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Discussão acerca da natureza jurídica da decisão político-criminal adotada pelo legislador no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006

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15/03/2010 às 00:00
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Com a entrada em vigor da Lei Federal n.º 11.343/2006 o consumo de drogas tornou-se alvo de intensa discussão doutrinária em função da adoção das medidas punitivas já analisadas.

Inicialmente, como se observa em toda alteração legislativa que implica mudança de paradigmas, surgiram diversas interpretações, diagnósticos e futuras previsões.

Passados alguns anos de aplicação da nova lei e de seu famigerado artigo 28, podemos destacar três correntes doutrinárias que assumem a função de determinar, cada qual à sua maneira, a natureza jurídica do referido artigo e o processo modificador da conduta de posse de drogas para consumo pessoal.


1. A posição de Luiz Flávio Gomes

O jurista Luiz Flávio Gomes vem defendendo de forma acalorada, desde a entrada em vigor da Lei 11.343/2006, sua posição de que o artigo 28 da referida lei é resultado de um processo de descriminalização, que o autor caracteriza como "formal", em conjunto com a despenalização da conduta, a qual se transformara em um ilícito penal sui generis.

Introduz seu entendimento da seguinte forma:

De acordo com nossa opinião, a posse de droga para consumo pessoal deixou de ser formalmente ‘crime’, mas não perdeu seu conteúdo de infração (de ilícito). A conduta descrita no art. 28 da nova lei continua sendo ilícita (mas cuida de uma ilicitude inteiramente peculiar). Houve descriminalização ‘formal’, ou seja, a infração já não pode ser considerada ‘crime’ (do ponto de vista formal), mas não aconteceu concomitantemente a legalização da droga. De outro lado, também se pode afirmar que o art. 28 retrata mais uma hipótese de despenalização. Descriminalização ‘formal’ e despenalização (ao mesmo tempo) são os processos que explicam o novo art. 28 da Lei de Drogas (houve um processo misto). [01]

Ao tratar do instituto da descriminalização, além de utilizar-se de terminologia distinta da proposta por Huslman, referindo-se à descriminalização legislativa parcial como "descriminalização penal" e à descriminalização legislativa em sentido estrito como "descriminalização substancial", Luiz Flávio Gomes introduz hipótese em que o fato perde seu caráter criminoso, mas continua inserido no campo do Direito Penal, denominando-a "descriminalização formal".

Explica o renomado professor:

Na primeira hipótese (descriminalização formal) o fato continua sendo ilícito (proibido), porém, deixa de ser considerado ‘crime’. Passa a ser um ilícito sui generis (como é o caso do art. 28). Retira-se da conduta a etiqueta de ‘crime’ (embora permaneça a ilicitude) Descriminalização formal, assim, não se confunde com a descriminalização substancial, que concomitantemente legaliza a conduta. Sempre que ocorre o processo de descriminalização é preciso verificar se o fato antes incriminado foi totalmente legalizado ou se – embora não configurando um ‘crime’ – continua sendo contrário ao direito.

O fato descriminalizado formalmente só perde (‘formalmente’) a característica de ‘crime’, mas é punido com outras sanções; o fato descriminalizado penalmente é eliminado do âmbito do direito penal, mas continua sendo punido como ilícito civil ou administrativo etc.; o fato descriminalizado substancialmente é retirado do âmbito do direito penal totalmente e deixa de constituir um ilícito (é legalizado). [02]

Fundamentando a caracterização da conduta de posse de drogas para consumo pessoal como infração penal sui generis, Flávio Gomes parte da assertiva de que, por não ser mais punido com penas de detenção ou reclusão, ou ainda de prisão simples ou multa, previstas no artigo 1º do Decreto-Lei 3.914/1941 [03] (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais), o ilícito em questão não se configuraria como crime ou como contravenção penal.

Ora, se legalmente – no Brasil – ‘crime’ é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada, cumulativa ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova lei) deixou de ser ‘crime’ do ponto de vista formal porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). [04]

O autor sustenta tal afirmação na contradição existente em se considerar como contravenção infração penal à qual se comina pena de prisão simples, ao passo que se consideraria crime, sobre o qual incidiria um juízo de reprovação maior, um fato punido com sanções mais brandas que a própria prisão simples.

Demonstrando seu entendimento sobre a relação de proporcionalidade existente entre injusto penal e sanção, o doutrinador em análise escreve que:

a diferenciação entre o crime e a contravenção pela pena cominada não é uma questão puramente formal. O conteúdo da sanção (prisão), por força do princípio da proporcionalidade, nos conduz obrigatoriamente a sustentar mais exigências para a configuração de um crime. Hoje isso se resolve pela tipicidade material que, como novo requisito do fato típico, requer: juízo de reprovação da conduta (Roxin-Frisch), resultado jurídico desvalioso (Zaffaroni, L. F. Gomes etc.) e imputação objetiva do resultado (Roxin). Quando o fato conta com punição mais branda que jamais conduz o agente para a prisão não há dúvida que podem ser flexibilizadas as exigências materiais da tipicidade. Como se nota, o nível, a natureza e a intensidade da pena têm tudo a ver com a própria natureza e grau de exigências da infração penal. Em outras palavras: a graduabilidade do injusto penal (Paliero) tem total correspondência com a graduabilidade da sanção penal. [05]

Outro fundamento utilizado por Luiz Flávio Gomes diz respeito à inserção da conduta descrita no artigo 28 da Lei 11.343/2006 no capítulo III do título III, intitulado "Dos crimes e das penas", disposição topográfica essa que, segundo o autor, não confirma a natureza delituosa da referida infração, já que o legislador, em outras oportunidades, também fora despiciente no uso da técnica legislativa, como ocorrera com a Lei Federal n.º 1.079/1950, a qual utiliza a terminologia "crimes de responsabilidade" para tratar não de delitos, na correta acepção do termo, mas sim de infrações político-administrativas. [06]

Em artigo publicado sobre o tema [07] o autor utiliza ainda como argumento o caráter específico do instituto da reincidência, o qual somente ensejaria o aumento do tempo das medidas previstas no artigo 28 em se tratando de condutas de mesma natureza.

Escreve ainda Luiz Flávio que:

No atual sistema penal brasileiro, de outro lado, se o agente pratica contravenção antes e crime depois não é considerado reincidente. Ora, seguindo-se o pensamento da Primeira Turma do STF, se o sujeito praticar o art. 28 antes e um crime depois, será reincidente (desde que haja sentença final condenatória em relação ao art. 28). Quem pratica o mais (contravenção+crime) não é reincidente; quem pratica o menos (art. 28+crime) seria reincidente. Nisso vemos outro paradoxo! [08]

Concluindo sua explanação o autor alega que dispensando tratamento de crime à conduta em análise e, consequentemente, taxando de criminoso o usuário de drogas, destoa-se do fim precípuo, do espírito da Lei n.º 11.343/2006, a qual enxerga aquele que tem a posse de drogas para consumo pessoal como sujeito que clama por tratamento e apoio, e busca, portanto, sua reinserção social. [09]


2. A posição da Primeira Turma do STF

Em voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário 430.105-9/RJ, em que fora relator, o Ministro Sepúlveda Pertence apresentara o entendimento de que as alterações verificadas na punição da conduta de posse de drogas para consumo são resultado de um processo de despenalização, entendido como a substituição de espécie de resposta penal tradicional, qual seja, a pena privativa de liberdade, por sanções alternativas.

Rebatendo os argumentos apresentados por Luiz Flávio Gomes em artigo inclusive transcrito no próprio texto do voto, o ilustre ministro inicia sua explanação alegando que a atribuição de caráter sui generis à conduta prevista no artigo 28 da Lei 11.343/2006 implicaria diversas conseqüências jurídicas, entre as quais ressalta a impossibilidade de caracterizar a conduta de posse de droga para consumo pessoal praticada por criança ou adolescente como ato infracional.

Pautando-se pelo artigo 103 da Lei Federal n.º 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) [10] Sepúlveda Pertence alega que, não sendo considerada crime ou contravenção penal, a conduta de posse de droga para consumo pessoal de menor não poderia configurar-se como ato infracional.

Outro apontamento do nobre jurista rebate a tese de que o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, a qual fora recepcionada pela Constituição de 1988 como legislação ordinária, obstaria a criação, por lei ordinária superveniente, como é o caso da nova lei de drogas, de infração penal à qual cominaria sanção diversa da reclusão e detenção.

O ministro Pertence pauta sua afirmação pelo artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição de 1988, que prevê as penas de "privação ou restrição de liberdade" como "opções constitucionais passíveis de serem adotadas pela ‘lei’" [11].

Confrontando ainda a alegação de Luiz Flávio Gomes de que ao introduzir a conduta do artigo 28 no capítulo referente a crimes e penas (Capítulo III do Título III) o legislador deixara de lado o rigor técnico, Sepúlveda Pertence cita parte do trecho do relatório do Projeto de Lei 7.134/2002, que dera origem à Lei 11.343/2006.

No respectivo excerto, o Deputado Paulo Pimenta, relator do projeto, escreve que:

Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para esse título o crime do usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico de drogas – Título IV.

Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves.

Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal. [12]

Vale frisar ainda a ressalva feita por Sepúlveda Pertence sobre as intenções do legislador:

Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las – advertia com precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano -, não seriam elas aptas a vincular o sentido e alcance da norma posta.

Cuida-se, apenas, de não tomar como premissa a existência de mero equívoco na colocação das condutas num capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’ e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime. [13]

Elencando os demais elementos que caracterizariam a conduta em análise como delito, o ministro alega que o instituto da reincidência previsto no parágrafo 4º do artigo 28 segue as regras estabelecidas pelo Código Penal, já que não há na Lei 11.343/2006 disposição expressa que afaste sua aplicação.

Faz referência ainda ao fato de a infração de posse de drogas para consumo pessoal submeter-se, segundo o artigo 48, parágrafo 1º, da Lei 11.343/2006, ao rito processual previsto nos artigos 60 e seguintes da Lei n.º 9.099/1995, podendo ser proposta ainda a aplicação imediata da pena conforme previsto no artigo 76 da Lei dos Juizados Especiais e no parágrafo 5º, do artigo 48 da Lei de drogas.

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Expostos todos os argumentos, conclui o ministro Pertence:

Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde sua edição -, não vejo como reconhecer que os fatos disciplinados no art. 16 da Lei 6.368/76 deixaram de ser crimes.

O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, §3º; e Lei 9.605/98, arts. 3º; 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal. [14]


3. A posição descriminalizadora

Percebe-se que as posições analisadas anteriormente constroem cada qual sua abordagem partindo de um pressuposto em comum, qual seja, de que a conduta de posse de drogas para consumo pessoal continua sendo qualificada como infração penal, não tendo ocorrido descriminalização legislativa em sentido estrito ou "abolitio criminis".

Uma terceira corrente, seguindo posição diametralmente oposta, antes mesmo de analisar a ocorrência ou não de um processo de despenalização na passagem da Lei 6.368/1976 para a Lei 11.343/2006, defende a insustentabilidade jurídico-penal da criminalização da posse de drogas para consumo pessoal.

3.1 Os custos da criminalização

Partindo da análise do fenômeno do uso de substâncias entorpecentes como uma realidade complexa, a corrente descriminalizadora critica a tentativa da ciência do Direito Penal de reduzir tal complexidade ao atribuir ao fenômeno em análise uma resposta monofocal e homogênea, a qual se instrumentaliza pela criminalização da conduta.

A resposta penal ao uso de drogas basear-se-ia, de forma equivocada, na capacidade do Direito Penal de impedir a propagação da dependência, atuando como fator contra motivacional, de reabilitar e ressocializar o usuário ou dependente, cumprindo, portanto, a função de prevenção especial da pena, e de evitar a prática de delitos de outra natureza correlacionados ao uso de drogas.

A corrente descriminalizadora busca então demonstrar a ineficiência da sanção penal na realização de tais finalidades.

Discorrendo sobre a superação dos sistemas valorativos unívocos e da adoção de referenciais homogêneos, Salo de Carvalho escreve que:

O olhar sobre o fenômeno das drogas no mundo contemporâneo não pode ser tematizado pela lógica calculadora da racionalidade moderna, ou seja, é impossível estabelecer, a partir do olhar homogêneo da cientificidade, as causas, os efeitos, e as finalidades das pessoas que, de forma esporádica ou regular, (ab)usam de substâncias estupefacientes.

A lógica da causalidade mecânica, cujo fundamento é realizar a etiologia do fenômeno para encontrar a solução para suas conseqüências, fracassou. A riqueza e a pluralidade das manifestações do mundo real demonstraram que a percepção e o impacto de determinadas experiências são sentidas de forma diversa, estabelecendo condutas distintas em cada indivíduo. Não por outro motivo que os grandes projetos que buscaram uniformizar respostas aos fenômenos das drogas e da violência fracassaram no choque com a diversidade do real. [15]

Um olhar mais voltado para a realidade, como sugere o citado autor, permite avaliar os custos sociais da criminalização decorrentes do processo criminalizador e da reação social informal gerada pelo mesmo.

A mensuração de tais custos e a consequente constatação das políticas criminais alternativas de que a resposta punitiva estatal produz efeitos mais danosos que aqueles produzidos pela própria droga são fatores utilizados pela criminologia crítica como argumentos favoráveis à descriminalização.

3.1.1 Custos individuais

O processo de criminalização é utilizado, sobretudo pelo Poder Legislativo, como forma de saciar o ímpeto social por medidas efetivas que visam a diminuição da violência e da criminalidade.

Ocorre que tais medidas provocam a estigmatização dos usuários e a identificação dos mesmos em subculturas criminais, gerando a rotulação e o isolamento, conseqüências essas potencializadas pela atuação dos meios de comunicação em massa. [16]

Constata-se também que esse círculo de ilegalidade em que se inserem usuários e dependentes não permite a fiscalização e o controle das substâncias consumidas, determinando ainda a proliferação de ambientes de consumo marcados pela falta de higiene e pela disseminação de doenças contagiosas.

Escrevendo acerca de tais efeitos do processo criminalizador, Maria Lúcia Karam aduz que:

A clandestinidade do consumo, efeito direto da criminalização, cria maiores tensões na vida de relação, funcionando como um dado a mais na situação problemática original, sintomatizada pela adição, e, portanto, como um realimentador da busca da droga, ao mesmo tempo em que a estigmatização, acompanhante necessária da criminalização, levando ao isolamento social e à marginalização, acaba por produzir alterações da personalidade, muitas vezes vistas como um efeito primário das drogas, quando não passam de conseqüências desta marginalização. [17]

3.1.2 Custos econômicos

A criminalização da posse de drogas para consumo pessoal faz surgir mercado bastante lucrativo cujo crescimento depende da clandestinidade inerente à conduta.

O atrativo econômico resultante da intervenção estatal e do risco do empreendimento ilícito determina o surgimento de organizações criminosas que disseminam cada vez mais violência.

A intervenção do sistema penal, desde seu primeiro momento (a criminalização primária), introduzindo uma variável artificial na estrutura do mercado, provoca a brutal elevação dos preços, que vai gerar os fabulosos lucros já referidos, funcionando, assim, por sobre sua função aparente de repressão, como um dos mais poderosos incentivos à produção, mais lucrativa do que quaisquer outras.

Incentivando o empreendimento econômico, que aparentemente visa reprimir, tampouco cumpre o sistema penal um papel relevante no controle da distribuição e do consumo daqueles produtos, que qualifica de ilícitos. [18]

3.1.3 Custos para o sistema de administração da justiça penal

Um dos principais problemas causados pela ilegalidade é o surgimento da criminalidade secundária, tanto a que envolve usuários e dependentes quanto a relativa a crimes cometidos por profissionais inseridos nas próprias agências repressivas.

Como conseqüência da própria estigmatização e do isolamento, bem como do elevado valor monetário a ser pago para a aquisição das drogas, os consumidores são impelidos a ingressar "nas redes ilegais de consumo e comércio" [19], empregando-se no tráfico e expondo-se aos riscos da atividade ilícita.

Ao discorrer sobre a contaminação do aparelho estatal, Maria Lúcia Karam alerta que:

Com seus lucros fabulosos, estabelecendo uma relação funcional com a circulação legal do capital, e seu poder de corrupção, o mercado das drogas ilícitas vai produzir graves desvios, afetando perigosamente órgãos do aparelho estatal e do sistema financeiro, ao mesmo tempo que fortalecendo o poderio das grandes organizações criminosas e da atividade empresarial que realizam. [20]

3.2 A desconstrução da sustentabilidade jurídica da punibilidade

Expostos os fundamentos fáticos que impulsionam as políticas criminais alternativas rumo à descriminalização da conduta de posse de drogas para consumo pessoal, necessário se faz introduzir os principais argumentos jurídicos que sustentam tal corrente doutrinária.

3.2.1 A máxima secularizadora e o princípio da inviolabilidade da intimidade e da vida privada

Elevada à principal postulado do Direito moderno, a secularização, ou de forma mais específica, a distinção entre direito e moral, estabelece não ser função da sanção penal reforçar ou impor padrões de comportamento, já que um Estado democrático de direito assume como fundamento o pluralismo cultural. [21]

Maria Lúcia Karam introduz a discussão acerca da inadmissibilidade da criminalização da posse de drogas para consumo pessoal da seguinte forma:

O Direito constitui um conjunto de normas disciplinadoras de relações sociais, sendo, portanto, de sua essência a intervenção tão somente em condutas que, saindo da esfera individual, tenham potencialidade para atingir a terceiros.

Das condutas privadas, ou seja, aquelas que não afetam bens ou interesses de terceiros, não se pode dizer que sejam permitidas ou proibidas juridicamente, não cabendo dar a elas qualificação jurídica, na medida em que, por sua própria definição, o Direito não deve alcançá-las. [22]

Com efeito, a recepção dos valores do pluralismo e da tolerância à diversidade por parte de um ordenamento jurídico democrático proíbe a intervenção estatal na esfera de interioridade dos cidadãos, aos quais se garante um espaço de liberdade individual para a auto-realização sexual, familiar, intelectual, etc., desde que seus atos não afetem ou coloquem em risco bens jurídicos de terceiros, hipótese em que se legítima a intervenção penal. [23]

Salo de Carvalho sustenta que a política de combate às drogas defendida pela legislação brasileira é reflexo da adoção de preceitos morais, que acabam por atribuir a tais normas penais função pedagógica para a qual não têm legitimidade, rompendo portanto com a máxima secularizadora do Estado e Direito Penal modernos. [24]

3.2.2 Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato

Crimes de perigo são aqueles que, não obstante o agente não conduzir finalisticamente seu comportamento para a produção de dano ou lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, não atuar com dolo de dano, expõe a risco ou a perigo respectivo bem jurídico.

A conduta de posse de drogas para consumo pessoal caracteriza-se como crime de perigo abstrato, definido por Rogério Greco da seguinte forma:

Diz-se abstrato o perigo quando o tipo penal incriminador entende como suficiente, para fins de caracterização do perigo, a prática do comportamento – comissivo ou omissivo – por ele previsto. Assim, os crimes de perigo abstrato são reconhecidos como de perigo presumido. A visão, para a conclusão da situação de perigo criada pela prática do comportamento típico, é realizada ex ante, independentemente da comprovação, no caso concreto, de que a conduta do agente produziu, efetivamente ou não, a situação de perigo que o tipo procura evitar. [25]

Um dos argumentos para a descriminalização da conduta prevista atualmente no artigo 28 da Lei 11.343/2006 seria, justamente, a ausência de potencialidade de dano existente em tal comportamento, cuja tipificação ofenderia o princípio da lesividade.

Para Marco Aurélio Moreira de Oliveira, citado por Salo de Carvalho, o princípio da lesividade encontra-se inserido no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal [26], que introduz também o princípio da inafastabilidade.

O citado autor parte de uma análise conjunta dos princípios constitucionais em destaque, já que somente devem ser levados à apreciação judicial fatos que efetivamente lesem ou ameacem direitos.

Marco Aurélio Moreira de Oliveira escreve que:

...o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, indica como juridicamente relevante a causação de lesões efetivas ou ameaças a direitos, só podendo ser entendidas, como verdadeiras ameaças, as que sejam concretas, pois ameaças abstratas simplesmente inexistem. Em conseqüência, não se deve admitir crimes de perigo abstrato, por não conterem as condições concretas e diretas para afetarem bens fundamentais juridicamente protegidos. Além disso, a lógica jurídica indica como prioritária a tarefa de definir o que seja crime, isto é, conduta que causa lesão ao sujeito passivo ou, pelo menos, a que cria ameaça a direito, de modo concreto e direto. Só após, se cominarão penas. Com isso, se estará afastando um abusivo expansionismo penal, marcado por punições simbólicas, desnecessárias, ineficazes e injustas. [27]

3.2.3 Ofensa ao princípio da igualdade

Outro argumento que densifica a insustentabilidade da punição da conduta de posse de drogas para consumo pessoal encontra respaldo no princípio da igualdade, o qual restaria violado com a distinção de tratamento penal e não penal atribuído às drogas ilícitas e lícitas, já que tanto estas quanto aquelas seriam capazes de causar dependência física e psíquica.

Tal diferenciação representaria, portanto, "opção criminalizadora essencialmente moral" [28].

3.2.4 A posse de drogas para consumo como conduta autolesiva

Partindo da premissa de que a ação em questão não tem a potencialidade de lesar ou por em perigo concreto bem jurídico de terceiro, a corrente descriminalizadora a classifica como autolesiva ou ainda crime sem vítima. [29]

As principais características de tal espécie de conduta, dentre as quais se pode ainda citar a tentativa de suicídio, seriam "a) a participação consensual das partes envolvidas no fato, b) a ausência de demanda de proteção jurisdicional e c) a não identificação de qualquer dano" [30].

Fazendo uma análise do tipo penal à luz da teoria da tipicidade conglobante, considerando-o não isoladamente mas sim inserido no universo normativo, Maria Lúcia Karam sustenta a atipicidade penal da conduta de posse de drogas para consumo pessoal em razão de outras condutas autolesivas não serem alvo de sanções penais.

Escreve a citada autora que:

A aquisição ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfera de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir.

É este o fundamento da impunibilidade da tentativa de suicídio, ao contrário do que sustenta a doutrina tradicional, que, de forma pouco técnica, eis que utilizável nas mais diversas hipóteses, argumenta com a inutilidade da pena para justificar a atipicidade daquela conduta.

O que efetivamente fundamenta a impunibilidade da tentativa de suicídio, como de qualquer ofensa a si próprio, é a questão de que o Direito não pode punir o autoprejuízo, não pode intervir em condutas que não saiam da esfera individual, que não tenham potencialidade para afetar a terceiros. [31]

3.2.5 O bem jurídico saúde pública

A criação de bens jurídicos coletivos surge a partir da ruptura com a estrutura liberal do Direito Penal, a qual se caracterizava pela proteção a bens jurídicos individuais.

Tal fenômeno ocorre em função da tentativa do Direito, e em especial do Direito Penal, de adaptar-se à nova dinâmica social e de regulamentar os processos produtivos que surgissem.

Pierpaolo Bottini escreve que:

O direito, enquanto produto da sociedade e construção humana, responde aos discursos que surgem deste contexto social, muitas vezes de maneira distorcida, na tentativa de conter ou controlar estes riscos através de normas. O ordenamento penal não foge à regra, e molda seus preceitos e dispositivos à luz da nova demanda social, seguido por significativas alterações no campo dogmático. Os bens jurídicos protegidos pelos novos tipos penais ostentam a característica de coletivos, difusos ou transindividuais. Percebe-se a proliferação de crimes de perigo abstrato, como conseqüência da já citada dificuldade de estabelecer nexos causais entre condutas e resultados danosos, no âmbito das novas tecnologias. [32]

A crítica que se faz ao surgimento dos bens jurídicos coletivos diz respeito à dificuldade de sua identificação em razão de sua imaterialidade, da falta de concretude.

Salo de Carvalho sustenta ainda que "a falácia do direito penal protetivo de bens jurídicos serviu apenas como justificativa à maximização da intervenção punitiva" [33].

Os tipos penais que apresentam como objeto material os entorpecentes protegem, em primeiro plano, a saúde pública, cujo conceito já fora exposto no âmbito deste trabalho.

Maria Lúcia Karam escreve que:

Os crimes contra a saúde pública, como todos os crimes contra a incolumidade pública, tradicionalmente são caracterizados pela natureza coletiva do bem jurídico tutelado, o que significa que, ainda que bens ou interesses particulares possam ser diretamente atingidos pelas condutas delituosas, o que a lei protege, em essência, é o interesse geral da comunidade, em face do perigo indiscriminado que aquelas condutas encerram. [34]

Diferentemente de outros autores, em especial os vinculados à Escola de Frankfurt, Pierpaolo Bottini sustenta a legitimidade do Direito penal para tipificar condutas que lesionam bens jurídicos coletivos, ressaltando, entretanto, a necessidade de estas condutas também exporem a perigo concreto ou abstrato bens individuais. [35]

Sustenta Bottini que:

...não se nega a existência, nem a importância, de interesses da coletividade, especialmente nas complexas relações de risco e de massa presentes na sociedade atual, mas prega-se a necessidade de limitar a proteção penal destes mesmos interesses. Nas palavras de Vega, o referente individual servirá como critério de limitação do número e da extensão dos bens jurídicos penais coletivos. Nos casos em que não se permita estabelecer conexão alguma com bens individuais, haverá de ser retirada ou não estabelecida a tutela do direito penal. [36]

Portanto, no âmbito do combate ou controle das drogas, a intervenção do Estado só faz-se legitima para proteger a saúde pública de lesões e, em função da "possibilidade de expansão do perigo" [37] de certas condutas, proteger a saúde individual.

Segundo a criminologia crítica, o principal fundamento da insustentabilidade da punição penal atribuída à conduta de posse de drogas para consumo pessoal residiria justamente neste ponto: o consumo exclusivamente pessoal de entorpecentes não seria capaz de gerar nenhum dano à saúde pública.

Defendendo que a conduta de posse de drogas para consumo pessoal configura-se como um tipo penal que não tutela nenhum bem jurídico, Pierpaolo Bottini:

O consumo de drogas não gera dano algum à saúde pública. É inerente a esta atividade a utilização completa do produto, seu perecimento, a impossibilidade de difusão para terceiros. Constatada objetivamente, diante das circunstâncias fáticas, que o agente utilizará a substância para proporcionar prazer ou qualquer espécie de sentimento em si mesmo, fica excluída a lesão à saúde pública. Assim, não há criação de risco potencial transindividual, não há perigo ex ante, portanto, sob este aspecto, não é legítima a tipificação. [38]

No mesmo sentido, pautando-se pela impossibilidade de expansão do perigo da conduta individual ao bem jurídico saúde pública, Maria Lúcia Karam alega que:

Ora, é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo.

Nesta linha de raciocínio, não há como negar a incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são coisas antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para si próprio é o oposto de ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal. [39]

3.3 A adoção jurisprudencial da teoria da descriminalização

Vale ressaltar que os argumentos descriminalizadores levantados nesta parte do trabalho embasaram decisão paradigmática da 6ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a Apelação criminal n.º 993.07.126537-3, tendo como relator o magistrado José Henrique Rodrigues Torres, em cujo voto defende a inconstitucionalidade do porte de entorpecente para uso próprio, invocando os princípios da ofensividade, igualdade e intimidade.

A ementa do julgado resume o entendimento do órgão colegiado:

Ementa: 1 – A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2 – O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direito Humanos ratificados pelo Brasil. [40]

No que concerne ao direito comparado, recentes decisões proferidas pelas Cortes Supremas de Justiça da Argentina e da Colômbia posicionam-se contrariamente à criminalização da posse de drogas para consumo pessoal.

No âmbito do direito argentino, os precedentes decisórios que tratam da questão relativa ao consumo pessoal de entorpecentes alternam-se entre a criminalização e a descriminalização.

É o que se observa nos casos "Colavini" e "Montalvo", este mais recente, de 1990, que adotaram posições favoráveis à criminalização, e no caso "Basterrica", em que se pugnou pela descriminalização de tal conduta. [41]

Em 25 de agosto de 2009, ao julgar o caso "Arriola, Sebastián y otros", a Suprema Corte argentina declarou a inconstitucionalidade do artigo 14, parágrafo segundo, da Lei 23.737/1989 [42], que trata da ação de posse de drogas para consumo pessoal, desde que tal uso "se realice en condiciones tales que no traigan aparejado um peligro concreto o un daño a derechos o bienes de terceros, como ha ocurrido en autos" [43].

No caso em análise, o recorrente sustentava a incompatibilidade do artigo 14 da citada lei com o disposto no artigo 19 da Constituição argentina [44], já que a criminalização da conduta de posse de drogas para consumo pessoal representaria uma intervenção do Estado na esfera individual dos cidadãos.

A decisão proferida pela Corte máxima argentina apresentou como fundamentos fáticos dados apresentados pela UNODC que demonstram o incremento do consumo e da produção de drogas em solo argentino durante o período de vigência da Lei 23.737/1989 e de adoção do precedente "Montalvo" para sustentar a criminalização.

Outro fundamento adotado na decisão de 25 de agosto de 2009 foi a importância dos tratados internacionais relativos a direitos humanos que, a partir da reforma constitucional de 1994, passaram a incorporar o ordenamento jurídico da Argentina e representam uma ampliação dos direitos e garantias dos cidadãos.

Observa-se ainda que os princípios da autonomia pessoal, da dignidade da pessoa humana e da ofensividade ou lesividade, já analisados neste trabalho quando do estudo da insustentabilidade da criminalização, bem como a necessidade de abordar o usuário de drogas como vítima e não como criminoso, foram utilizados pela Suprema Corte da Argentina para sustentar a descriminalização da conduta de posse de drogas.

No mesmo sentido, a Suprema Corte de Justiça da Colômbia, julgando o processo nº. 31.531, envolvendo a pessoa de Ancízar Jaramillo Quintero, o qual fora flagrado trazendo consigo aproximadamente 1g (um grama) de "cocaína", distribuídos em 2 (duas) porções, reiterou sua posição contrária à criminalização da posse de drogas para consumo pessoal, baseando-se principalmente na ofensa ao princípio da lesividade ou ofensividade.

Tal posicionamento pode ser apreciado no seguinte excerto:

Bien puede afirmarse que al concepto de dosis personal se liga el de ‘aprovisionamiento’, el cual se evidencia en dependientes (habituales, disfuncionales, destructivos) o experimentadores y ocasionales apenas en proceso de iniciación en ese mundo, a quienes como ‘consumidores hormiga’ se les sorprende llevando consigo marihuana, cocaína (derivados) o cualquier otra droga que produzca dependencia física, psíquica y fenómenos de tolerancia, en cantidades escasas que sobrepasen los topes legalmente permitidos, eventos en los que antes que producir un daño o peligro de menoscabo al bien jurídico socio colectivo de la salud pública de que trata el Título XIII de la Ley 599 de 2000, lo que se pone de presente es un comportamiento ‘auto–destructivo’ o de ‘auto-lesión’ el cual incumbe los ámbitos exclusivos de la libertad de esa persona, es decir, a un fenómeno singular carente de antijuridicidad material (ausencia de lesividad) y que, por ende, no es punible. [45]

Respectivos julgados de direito comparado demonstram não só a atualidade e pertinência da questão relativa à natureza jurídica da conduta de posse de drogas para consumo pessoal, mas também o caráter globalizado da corrente que persegue a descriminalização de tal ação.

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Sobre o autor
Victor Pereira Avelino

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELINO, Victor Pereira. Discussão acerca da natureza jurídica da decisão político-criminal adotada pelo legislador no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2448, 15 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14513. Acesso em: 15 nov. 2024.

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