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Lei 9983/00: crime de apropriação indébita previdenciária

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No dia 17/07/2000 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 9.983 que, entre outras alterações empreendidas no Código Penal Brasileiro, fez inserir no corpo desse estatuto o crime de apropriação indébita previdenciária.

A antiga redação do art. 95 da Lei 8.212/91, no qual eram previstos os crimes praticados em detrimento da previdência social, não era de boa técnica, pois se limitava a enunciar o preceito mas não cominava sanção, obstando a sua aplicabilidade em função do princípio da legalidade que impede a aplicação de pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX e CP, art. 1º). Apenas em relação às alíneas d, e e f é que o § 1º fez remissão à pena cominada no art. 5º da Lei 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional) que era de 2 a 6 anos, possibilitando a persecução penal nesses casos.

Dentre esses crimes, avulta o previsto na alínea d, art. 95 da Lei 8.212/91, cuja redação é a seguinte:

Art. 95 – constitui crime:

...

d) deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público;

Em um primeiro momento, a jurisprudência dos tribunais federais inclinou-se no sentido de que a referida conduta era modalidade de apropriação indébita, exigindo para a configuração do delito a presença do elemento volitivo consistente no animus de ter para si os valores não recolhidos (animus rem sibe habendi). Consequentemente, se não restasse comprovado esse elemento anímico, por sinal, de difícil comprovação, a conduta era atípica e o acusado absolvido.

Posteriormente, esse entendimento evoluiu para reconhecer que o tipo seria autônomo, e não modalidade de apropriação, cuidando-se na verdade de crime omissivo puro (ou próprio) que prescinde da intenção de apropriar-se dos valores não recolhidos. Com base nessa jurisprudência, a simples conduta de o agente arrecadar a contribuição do empregado e não recolhê-la aos cofres da previdência, independente da destinação dada a esses recursos, configura o crime. O argumento de insuficiência de recursos em razão de grave crise financeira, freqüentemente invocado pelos empresários como ausência de dolo (rectius: excludente de culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa), em regra, não é aceita pelo Judiciário.

Com a edição da nova lei volta à tona a discussão. Se o legislador optou por tipificar a conduta como modalidade de apropriação indébita e atribuiu ao tipo o título de apropriação indébita previdenciária, decerto, não faltarão novos argumentos para tentar ressuscitar o antigo entendimento jurisprudencial que exigia a presença do animus rem sibe habendi para a configuração desse delito.


Façamos, então, uma breve análise das novas disposições para depois, manifestarmos nossa opinião a respeito:

Apropriação indébita previdenciária

Art. 168 - A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

O núcleo do tipo é deixar de repassar, que constitui, inequivocamente, conduta omissiva; o sujeito ativo é aquele que tem o dever legal de repassar à previdência a contribuição recolhida dos contribuintes; o sujeito passivo é a previdência social; objeto jurídico é a subsistência financeira da previdência; o tipo subjetivo é o dolo consistente na vontade livre e consciente de deixar de repassar as contribuições recolhidas pelos contribuintes. Não existe modalidade culposa.

Normalmente, as contribuições destinadas ao custeio da previdência são recolhidas nas instituições bancárias (Lei 8.212/91, art. 60) que, por força de convênios celebrados com o INSS, dispõem de prazo para repassarem os valores aos cofres da previdência. Daí a alusão do dispositivo ao prazo convencional.

Eventualmente, podem incorrer também nesse delito os agentes públicos. Como é sabido, as contribuições das empresas incidentes sobre o faturamento e o lucro, bem como as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos (Lei 8.212/91, art. 11, parágrafo único, d e e), são arrecadadas e fiscalizadas pela Secretaria da Receita Federal (Lei 8.212/91, art. 33), cujos valores respectivos devem ser repassados mensalmente pelo Tesouro Nacional (Lei 8.212/91, art. 19). Portanto, a inobservância desse dever legal, que antes constituía simples infração administrativa, passou a ser contemplada como ilícito penal.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiro ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou a prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

O inciso I apenas incorporou ao CP o crime anteriormente previsto no art. 95, d, da Lei 8.212/91, com pequenas alterações. Na essência, não houve alteração significativa. O crime continua a ser omissivo puro, autônomo em relação à apropriação indébita, inexigindo o animus de se apropriar dos valores não recolhidos.

Cabe aqui uma observação: a despeito da denominação "apropriação indébita previdenciária" não se exige para a configuração do delito a intenção de apropriar-se dos valores arrecadados e não recolhidos (animus rem sibe habendi). Tal requisito somente é exigido na apropriação indébita comum em função do núcleo do tipo que é apropriar-se, que significa fazer sua a coisa, tomar para si. Ora, o tipo deve ser analisado em função dos seus elementos descritivos, normativos e subjetivos, e não do rótulo que lhe apõe o legislador. Assim, em nossa opinião, subsiste a corrente jurisprudencial que sufragou o entendimento de tratar-se de crime omissivo puro, autônomo, distinto da apropriação indébita.


Em suma: a nova redação do dispositivo não teve o condão de reavivar a tese jurídica já debelada pelo Judiciário, de modo que incabível a alegação de ausência do animus rem sibe habendi com a finalidade de afastar a tipicidade da conduta.

No entanto, algumas alterações em relação ao texto do art. 95, d, da Lei 8.212/91 podem ser apontadas:

  1. em primeiro lugar, por óbvio, a denominação do tipo de apropriação indébita previdenciária e a sua inserção no Código Penal como modalidade desse crime;
  2. o novo dispositivo, de forma mais técnica, refere-se à previdência social, que efetivamente pressupõe contribuição (CF, art. 201), ao passo que a redação anterior falava em seguridade social que, como é sabido, abrange previdência, assistência social e saúde (CF/88 art. 194), sendo certo que as ações e serviços referentes à assistência social e saúde, independem de contribuição (CF, art. 196 e art. 203);
  3. A alusão a contribuição que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurado ou a terceiro nada mais é do que o ato de arrecadação. Na verdade, a contribuição é arrecadada do contribuinte e recolhida aos cofres da previdência social. É o que se pode inferir do art. 30, I, II, III, V e §3º, da Lei 8.212/91. Bastaria, portanto, que o legislador fizesse referência à contribuição arrecadada dos contribuintes;
  4. o dispositivo revogado falava apenas em deixar de recolher na época própria contribuição ou outra importância, enquanto que o atual dispositivo refere-se à forma ao prazo legal. Referidos prazos estão estabelecidos na Lei de custeio da previdência social (Lei 8.212/91, art. 30, I, b, V; art. 31);
  5. finalmente, houve redução da pena máxima de seis para cinco anos de reclusão. Como dito anteriormente, a pena prevista era a mesma cominada aos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 8.212/91, art. 95, § 1º).

No inciso II, o dispositivo pune a conduta de quem deixa de recolher as contribuições que integraram a escrituração contábil como despesa ou foram repassadas para o custo do produto ou serviço, pois neste caso o contribuinte de fato é o consumidor final, não se justificando que a pessoa que não saiu onerada da relação econômica deixe de recolher a contribuição à previdência social.

Por sua vez, o inciso III prevê a conduta do agente que deixa de pagar ao segurado benefício do qual já foi reembolsado pela previdência. Explica-se: em regra os benefícios previdenciários são pagos diretamente ao segurado pelo INSS através da rede bancária (Lei 8.212/91, art. 60). No entanto, em alguns casos, para facilitar o pagamento e para evitar que os segurados se amontoem em frente aos postos do INSS, o benefício é pago ao segurado pelo empresa que é ressarcida desse pagamento nas futuras contribuições a seu cargo. Os exemplos típicos são o salário-família (art. 68 da Lei 8.213/91) e o salário maternidade, sendo que, atualmente, por força da Lei 9.876/99 que alterou o art. 72 da Lei 8.213/91, o salário maternidade vem sendo pago diretamente pela previdência (Decreto 3.048/99, art. 93, na redação que lhe foi dada pelo Decreto 3.265/99). Agora, não só os velhinhos terão que enfrentar as filas quilométricas do INSS, mas também as gestantes e as mães em estado puerperal! Mas o pagamento poderá ser efetuado, mediante convênio, pela empresa, sindicato ou entidade de aposentados (Decreto 3.265, art. 311), que serão reembolsados desses valores.

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O § 2º prevê uma hipótese de extinção da punibilidade quando o agente, antes de iniciado qualquer procedimento de fiscalização, confessa a dívida e efetua o pagamento integral dos valores. A medida, sem dúvida, tem por objetivo aumentar a arrecadação.

A lei 8.212/91 não continha disposição expressa neste sentido. No entanto, era entendimento pacífico na jurisprudência a aplicação do art. 34 da Lei 9.249/95 através da chamada analogia in bonam partem. Referido dispositivo, bastante flexível, prevê a extinção da punibilidade quando o agente promove o pagamento do tributo ou contribuição social até o recebimento da denúncia.

Agora, o novo texto, muito mais rigoroso, somente admite a extinção da punibilidade quando o agente efetua o pagamento antes de iniciado qualquer procedimento de fiscalização.

O § 3º prevê uma hipótese de perdão judicial, facultando ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a pena de multa se o agente for primário e de bons antecedentes desde que tenha promovido o pagamento após o início da fiscalização e antes de oferecida a denúncia ou se o valor, acrescidos os acessórios, não suplantar o limite mínimo estipulado pela Previdência para ajuizamento da execução fiscal, em razão da inviabilidade econômica frente aos custos do procedimento.

O dispositivo exige o concurso dos requisitos da primariedade e bons antecedentes com um dos dois outros requisitos previstos nos incisos.

Note-se que o texto fala em oferecimento e não em recebimento da denúncia. Em relação ao limite mínimo para ajuizamento das execuções fiscais, pode ser tomado como parâmetro o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) estabelecido pelo art. 1º da Lei 9.441/97 ou, de forma mais benéfica, valendo-se da integração analógica, já que o dispositivo penal em valor estabelecido administrativamente, pode o julgador considerar para essa finalidade o art. 1º, II da Portaria 289/97 do Ministério da Fazenda, que autoriza o não-ajuizamento de execuções de valor inferior R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

Nada impede, entretanto, a aplicação do princípio da insignificância que, segundo a concepção material do tipo, afasta a própria tipicidade da conduta, autorizando, inclusive, a rejeição da denúncia (CPP, art. 43, I).

A despeito da expressão "é facultado ao juiz", é intuitivo que se trata de direito público subjetivo do réu. Logo, estando presentes os requisitos legais, a recusa do julgador em aplicar o benefício configura constrangimento ilegal sanável por habeas corpus. Em verdade, subsiste certa margem de discricionariedade ao magistrado apenas em deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a pena de multa, devendo fazê-lo de forma fundamentada, evidentemente.

Convém lembrar, no entanto, que nos termos de seu art. 4º, a Lei 9.983/2000 somente entrará em vigor noventa dias após a data de sua publicação, encontrando-se, ainda, no período de vacatio legis. Assim, excluindo-se o dia do começo, o referido texto legal entrará efetivamente em vigor no dia 15 de outubro de 2000.

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Sobre o autor
Wellington Cláudio Pinho de Castro

juiz federal substituto da Subseção Judiciária de Imperatriz (MA), ex-procurador do INSS em Pernambuco e no Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Wellington Cláudio Pinho. Lei 9983/00: crime de apropriação indébita previdenciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1496. Acesso em: 22 dez. 2024.

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