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O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas

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29/03/2010 às 00:00
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Sumário:1. Introdução. 2. Definição e função do Direito Penal. 2.1. Conceito de Direito Penal. 2.2. Função de Direito Penal. 3. Evolução histórica do devido processo legal. 3.1. Origens no Direito Alemão feudal. 3.2. A evolução no Direito Britânico. 3.3. A Magna Carta de 1215. 3.4. A V e XIV Emendas à Constituição dos Estados Unidos. 4. O devido processo legal substantivo entre as teorias de Rawls e Habermas. 4.1. Fundamento constitucional. 4.2. Interpretação rawlsiana do devido processo legal. 4.2.1. O primeiro princípio do Direito Penal segundo a teoria de John Rawls. 4.2.2. O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de John Rawls. 4.2.2.1. A desigualdade compensatória no Direito Penal. 4.3. Habermas contra a racionalidade instrumental do Direito. 4.4. Razão comunicativa e devido processo legal substantivo. 4.5. Proporcionalidade e respeito à dignidade humana. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa a respeito do princípio do devido processo legal substantivo sob uma perspectiva das teorias de John Rawls (1921-2002) e de Jürgen Habermas (1929 - ), no intuito de demonstrar que o Direito, especialmente o Direito Penal, não pode visto e aplicado de modo meramente formal, dissociado da realidade material, como se os seres humanos fossem sujeitos do "puro dever ser". O princípio do devido processo legal substantivo não é somente um limite à arbitrariedade do Executivo e do Judiciário, mas também do Legislativo. Isto é, a faceta substantiva do devido processo legal é uma garantia do ser humano contra Leis irracionais que mais fustigam do que protegem aqueles que essas mesmas Leis deveriam proteger. Assim, como a própria jurisprudência brasileira [01] reconhece, o devido processo legal não possui uma faceta meramente procedimental, mas também material, constituindo verdadeira garantia dos Direitos Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito.

John Rawls, em sua "Teoria da Justiça", escreveu que existem Direitos inalienáveis, que não podem ser derrogados nem em nome do interesse público ou barganhas de qualquer tipo. Há uma dimensão do ser humano que não pode sofrer interferência do Direito, ou, ainda, que deve ser protegida pelo próprio Direito contra sua intromissão indevida. "Cada pessoa possui uma inviolabilidadade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais." [02] Como visto nesta citação, pretende-se demonstrar, posteriormente, que a teoria rawlsiana é compatível com o princípio do devido processo legal substantivo.

É uma noção parecida com o chamado "mínimo de liberdade", de Hans Kelsen, que também prescreve limitações ao Poder Legislativo. "No entanto, esta esfera de liberdade apenas pode ser considerada como juridicamente garantida – conforme já pusemos em relevo – na medida em que a ordem jurídica proíba intrusões nela. Sob este aspecto, têm uma especial importância política as chamadas liberdades constitucionalmente garantidas. Trata-se de preceitos de Direito Constitucional através dos quais a competência do órgão legislativo é limitada por forma a não lhe ser permitido – ou apenas o ser sob condições muito especiais – editar normas que prescrevam ou proíbam aos indivíduos uma conduta de determinada espécie, como a prática da religião, a expressão de opiniões e outras condutas análogas." [03]

Jürgen Habermas, herdeiro da tradição da Escola de Frankfurt, repensa o Direito, principalmente no tocante ao formalismo kelseniano. O Direito, para Habermas, não é totalmente separado da Moral. Ambos são complementares. Essa legitimação do Direito [04], através da reconstrução pela teoria da ação comunicativa, impede que certas atrocidades sejam cometidas com legitimidade numa pretensa legalidade. Jamais seria permitido que um ordenamento jurídico como o do Estado Nazista se validasse em nome de uma suposta superioridade e pureza de uma raça em detrimento das outras ao cometer genocídio.

Se a Lei é um parâmetro de objetividade, o princípio do devido processo legal substantivo é um guia da objetividade segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Inicialmente, pode-se dizer que a razoabilidade da Lei elaborada, tal como sua aplicação, não pode afrontar o bom-senso, nem a pena imputada pode ser desproporcional ao ato cometido (por comissão ou omissão). Essa seria a função desse princípio, tal como se pode verificar no texto "O devido processo legal substantivo e o direito penal", de autoria do desembargador Celso Limongi. [05]

Para Limongi [06], o princípio do devido processo legal, processual e substantivo, é a gênese dos demais princípios, abrindo uma nova perspectiva na seara do Direito Penal, no qual, a doutrina predominante dispõe que o princípio da legalidade seria o princípio dos princípios. Os princípios são vetores da ordem jurídica. Portanto, há de se conceituar, inicialmente, o Direito Penal, tal como discorrer sobre as suas funções e características, antes de se adentrar na temática deste texto em interlocução com as teorias de John Rawls e Jürgen Habermas e situar o devido processo legal como o epicentro do ordenamento jurídico penal.


2. DEFINIÇÃO E FUNÇÃO DO DIREITO PENAL

Para Luiz Régis Prado, "Direto Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas conseqüências jurídicas – penas ou medidas de segurança (conceito formal). Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandatos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas conseqüências. De outro lado, refere-se, também, a comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, que afetam gravemente bens jurídicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (conceito material)." [07]

Santiago Mir Puig, por sua vez, oferece uma definição de Direito Penal que engloba, além da responsabilidade penal, a responsabilidade civil. Assim, Direito Penal, para Mir Puig, é "conjunto de normas jurídicas que associam o delito, cometido ou tentado, às penas, medidas de segurança e sanções reparatórias de natureza civil." [08] Não há conflito entre o Direito Penal e o Direito Civil, explica o jurista espanhol, pois se trata de uma opção de política criminal. "Do ponto de vista da política criminal é, pois, mais aconselhável conceber a responsabilidade civil oriunda do delito pelo prisma do Direito Penal. Não significa, necessariamente, uma contradição com a natureza civil como demonstra a perspectiva conceitual. Podem conciliar-se a partir da perspectiva que o Direito Penal também pode se integrar com um meio de natureza civil." [09]

No Brasil, por exemplo, há a ação civil "ex delicto", que confere à vitima a possibilidade de se pleitear indenização, contra o autor, pelos danos sofridos em decorrência de um crime. O próprio princípio do devido processo legal consagrado no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, estabelece que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Essa complementaridade entre os ramos do Direito é confirmada por Luiz Régis Prado. "A respeito dessa natureza constitutiva e sancionatória, convém, de logo, evidenciar que o Direito Penal opera, no contexto mais amplo do ordenamento jurídico, com todos os demais ramos do Direito, numa relação de complementaridade recíproca." [10]

O interelacionamento mais evidente entre os ramos do Direito é o do Direito Penal com o Direito Constitucional, principalmente, nos direitos e garantias contidos nos diversos incisos do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

2.2. Função de Direito Penal

Retomando. Como já explanado, o Direito Penal é o instrumento mais violento de controle de comportamentos dentro da ordem jurídica. E como tal, deve ter uma função bem estabelecida, para evitar arbitrariedades daqueles que comandam a máquina administrativa, o aparato repressivo do Estado (forças armadas, aparato policial), a elaboração das Leis e a aplicação pelo Poder Judiciário. A função do Direito Penal, assinala Luiz Régis Prado, é proteger bens jurídico-penais, que são essenciais ao sujeito e à coletividade. [11]

Para Cezar Roberto Bitencourt, na doutrina brasileira predomina a tese de que a função do Direito Penal é proteger bens jurídicos fundamentais. [12] Os bens jurídicos, contudo, não devem ser identificados meramente como ratio legis, adverte Bitencourt, já que devem ter um sentido social próprio, que é anterior à norma penal. "A proteção de bem jurídico, como fundamento de um Direito Penal liberal, oferece um critério material, extremamente importante e seguro na construção dos tipos penais, porque, assim, será possível distinguir os delitos das simples atitudes interiores, de um lado, e, de outro, dos fatos materiais não lesivos de bem algum." [13] Bitencourt explica a função do Direito Penal:

"A formalização do Direito Penal tem lugar por meio da vinculação com as normas e objetiva limitar a intervenção jurídico-penal do Estado em atenção aos direitos individuais do cidadão. O Estado não pode – a não ser que se trate de um Estado totalitário – invadir a esfera dos direitos individuais do cidadão, ainda e quando haja praticado algum delito. Ao contrário, os limites em que o Estado deve atuar punitivamente deve ser uma realidade concreta. Esses limites referidos materialmente através dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da ressocioalização, da culpabilidade, etc. Assim, o conceito de prevenção geral positiva será legítimo desde que compreenda que deve integrar todos estes limites harmonizando suas eventuais contradições recíprocas; se se compreender que uma razoável afirmação do Direito Penal em um Estado social e democrático de Direito exige respeito às referidas limitações.

A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático. A pena, sob este prisma estatal, teria reconhecida como finalidade, a prevenção geral e especial, devendo respeitar aqueles limites, além dos quais há a negação de um Estado de Direito social e democrático." (BITENCOURT, 2006, p. 11-12)

Percebe-se, portanto, que o Direito Penal tem a função de proteger bens jurídico-penais essenciais ao indivíduo e à sociedade. Contudo, existem limites para a elaboração e a elaboração da Lei Penal. Não pode a Lei Penal transgredir certos limites, nem mesmo em nome de uma maioria, numa interpretação ralwsiana da questão, sob pena de violar direitos que são inalienáveis e não estão sujeitos a qualquer tipo de barganha político-criminal. Esses limites são declarados e inseridos na Constituição e na legislação por meio de princípios que limitam a intervenção estatal, no que se refere ao aspecto jurídico-penal, no sujeito. Para Limongi, o mais importante desses princípios é o devido processo legal substantivo, que ora se passa a examinar.

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3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Não se pretende, obviamente, fornecer um arcabouço histórico completo [14] sobre o devido processo legal substantivo e processual neste texto, pois isso seria tarefa de anos de pesquisa. Apenas se traçam algumas linhas sobre os seus antecedentes históricos no intuito de contextualizar o estudo com relação aos diversos povos (e Estados) que tiveram importância na configuração das expressões jurídicas que hoje parecem ser comuns, mas que, para aquelas épocas, eram um avanço considerável, tão considerável, que seus efeitos ainda ecoarão por muito tempo na seara do Direito, em todos seus ramos.

Pois bem. De volta ao assunto. Apesar de se difundir que a doutrina do devido processo legal substantivo tenha se originado nos países de Common Law, especialmente os Estados Unidos, suas raízes positivas estão no Direito Alemão bárbaro, ensina Ruitemberg Nunes Pereira. [15] Mais precisamente, o devido processo legal tem base num Decreto Feudal datado de 28 de maio de 1037, de Conrado II (1024-1125), imperador romano-germânico da Idade Média, que versava que "nenhum homem seria privado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesne Lord), senão pelas leis do Império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judgment of his peers)". [16]

Já havia, portanto, uma noção, ainda que primitiva, do devido processo legal, tanto em seu aspecto material quanto processual, o que demonstrava que na Alemanha bárbara e provinciana era muito mais avançada que os demais países europeus na proteção dos direitos fundamentais, no entendimento de Ruitemberg Nunes Pereira. Note-se, entretanto, que tal proteção dizia mais respeito à vedação da interferência do Império e dos senhores feudais mais na propriedade, que com relação a assuntos político-criminais.

Mas há de se levar em consideração que esse instituto jurídico não teve importância somente com relação ao Direito de Propriedade, servindo como verdadeiro instrumento para evitar a violação de Direitos Fundamentais, inclusive com relação ao jus persequendi e ao jus puniendi. "Lançam-se, portanto, os fundamentos da vontade do soberano: A Lei é o único instrumento capaz de limitar direitos individuais, e, à medida que impõe procedimentos e prevê casos de limitações a direitos, deve, rigorosamente, ser observada, nos estreitos lindes das limitações impostas." [17]

3.2. A evolução no Direito Britânico

As fortes ligações entre os povos germânicos e a Inglaterra explicam a inclusão de diversos dispositivos jurídicos feudais alemães para o Direito Britânico. "Essas ligações políticas e familiares entre a Inglaterra e a Alemanha foram responsáveis pela transplantação do princípio do devido processo legal, ainda revelado pelas expressões Laws of the Empire e Judgment of his peers, constantes do Decreto Feudal de Conrado II, para o Direito Inglês, fenômeno que se dá após a conquista normanda do território britânico, em 1066." [18] Aliás, esclarece Ruitemberg Pereira, a invasão normanda foi o marco evolutivo mais importante na história do Direito Inglês, pois constitui a gênese da formação e posterior consolidação dos princípios que regem contemporaneamente a doutrina constitucional britânica. [19]

A ascensão do normando William, o Conquistador, ao torno da Inglaterra, foi extremamente importante para a conexão entre o Direito Feudal alemão da Alta Idade Média com os direitos constitucionais do Direito Britânico pós-conquista normanda, principalmente pela abertura da Inglaterra às influências dos reis francos. [20] "Tal influência dos reis francos – expressão que, embora equívoca para os nossos tempos atuais, deve ser compreendida como vinculada aos Frankish Kings, de origem germânica (e não francesa) – logo se faz sentir no reinado de Henrique I, que sucedeu no trono inglês após a morte repentina de William, o Conquistador." [21]

O sucessor de William, o Conquistador, outorgou a Carta de Henrique I [22], com o propósito de conter os abusos cometidos no reinado anterior. Henrique I promoveu a renúncia de algumas práticas feudais, como a interferência da autoridade nos direitos do casamento, a usurpação nas disposições testamentárias, por exemplo. Salienta Ruitemberg Barbosa, que na Carta de Henrique I, foram reelaboradas as palavras do Decreto Feudal de Conrado II, com a determinação do "princípio do julgamento das causas pelos compatriotas ingleses, cuja exigibilidade se retrata nas expressões latinas Unusque per pares suos judicandus est, est ejusdem provinciae." [23]

3.3. A Magna Carta de 1215

A Carta de Henrique I serviu de modelo para a famosa Magna Carta de 1215, da época do rei John, the Lackland. [24] O rei John logo que assumiu o trono, em 1199, aumentou muito a carga tributária, violando muitas vezes os direitos já consolidados dos nobres, para custear uma guerra contra a Normandia. [25] John também contraiu atritos com a Igreja, pois não conseguiu emplacar John Grey como sucessor de Hubert Walter, seu grande conselheiro depois de sua mãe, Eleanor, como arcebispo da Inglaterra. O monarca aliado a monges de Canterbury e alguns bispos peticionam ao Papa Inocêncio III que consagrasse John Grey como arcebispo, em lugar do recém-consagrado Stephen Langdon. O Papa rejeitou a petição e convenceu os religiosos a elegerem Stephen Langdon.

John, the Lackland, não recebeu o novo arcebispo. Como represália, a Igreja interditou o reino em 23 de maio de 1208. No próximo ano, o rei foi excomungado pela Igreja Católica Apostólica Romana. O rei confiscou as terras da Igreja na Inglaterra, provocando a fuga de muitos bispos do país. Já em 1211, o Papa ameaçou John, escrevendo-lhe que se não se submetesse às ordenanças do Vaticano, uma bula papal seria elaborada para destitui-lo do trono, livrando todos os súditos do seu dever de obedecer-lhe. A execução da sentença foi incumbida pelo Papa ao rei Felipe, da França. John também temia vinganças dos barões ingleses, insatisfeitos.

Diante dos acontecimentos, John resolveu submeter-se às ordenanças papais, aceitou o Langdon como arcebispo e restituiu as propriedades da Igreja. Mas isso não foi suficiente. Com a ameaça de guerra com a França, os barões ingleses não deram apoio. Os barões ainda abririam guerra contra o reino se suas liberdades civis não fossem restauradas. Depois de diversas desavenças entre os barões e o rei, John encontrou-se praticamente sem forças de resistência. Em 15 de junho de 1215, John assinou, no campo de Runnymede, a carta de exigência dos barões ingleses, a "Great Charter of Liberties", [26] em latim Magna Charta Libertatum. Paz, por enquanto, na Inglaterra. A Magna Charta foi reeditada diversas vezes. A mais significativa, porém, foi a realizada durante o reinado de Eduardo III, em 1354, por um legislador desconhecido. [27]

"Numa dessas inúmeras reedições, aparece pela primeira vez a expressão due process of law (nisso sim se reconhece a inovação, inovação essa sobre o aspecto formal ou lingüístico – significante – e não sobre o aspecto material ou contenudístico – significado), atribuindo a construção material do Direito Germânico Medieval a roupagem lingüística mais adequada ao Direito Moderno, substituindo-se assim a expressão latina legale judicium parium suorum, conforme constava no Decreto Feudal de Conrado II, na Carta de Henrique I e na Magna Carta de 1215, pela expressão inglesa due process of law." (PEREIRA, 2005, p. 56)

A redação que consagrou o devido processo legal [28], no artigo 39 da Magna Carta, é a seguinte: "Nenhuma pessoa, qualquer que seja sua condição ou estado, será privada da sua terra, da sua liberdade, da sua herança, banido, nem molestado, nem submetido à pena de morte, sem que antes responda às exigências do devido processo legal." [29] Sem mais delongas, é o que importa relatar sobre o desenvolvimento histórico do due process of law na Inglaterra. Parte-se, no próximo tópico, para o seu desenvolvimento nos Estados Unidos, de onde se importou o princípio do devido processo legal substantivo para o Brasil.

3.4. A V e a XIV Emendas da Constituição dos Estados Unidos

De acordo com Celso Limongi, Ada Pelegrini Grinover diz que o artigo 39 da Magna Carta inspirou diretamente o due process of law da Constituição dos Estados Unidos. Num primeiro momento, o due process of law foi utilizado nos Estados Unidos no sentido de law of the land [30], ou seja, com um caráter mais processual e de garantia de legalidade, que substantivo propriamente dizendo. No entanto, prossegue Limongi, além de legalidade, teve nos Estados Unidos, um significado de garantia de justiça contra eventuais arbitrariedades e absurdos do Poder Legislativo. Uma justiça que vinculasse todos os poderes do Estado, ao contrário da Inglaterra, onde jamais se concebeu que esse princípio pudesse ser invocado contra um ato do Parlamento.

Nos Estados Unidos, o devido processo legal passou a ser um limite para os atos legislativos do Congresso Nacional, servindo de suporte para a ação da Suprema Corte na declaração de invalidade de Leis inconstitucionais. O texto original da Constituição dos Estados Unidos, aprovado na Convenção da Filadélfia, não faz menção expressa ao due process of law, muito menos a Declaração da Independência dos Estados Unidos. A inclusão do termo due process of law, segundo Limongi, só se deu em 1791, com a V Emenda à Constituição. A V Emenda à Constituição dos Estados Unidos, nas palavras de Limongi, serviu para evitar abusos da Federação. [31] A sua redação é a seguinte:

"Nenhuma pessoa responderá por crimes capitais, ou outros crimes infames, sem a presença ou processamento diante de um júri, exceto nos casos de rebelião das forças de terra ou navais, nas milícias, quando em exercício em tempos de guerra ou calamidade pública; nenhuma pessoa pode ser julgada duas vezes pelo mesmo crime; nenhuma pessoa pode ser obrigada a testemunhar contra si mesma, em qualquer processo criminal, nem ser privada da sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nenhuma propriedade privada poderá ser utilizada para finalidades públicas, sem a justa indenização." [32]

Posteriormente, a XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos estabeleceu limites aos abusos (e abusos eventuais, em potencial) do poder dos Estados-Membros. Transcreve-se neste texto somente a seção 1 da XIV Emenda:

"Seção. 1. Todas pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos sujeitam-se à jurisdição dos Estados Unidos e dos Estados-membros onde residem. Nenhum Estado-Membro pode elaborar ou aplicar qualquer Lei que violem os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; não podem os Estados privar qualquer pessoa da sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; não pode ser negada a qualquer pessoa, na competência da jurisdição em que está inserida, a proteção igualitária das Leis." [33]

Apesar da consagração no texto constitucional por meio das emendas V e XIV, o due process of law ainda foi utilizado nos Estados Unidos, por meio tempo, como proteção das garantias processuais, tal como o era quando vigia a terminologia law of the land, herança do Direito Inglês. Mais tarde, porém, passou a ser vislumbrado no seu aspecto substantivo, no tocante à imposição de limites aos atos do Legislativo e como escudo contra a violação de Direitos Fundamentais. A consolidação desse aspecto substantivo, conforme Ruitemberg Nunes Pereira, se deu nos Estados Unidos com maior força a partir da segunda metade do século XIX. [34] A seguir, no próximo tópico deste texto, a contextualização do devido processo legal substantivo no ordenamento jurídico constitucional e penal brasileiro, tal como sua interpretação à luz da teoria da justiça de John Rawls e da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2462, 29 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14592. Acesso em: 18 abr. 2024.

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