tal finalidade: o plano diretor é um deles.

Sendo o Plano Diretor o instrumento meio de desenvolvimento e expansão urbana, é imperativo que sua finalidade esteja voltada, também, para a busca da normalização das demandas do crescimento econômico compatível com uma ordem urbanística sustentável. Sem que um prepondere sobre o outro ocasionando um colapso dos sistemas econômico e ecológico.


3 Plano diretor e política de desenvolvimento

O Plano Diretor tem profunda relevância na instrumentalização do desenvolvimento urbano. É objetivo deste item traçar, em linhas gerais, os aspectos principais do Plano Diretor.

Esse instrumento condensa ao mesmo tempo, conteúdo normativo cogente com fortes efeitos práticos. A Constituição Federal de 1988 nos arts. 182 e 183 traçam as diretrizes de política urbana, incluindo o plano diretor como instrumento básico de relevo para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e de expansão urbana (art. 182, caput, e §1º da CF/88).

A política de desenvolvimento urbano estabelecida nos artigos constitucionais acima mencionados está regulamentada na lei que estabelece diretrizes gerais da política urbana, lei nº 10.257/01, o Estatuto da Cidade. Esta lei dá maiores especificações aos artigos constitucionais. Ela contém as normas gerais que norteiam a gestão municipal. E o Plano Diretor tem lugar de destaque entre essas normas.

Aqui importa observar a relevância do plano diretor enquanto complexo de normas genéricas de disciplina político urbana, sem consideração aos pormenores em matéria urbana que podem ser regulamentados por lei específica. O fato é que o Plano Diretor é o instrumento apto a cumprir o desiderato do planejamento municipal considerando, entre outras coisas, a distribuição espacial da cidade.

Aclaremos, então, a noção de plano diretor, com base na especulação doutrinária, por respeito à conceituação da ciência jurídica como a mais apta para definir o objeto do estudo do Direito.

O Plano Diretor "é o complexo de normais legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local" (MEIRELLES, 1998, p. 403). Este instrumento é um plano, "porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (...), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, por fixar as diretrizes do desenvolvimento urbano do município" (SILVA, 2000, p. 134).

Complexo de normas e diretrizes, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, quer dizer que o Plano Diretor deve consolidar os regulamentos que incidem sobre o desenvolvimento do município em sentido global. É um instrumento do Planejamento da Administração Pública e compreenderá atividades de duração continuada.

A par dessas informações percebemos a notória importância do Plano Diretor. Consideramos oportuno mencionar que ele é obrigatório para municípios: com população acima de 20 (vinte) mil habitantes; integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações; urbanas; onde o poder público municipal pretenda, impor ao proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, o parcelamento ou edificação compulsória do mesmo; integrantes de áreas de especial interesse turístico e; inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional (art. 41, I a V, da lei nº 10.257/01 – Estatuto da Cidade).

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Entendemos que aqueles municípios que, mesmo que não estejam aí incluídos, poderiam, voluntariamente, elaborar um Plano Diretor dada a eficiência que ele poderá imprimir à Administração Municipal, considerando ainda que as atividades administrativas, para atingirem um fim desenvolvimentista, devem ser planejadas e não improvisadas.

Uma política urbana voltada ao desenvolvimento sustentável deverá ater-se às demandas no processo de ocupação do solo urbano, regulando, a partir de uma normatização cogente, todas elas são inseridas no Plano Diretor. Não permitindo assim que os administradores incorram em desvio de finalidade, efetuando políticas circunstanciais em benefícios de segmentos isolados da sociedade. Toda a sociedade deverá ser contemplada com a política de desenvolvimento urbano veiculada no Plano Diretor do município. Inclusive a zona rural.

Os imperativos de ordem social indicam a necessidade de políticas perenes. A reforma urbana é uma delas. Ela se revela premente. O novo mundo, possível agora, "na era do automóvel, tem de passar pela transformação global da sociedade urbana, pelo planejamento" (CASTRO, 2001, p. 405).

Um planejamento municipal eficaz deve fazer uso de um Plano Diretor, instrumentalmente interventor, condicionado, também a uma provisoriedade. Porque, em realidade, latentes são as mudanças sociais. Por isso um planejamento urbano não deverá se estender por longos anos, pois não justificaria a sua própria existência.

Tendo isso em conta, o legislador atentou para a periodicidade do plano diretor, ordenando que a lei que o instituir o deverá ser revista, pelo menos, a cada 10 (dez) anos (art. 40, § 3º da lei nº 10. 257/01 – Estatuto da Cidade). Este é um imperativo para os administradores de municípios onde esse instrumento de política urbana é obrigatório. O prefeito que descumprir tal mandamento incorre em improbidade administrativa nos termos da lei 8.429 de 1992 (art. 52, VII da lei nº 10.257/01).

A imposição desse prazo legal impõe à administração municipal a constante atualização do Plano Diretor mediante as mudanças céleres da sociedade. Especialmente aquelas que importem o cumprimento da função social da propriedade urbana, entendendo-se esta como uma revisão das relações jurídicas de domínio entre proprietários e os bens imóveis urbanos de seus domínios, que ao passar do tempo, podem obstar o desenvolvimento e a expansão urbana.

Portanto, desenvolvimento importa o cumprimento da função social da propriedade. Isso ocorre quando propriedade urbana atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor.


4 As funções sociais da cidade

A norma constitucional veiculada no art. 182 da Carta Magna diz que o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade é objetivo da política de desenvolvimento urbano. Tal mandamento de ordem pública Público é repetido pelo art. 20 do Estatuto da Cidade.

Portanto, a política de desenvolvimento urbano compreende um condicionamento do meio ambiente artificial através do Plano Diretor de modo sustentável. Pois não há que se falar em desenvolvimento ambiental que prescinda desta qualidade.

Mas o que poderemos entender, pelo menos genericamente, por função social da propriedade para posteriormente compreender funções sociais da cidade? Importa, primeiramente, decompor a expressão função social.

Função é uma noção construída a partir de uma visão dinâmica e relacional do mundo. Ela é identificável quanto ao uso dos bens e às pessoas atingidas somente a nível concreto. Quanto à social há a consideração dinâmica que se imprimirá na prática dos efeitos de uma atividade que atinja a sociedade.

Assim, a função social seria cumprida quando a "utilização do bem provocar efeitos desejados pela comunidade interessada, o que traz à baila as idéias de uso e utilidade" (GRECO, 1981, p. 9-10).

No sentido mais subjetivo e no contexto presente, tendo em conta a relação de domínio que se estabelece entre o proprietário e o imóvel urbano, poder-se-á colher um perfil daquele que é cumpridor das funções sociais.

Isto é, tal proprietário pode ser traçado da seguinte maneira: "é ele, a um só tempo, titular de direito subjetivo e depositário de deveres de índole social, para cujo alcance lança mão dos poderes inerentes ao seu domínio (RABAHIE, 1991, p. 233). Pode-se concluir que nas relações entre indivíduo e os bens verifica-se uma utilidade de caráter mais amplo do que atinge proporções sociais. Haveria, na configuração da função social da propriedade um fim útil à comunidade a partir de uma relação jurídica individual.

Já no que concerne às funções sociais da cidade, Celso Antônio P. Fiorillo, afirma que elas são cumpridas quando proporcionam a seus habitantes uma vida com qualidade (2001, p. 198). Ele identifica quatro principais funções da cidade, tais como: "a) da habitação; b) da circulação; c) do lazer; e d) do trabalho" (FIORILLO, 2001, p. 198).

O elenco acima das funções sociais é exemplificativo, como o próprio autor assinala; elas seriam as "principais funções". No entanto, o cumprimento destas funções já seria suficiente para promover o bem-estar dos citadinos, tendo em vista que muitos municípios não impõem aos proprietários a observância mínima dessas funções sociais. E aquele município que efetivasse imposições cogentes no ordenamento do meio urbano estaria, provavelmente, bem perto de promover um pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.

A função social como princípio constitucional "tem natureza incidente no conteúdo do Direito" afirma Saule Jr. (1997, p. 55). O mesmo autor, referindo-se de modo plural às funções sociais da cidade, assevera que o seu pleno desenvolvimento "deve ser compreendido como o pleno exercício do direito à cidade (...), como combater as causas da pobreza, promover medidas de proteção ao meio ambiente, tornar efetivo os direitos humanos" (1997, p. 60).

As opiniões desses autores acima não divergem, em meu entender. Antes se complementam. Ainda mais que os aspectos físicos das funções sociais da cidade, habitação, circulação, lazer e trabalho são ao mesmo tempo causa e efeito uns dos outros e da efetivação dos direitos fundamentais à existência digna.

Em suma, o princípio da função social da propriedade constitui o núcleo central do direito urbano-ambiental. Tal princípio "desde que acolhido por nosso ordenamento jurídico-constitucional, impõe uma análise de propriedade sob uma dimensão pública" (RABAHIE, 1991, p. 249).

Vista a função social da propriedade como microrrealidade, o transporte que se faz, em dimensão maior, a uma macrorrealidade redundará à concepção das funções sociais da cidade. Então as funções sociais da cidade aglutinam a função social da propriedade de modo a gerar uma ordem urbanística sustentável.


5 A "ordem urbanística" como interesse difuso

Na ideia de cidade aqui adotada (meio ambiente artificial), um aglomerado urbano é um composto de pessoas, relações sociais e bens, compreendidos em um contexto histórico, mas carece de um predicado a mais: a ideia de ordem que é própria à cidade; ou que pelo menos que se pretenda atrelar a ela. A ideia de cidade sustentável pressupõe uma ordem. Entretanto nem todo espaço urbano é ordenado.

Com o intuito de estabelecer diretrizes que possibilitem a ordenação urbana que constituam uma cidade ecologicamente equilibrada impõe-se verificar que esse estágio para se alcançado (ordem urbanística) deverá ser qualificada como ordem difusa.

Para esclarecer sobre o sentido difuso da ordem urbanística, é preciso entender a cidade enquanto contexto fático das relações jurídicas de indivíduos e bens.

Explicando: se colocarmos em relevo a ideia de bem, teremos de vislumbrar a noção de bem individualizado, a exemplo de bem imóvel pertencente a um sujeito de direito e, de outra parte, uma coletividade de indivíduos e de bens que não estão vinculados por uma relação de domínio particular: a cidade. Ou seja, uma coletividade que constitua uma "ordem urbanística". Um conjunto de relações entre pessoas, funções e bens. A ordem urbana, portanto, não pode ser apropriada por indivíduos.

E, por outro lado, se a cidade é meio ambiente artificial, e é um composto de bens ambientais, é ela, por conseguinte, bem ambiental enquanto complexo desses bens menores.

Nestes termos, ressalte-se que se o bem é adjetivado como ambiental, a sua proteção será orientada por pretensões que tenham por base o interesse difuso. Nessa oportunidade convém ressaltar que os bens ambientais são bens sobre os quais recai o caráter de interesse difuso. Ou melhor, têm eles um conteúdo de que os sujeitos titulares são indeterminados. Essa é a noção primordial subjetiva dessa modalidade de interesse.

Na lição de Rodolfo de Camargo Mancuso, os direitos ou interesses difusos são "metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessários à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluído, dispersos pela sociedade civil como um todo. Acrescenta ainda o autor, que tais interesses caracterizam-se "pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço" (1998, p. 124-25).

Entendemos que essas notas caracterizadoras dos direitos ou interesses difusos, não só a indeterminação dos sujeitos, mas também, a indivisibilidade do objeto, a intensa litigiosidade interna, a tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço, são adequáveis ao contexto onde se insere o espaço urbano, ou seja, o meio ambiente artificial.

Além disso, podemos dizer que a cidade no conjunto integral do cumprimento de suas funções sociais guarda em si um aspecto difuso. Não há "como identificar os sujeitos afetados pelas atividades e funções nas cidades, os proprietários, os moradores, etc... tem como contingência habitar e usar um mesmo espaço territorial, a relação que se estabelece entre os sujeitos é a cidade que é um bem de vida difuso" (SAULE JR, 1997, p. 61).

A questão ganhou maior relevo com o advento do Estatuto da Cidade que, em seu art. 54, altera a redação do art. 1º da lei nº 7.347 de 1985 que disciplina a ação civil pública (instrumento processual para pretensões em defesa de interesses difusos), incluindo a ordem urbanística como um valor a ser defendido por via da mesma. Esse é o entendimento de Paulo Affonso Leme Machado.

O mesmo autor assegura que a ordem urbanística (à falta de definição legal) vem a ser "o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos" (2004, p. 367). Deve significar a institucionalização do justo. Não se deve, entretanto confundir essa acepção de "ordem" com a de opressão.

A ordem urbanística, segundo o renomado autor, "há de possibilitar uma nova cidade, em que haja alegria de se morar e trabalhar, de se fruir o lazer nos equipamentos comunitários e de se contemplar a paisagem urbana" (2004, p. 368).

A questão ainda é um tanto quanto controvertida. A saber: de que modo, ou melhor, com base em que situação fática poderá ser impetrada Ação Civil Pública em defesa da ordem urbanística? Como o Ministério Público e os legitimados ativos para intentarem Ação Civil Pública determinarão critérios definidores de uma "ordem urbanística"? Acreditamos que o critério determinante deve ser o legal incidente em uma dada situação que venha a ameaçar a estabilidade da "ordem urbanística". Alguns fatores podem verdadeiramente afetar a ordem urbanística: poluição do solo, do ar, poluição sonora, ocupação irregular de logradouros públicos, etc.

A análise de tais fatores ultrapassa os limites deste trabalho. Contudo vale o registro que a ordem urbanística é interesse difuso nos termos do inciso VI do art. 1º da lei nº 7.347/1985.

Convém assinalar que, o meio ambiente artificial é componente da "ordem urbanística", entendida esta como bem difuso no conjunto de relações que estruturam a cidade. O tratamento do tema "meio ambiente artificial", dar-se-á de modo a englobar uma perspectiva difusa, não só por entendimento de base doutrinária, mas com o fundamento legal.

A perspectiva teórica urbanístico-ambiental deverá ser orientada obrigatoriamente por paradigmas que considerem estas observações, especialmente a visão de bem ambiental como "macro bem" (MORATO LEITE, 2000, p. 87).

Assim sendo, se a cidade (meio ambiente artificial) é bem ambiental, na acepção de macro de bem, por ser composta por microbens de variadas ordens, a sua tutela deverá pautar-se por uma macroperspectiva ambiental. O caráter difuso da cidade enquanto ordem urbanística será, certamente, posto em evidência.


6 Conclusões

A cidade tem de ser apreendida sob um aspecto que considere um desenvolvimento sustentável, em que não haja simplesmente crescimento. Este deve existir, mas em colaboração com o desenvolvimento, para viabilizar o equilíbrio do meio ambiente urbano. Só há desenvolvimento se ele for sustentável, ou seja, que contemple o equilíbrio ecológico.

O Plano Diretor é o instrumento básico de desenvolvimento e expansão urbana. O seu conteúdo deverá contemplar as exigências fundamentais para que a propriedade urbana cumpra a sua função social.

O cumprimento das funções sociais da cidade, em sentido plural, tem pertinência com o desenvolvimento compatibilizante das estruturas urbanas e as relações nelas existentes com a fruição satisfatória dos anseios sociais emergentes, especialmente trabalho, moradia, lazer e circulação, para que se evite um esgotamento do meio ambiente artificial.

O meio ambiente artificial (a cidade) não deve ser preservado em detrimento das áreas de preservação do meio ambiente natural naquele existente. Daí o entendimento de que o desenvolvimento sustentável deve compor ambos os polos: o espaço urbano construído e o natural.

De todo o exposto, podem-se extrair as seguintes assertivas: a) o desenvolvimento sustentável, escopo ambientalista, não pode ser circunstancial, deve ser planejado; b) o plano diretor, instrumento básico de desenvolvimento e expansão urbana é apto a um planejamento que contemple a existência digna no espaço urbano tendo em vista as funções sociais da cidade; c) as funções sociais do espaço urbano têm conteúdo de interesse difuso, devido à necessidade de se apreendê-la como macrobem; d) a cidade enquanto macrobem ambiental contém os subsistemas ambientais (microbens), consistindo, assim, num bem difuso: "ordem urbanística".


7. Referências

DA SILVA, Luiz Américo Martins da. A ordem constitucional econômica. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva,2001.

GRECO, Marco Aurélio. O solo cuidado e a questão fundiária. In: Pessoa, Álvaro (org). Direito do urbanismo: uma visão sócio jurídica. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1981.

LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao extrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 4. ed. São Paulo: RT, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: RT, 2001.

RABHIE, Marina Mariani de Macedo. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia V. Temas de direito urbanístico. São Paulo: RT, 1991.

SAULE JR. Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico. Ordenamento constitucional da política urbana: aplicação do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.


Notas

  1. O crescimento da população é uma tendência mundial; no Brasil estima-se que até o ano de 2015 teremos 86,5% da população vivendo nas cidades (DA SILVA, 2003, p. 256).
  2. Limitar-nos-emos neste trabalho a tratar do tema do desenvolvimento urbano procedendo a um corte epistemológico; abriremos mão de uma análise do processo de crescimento urbano na história. Interessa verificar a partir da disciplina constitucional os instrumentos aptos a regularizar a ocupação urbana.
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Sobre o autor
Geraldo Batista Júnior

Professor de Direito. Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Curso de Direito da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Cajazeiras (FAFIC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA JÚNIOR, Geraldo. A ordem urbanística como direito difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2397, 23 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14241. Acesso em: 18 dez. 2024.

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