Resumo: O objetivo principal deste trabalho é contribuir para divulgar, ainda mais, o tema "assédio moral nas relações de trabalho". A constatação de que ainda predomina o desconhecimento acerca do fenômeno, conquanto tenha sido imensamente difundido nos últimos anos, e da verdadeira confusão que é feita ao redor dos temas assédio moral, dano moral e assédio sexual foi determinante para a definição do tema proposto. Não só. A condição social do trabalhador, em especial na sociedade brasileira, de verdadeira desproteção fática, embora haja proteção jurídica, mostrou-se relevante para a busca da compreensão do problema. Verificar quais fatores delineiam o comportamento social foi o verdadeiro desafio. Ademais, constatada a realidade perversa a que está submetido o trabalhador, almejou-se conhecer os instrumentos que a sociedade brasileira tem utilizado para coibir tal prática nefasta. Como os poderes estatais constituídos têm enfrentado o problema? Quais as ações legislativas? Em que sentido são proferidas as decisões judiciais? E qual a força das ações individuais, mitigada pela situação de fragilidade em que se encontra o trabalhador durante a relação de emprego, de grande importância na reparação do dano sofrido? Por outro lado, foi ressaltada a importância das ações coletivas, ajuizadas, na maioria das vezes, pelo Ministério Público, como instrumento eficaz no alcance da tutela inibitória da prática lesiva. Também foi abordado o papel dos princípios norteadores do nosso sistema jurídico na condução do problema e a forma como nossos tribunais trabalhistas têm resolvido as questões.
Palavras-chave: Assédio moral. Mobbing. Relações laborais. Fundamentos jurídicos. Meio ambiente de trabalho. Dignidade da pessoa humana. Isonomia. Direito à intimidade. Instrumentos judiciais de combate. Visão dos tribunais brasileiros.
INTRODUÇÃO
O termo "assédio moral" pode causar estranheza a muitas pessoas, em razão do desconhecimento do seu significado, ou mesmo da confusão, em face da semelhança fonética com outros fenômenos, tais como o assédio sexual e o dano moral. Todavia, se apresentarmos situações caracterizadas por assédio moral, muitas pessoas reconhecerão que já foram vítimas ou conhecem outros que já sofreram com práticas dessa natureza.
A determinação, oriunda de superior hierárquico, para o cumprimento de atribuições estranhas ou incompatíveis com a função do empregado, ou em condições e prazos inexequíveis, é uma conduta muito conhecida, no plano prático, pela maioria dos trabalhadores. O mesmo deve-se dizer de comportamentos de desprezo ou humilhação perpetrados nas relações de trabalho, ou dos rumores e comentários maliciosos, ou críticas reiteradas e feitas em público. Todos esses são procedimentos muito conhecidos da imensa massa de trabalhadores de todo o mundo e podem exatamente configurar o assédio moral.
Portanto, assédio moral é a prática perversa, que aflige milhões de pessoas em todo o mundo e ocorre principalmente no ambiente de trabalho.
Trata-se de um fenômeno que se define pela repetição prolongada de atos que expõem o trabalhador à humilhação ou constrangimento, objetivando atingir a sua auto-estima, impedindo-o de desempenhar adequadamente sua atividade profissional.
Conquanto não seja um fato novo, o assédio moral no trabalho, hodiernamente, tem se apresentado de maneira crescente nos ambientes laborais, ante o modelo de exploração do trabalho vigente (reflexo da globalização econômica), caracterizado por violentas pressões por produtividade e impessoalidade nas relações entre dirigentes e trabalhadores, implicando falta ou deficiência da comunicação direta entre subordinante e subordinado e no aumento da competitividade no âmbito da empresa.
Esses fatores, impulsionadores da globalização e clamadores do neoliberalismo, cultivadores do, hoje, sempre presente temor do desemprego – e, em momentos de crise, da necessidade de manutenção do emprego, ainda que em condições inadequadas –, têm escasseado a cooperação e solidariedade entre os trabalhadores, tanto nas relações hierárquicas (entre superiores e subordinados) como nas horizontais (entre colegas de trabalho).
Surge, assim, o ambiente propício ao desenvolvimento e à proliferação de práticas humilhantes, degenerativas das relações interpessoais, configuradoras do assédio moral no ambiente de trabalho.
O presente estudo objetiva delinear a caracterização do assédio moral e suas diversas modalidades, analisar o modo como o tema tem sido tratado pela legislação pátria e como os tribunais trabalhistas têm visto o fenômeno.
Para a sua concretização, foi necessário desenvolver pesquisa da doutrina, legislação e jurisprudência. Com efeito, utilizou-se o método dedutivo para se conhecer de que maneira o sistema legislativo brasileiro trata do tema. Concomitantemente, o método indutivo foi indispensável para se aferir a produção jurisprudencial de nossos tribunais.
A pesquisa, portanto, foi levada a efeito mediante análise documental da doutrina estrangeira, na medida em que a obra que embasa o estudo provém da doutrina francesa, e nacional. Também foi analisada a evolução da legislação em todo o território nacional para se concluir de que maneira o sistema legislativo brasileiro tem tutelado os trabalhadores no que se refere à prática do assédio moral. Por fim, verificou-se o comportamento dos tribunais mediante análise das decisões reiteradas acerca da matéria em comento.
Quanto à sistematização, no primeiro capítulo, abordaremos questões gerais a respeito do tema, definição e espécies.
No segundo capítulo, analisaremos a maneira como o ordenamento jurídico pátrio coíbe a prática de assédio moral, em âmbito constitucional e infraconstitucional, e nas esferas federal, estadual e municipal.
No terceiro capítulo, faremos uma abordagem dos instrumentos judiciais de combate ao assédio moral, tanto no campo individual como no coletivo.
Finalmente, no quarto capítulo, será apresentado, à luz de casos concretos, a visão dos tribunais acerca de tão delicado tema.
1. NOÇÕES PRELIMINARES
Nos últimos anos, o termo assédio moral vem alcançando notoriedade. Lado a lado, crescem as queixas a respeito de assédio sexual e de dano moral. Os fenômenos não são inéditos; ao contrário, podem ser detectados nas relações sociais descritas pela história. Embora vetustos, apenas hodiernamente emerge com significância o repúdio da sociedade.
O que há de novo? Quais os motivos para a atenção agora dispensada ao fenômeno do assédio moral? São basicamente de três ordens os atuais motivos proporcionadores do vigor com que se reveste o fenômeno do assédio moral.
Primeiramente, temos a complexidade das relações sociais modernas, o progresso do capitalismo selvagem, aliado à globalização, que determina uma forma de organização empresarial hierárquica, competitiva e robotizada e um sistema trabalhista com tendências à flexibilização ou desregulamentação, com a consequente precarização das condições de trabalho, escassez dos postos de emprego, ameaçando a efetivação dos direitos sociais.
Ratificando esse entendimento, dispõe Margarida Barreto1 que
"A flexibilização, que na prática significa desregulamentação para os trabalhadores/as envolve a precarização, eliminação de postos de trabalho e de direitos duramente consquistados, assimetria no contrato de trabalho, revisão permanente dos salários em função da conjuntura, imposição de baixos salários, jornadas prolongadas, trabalhar mais com menos pessoas, terceirização dos riscos, eclosão de novas doenças, mortes, desemprego massivo, informalidade, bicos e sub-empregos, dessindicalização, aumento da pobreza urbana e viver com incertezas. A ordem hegemônica do neoliberalismo abarca reestruturação produtiva, privatização acelerada, estado mínimo, políticas fiscais etc. que sustentam o abuso de poder e manipulação do medo, revelando a degradação deliberada das condições de trabalho."
De fato, a atual organização do trabalho busca o ingresso no mercado globalizado, competitivo, visando a alcançar melhores resultados, com a redução dos gastos, à custa, na grande maioria das vezes, da precarização do trabalho humano, mediante utilização de novas formas de contratação, tais como terceirização ou quaisquer outros meios que descaracterizem a relação de emprego e que fulminem o princípio da continuidade da relação laboral2, causando instabilidade na vida do trabalhador.
As relações sociais, portanto, estão sendo dilaceradas pela crise comportamental em que vive o indivíduo, e os problemas outrora enfrentados alcançam proporções inesperadas. Hoje, segundo Daniel Sarmento3, discute-se
" (...) a crise da Modernidade, e há quem fale no advento de uma Era Pós-Moderna. Afirma-se que a Modernidade falhou nos seus objetivos, pois não conseguiu resolver ou minimizar os problemas da Humanidade, nem dar respostas grandiloqüentes para enfrentar os problemas emergentes em uma sociedade hipercomplexa, globalizada, fragmentada e descentrada."
A par de tudo isso, o desenvolvimento tecnológico e científico e o acesso à informação caracterizam essa sociedade pós-industrial, onde o que determina a concentração de poder e riqueza não é mais a propriedade dos meios de produção, mas o conhecimento e a informação, cuja circulabilidade é cada vez mais veloz diante dos avanços tecnológicos4, acarretando um ambiente de trabalho extremamente estressante.
O homem pós-moderno tem o poder do conhecimento, da informação. Contudo, segundo Daniel Sarmento5,
"(...) o volume das informações disponíveis é tamanho, que, como num paradoxo, acabamos todos condenados à superficialidade. A estética substitui a ética e a aparência torna-se mais importante que o conteúdo. São tantos os caminhos possíveis, tão múltiplas as variáveis, tão complexos os problemas, que não é mais factível programar uma direção, um sentido unívoco para um comportamento individual ou coletivo. O pensamento moderno, com sua obsessão pela generalização e racionalização, ter-se-ia tornado imprestável para compreender o caos das sociedades contemporâneas."
Corroboram esse entendimento as lições do Professor Luís Roberto Barroso6 ao dispor que,
"No campo econômico e social, tem-se assistido ao avanço vertiginosos da ciência e da tecnologia, com a expansão dos domínios da informática e da rede mundial de computadores e com as promessas e questionamentos éticos da engenharia genética. A obsessão da eficiência tem elevado a exigência de escolaridade, especialização e produtividade, acirrando a competição no mercado de trabalho e ampliando a exclusão social dos que não são competitivos porque não podem ser. O Estado já não cuida de miudezas como pessoas, seus projetos e sonhos, e abandonou o discurso igualitário ou emancipatório. O desemprego, o subemprego e a informalidade tornam as ruas lugares tristes e inseguros."
Portanto, a hipercomplexidade que caracteriza a organização social de agora é sentida mais fortemente no mundo do trabalho. Vive-se uma racionalização perversa da produção capitalista, e o ser humano é visto, por seus próprios pares, como instrumento do capital. "A lógica do capital como valor que se valoriza incessantemente, tende ao descontrole e destrói progressivamente as próprias fontes de produção de valor: a natureza e os seres humanos."7
Entretanto, não se pode olvidar que a pessoa humana é um ser complexo, disposto a amar incondicionalmente, ao mesmo tempo em que é capaz de cometer as maiores atrocidades contra o seu semelhante. Conforme dispôs Marie-France Hirigoyen8, "existem incontestavelmente sistemas perversos que favorecem a instalação do assédio moral, mas levar em conta os sistemas não impede de levar em conta as pessoas." Com efeito, podemos deduzir que o segundo motivo para a publicidade alcançada pelo fenômeno reside na formação ética e moral do indivíduo, que pode apresentar um desvio de caráter.
Aliado a estes dois fatores, encontramos um terceiro motivo, identificado pelo elemento psíquico. Sabe-se que o desequilíbrio psicológico pode ser responsável por condutas inimagináveis e que o tipo de vida a que está submetido o indivíduo pós-moderno favorece o desenvolvimento de doenças que afetam o psicológico da pessoa, fazendo-a agir de forma incompreensível.
Neste contexto, o assédio moral extraiu e extrai do sistema capitalista subsídio para se propagar, mas encontra também nas pessoas componentes da organização do trabalho a semente da violência. Este conjunto faz adoecer as relações laborais, sufocando trabalhadores, atingindo-lhes a dignidade, corroendo, reflexamente, suas relações familiares, retirando-lhes a auto-estima e fazendo-os duvidar de sua integridade psicológica.
A informação, contudo, surge como verdadeira aliada no processo de diagnose e denúncia do problema. Assim, a partir da conscientização, o trabalhador, nos anos 80, deixou de conviver silenciosamente com esse fenômeno.9
No mundo inteiro, tem-se notícia de mobbing, bullying, harassment, ijime, assédio moral ou terror psicológico. Os fenômenos não se confundem, mas são versões perversas, assemelhadas, que demonstram o grau de deterioração das relações sociais.
O assédio moral não ocorre apenas no ambiente de trabalho. Acontece também com frequência nas relações familiares em geral, inclusive na convivência conjugal, e no ambiente escolar. Entretanto, é nas relações laborais que surge com maior impacto social. A razão está, principalmente, no modelo econômico adotado no mundo. Segundo Márcia Guedes 10,
"A velha empresa, organização vertical centrada no poder diretivo, na hierarquia e na subordinação dos assalariados, sempre teve a competição como regra. A empresa pós-moderna, leve, enxuta, que executa o trabalho por rede, elevou a competição interna e externa a uma verdadeira guerra, sem compaixão pelo vencido. "
Trata-se
"(...) daquelas atitudes humilhantes, repetidas, aparentemente despropositadas, insignificantes, sem sentido, mas que ocorrem com uma freqüência predeterminada, que vão desde o olhar carregado de ódio, o desprezo e a indiferença, passa, pelo desprestígio profissional, por descomposturas desarrazoadas e injustas, tratamento vexatório, gestos obscenos, palavras indecorosas, culminando com o isolamento e daí descambando para a fase do terror total, com a destruição psíquica, emocional e existencial da vítima". 11
Portanto, todas as agressões à intimidade do trabalhador, repetitivas, capazes de reduzir-lhe a auto-estima, de desprestigiar o seu trabalho, de humilhá-lo e ofendê-lo, desequilibrando-o emocional e psiquicamente são consideradas assédio moral.
2. DEFINIÇÃO
Embora atualmente haja uma difusão do fenômeno, muitos atos são caracterizados, equivocadamente, como assédio moral. Surge, assim, a necessidade de se definir assédio moral, para se evitar a banalização, que, via de regra, leva ao descrédito.
Assediar, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira 12, é "perseguir com insistência... importunar, molestar, com pretensões insistentes." Por sua vez, a expressão moral diz respeito à conduta ética, socialmente exigida, em consonância com os bons costumes e com os princípios e regras que visam à prática do bem e a repressão do mal em relação ao próximo 13, considerando, portanto, o que a sociedade julga aceitável ou não. 14
Marie-France Hirigoyen 15, uma das maiores estudiosas do assunto, expõe que
"A escolha do termo moral implicou uma tomada de posição. Trata-se efetivamente de bem e de mal, do que se faz e do que não se faz, e do que é considerado aceitável ou não em nossa sociedade. Não é possível estudar esse fenômeno sem se levar em conta a perspectiva ética ou moral, portanto, o que sobra para as vítimas do assédio moral é o sentimento de terem sido maltratadas, desprezadas, humilhadas, rejeitadas (...)"
Ademais, em nosso ordenamento jurídico, o termo moral tem o condão de conseguir distinguir de um outro fenômeno muito próximo que é o assédio sexual e caracterizar o dano resultante de sua prática, fazendo oposição ao dano material. 16
Para o estudioso sueco Heinz Leymann 17,
"(...) assédio moral é a deliberada degradação das condições de trabalho através do estabelecimento de comunicações não éticas (abusivas) que se caracterizam pela repetição por longo tempo de duração de um comportamento hostil que um superior ou colega (s) desenvolve (m) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de miséria física, psicológica e social duradoura."
Márcia Novaes Guedes 18 define mobbing, entendido por ela como sinônimo de assédio moral, como
"(...) todos aqueles atos comissivos ou omissivos, atitudes, gestos e comportamentos do patrão, da direção da empresa, de gerente, chefe, superior hierárquico ou dos colegas, que traduzem uma atitude de contínua e ostensiva perseguição que possa acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas, morais e existenciais da vítima."
Caracteriza, portanto, o fenômeno o fato de os ataques serem regulares e se prolongarem no tempo. Uma conduta isolada, mesmo que tenha o condão de prejudicar a saúde do trabalhador, não pode ser confundida com assédio moral.
Marie-France Hirigoyen 19, ao definir o assédio moral nas relações laborais, preferiu ignorar o elemento anímico, levando em consideração o tipo de comportamento sobre as pessoas, propondo a seguinte definição: "o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho." Estresse, gestão por injúria, agressões pontuais, más condições de trabalho e imposições profissionais, por si sós, não configuram assédio moral.
Assédio moral no trabalho, portanto, é todo comportamento dos superiores hierárquicos, dos subordinados ou dos colegas do trabalhador que submete a vítima, de forma repetitiva e prolongada, a situações humilhantes e constrangedoras, afetando sua dignidade e sua saúde psicofísica e degenerando o meio ambiente de trabalho.