I - INTRODUÇÃO
O presente texto nasceu do conhecimento da edição da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1999, o qual disciplina os incisos I,II e III do Art. 14 da C.F. que prevêem o exercício direto da soberania popular.
Compulsando o texto legal e a própria Constituição, não apenas no dispositivo supra invocado mas em vários outros em que se trata da manifestação popular se adotou especial enfoque sobre o plebiscito ou referendo, justamente por serem os institutos mais antigos debatidos no campo do direito eleitoral e constitucional.
Não foi fácil escrever essas poucas páginas considerando, principalmente, o reduzido material pesquisado. Mesmo consultando algumas bibliotecas nesta capital (UFPE, Justiça Federal, INSS e TRE), os livros encontrados não tratavam, especialmente, do tema enfocado e os poucos artigos se repetiam nas bibliotecas, de modo que, realmente, o estudo teve que se pautar, por uma análise muito mais pessoal do Autor do que a princípio seria o objetivo pretendido.
Partiu-se de um breve explanação sobre as noções de forma de governo e do papel da manifestação popular como meio legitimador da ações estatais. Em seguida se passou a tecer considerações sobre as diferentes formas de exercício popular do poder estatal através das alternativas previstas constitucionalmente, quais sejam: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
Após essa etapa se iniciou um estudo específico sobre o plebiscito e o referendo, cotejando-se, rapidamente, as diferentes manifestações constitucionais brasileiras. Em seguida a esse exame, com espeque na Lei n 9.709/98 e nos dispositivos constitucionais vigentes, procurou-se delimitar os limites materiais à convocação de plebisicito e referendo, sendo este o ponto central de trabalho que ora se apresenta ao leitor.
II. NOÇÕES DE FORMAS DE GOVERNO
Quando o exercício de poder de uma dada sociedade ocorre por regras que não se submetem, juridicamente, a um poder superior, temos o que se denomina de Estado soberano. Nesse Estado, o exercício do poder político pode ocorrer de várias formas (de governo). Sem incursionar sobre as inúmeras classificações existentes invoca-se a doutrina de MAQUIAVEL, citado por Palhares Moreira Reis (1982: 22), como ponto de partida para a presente abordagem. O mencionado Autor europeu classifica as formas de governo em Monarquia e República, sendo consideradas como formas fundamentais de governo.(DALLARI, 1989: 190).
A primeira (Monarquia) corresponde ao governo de um só o monarca - , o segundo (República) o governo de vários. Essas formas básicas de governo, no entanto, podem variar de acordo com o grau de concentração do poder em: 1) Monarquia: a) absoluta; b) limitada. Na forma absoluta, historicamente, o soberano apenas presta contas à divindade, exercendo o poder em nome e por conta de Deus. Na forma limitada há a "coparticipação de outros indivíduos do grupo no processo de decisão." (REIS, 1982: 28).
A República, por seu turno, pode ser caracterizada por seus centros de decisão em: a) democracias absolutas, quando existe, apenas, um órgão imediato e primário de tomada de decisão, como na Grécia antiga(1); b) oligarquias, quando existem vários orgãos diferentes e imediatos de decisão, nos quais um pequeno número de pessoas exerce a vontade soberana do Estado; c) aristocracia quando o governo se exerce por intermédio de um segmento da sociedade que compõe, p.ex., uma classe ou raça, os quais são os únicos que podem exercer os privilégios da tomada de decisão política. A "república pode ser democrática, quando o povo(2) é considerado como órgão supremo do Estado..." (REIS, 1982:29).
É comum vincular-se o conceito de democracia ao seu sentido etimológico, adverte, no entanto, Palhares Moreira Reis, que esse critério é insuficiente para extrair seu verdadeiro sentido. Afirma o referido Autor que: "Há sempre um conjunto de elementos que, em qualquer circunstância, aparece, e que pode ser usado como base para extrair um significado da expressão <democracia>. Através dos tempos, e substancialmente através do estudo das intenções dos diversos grupos que dizem adotar um governo democrático, entende-se que se trata de um governo de muitos, em oposição ao governo de um só, e governo pelo povo, para diferenciar da concentração do Poder nas mãos de um só (monarca absoluto, ditador)."(1982: 72). Segundo esses ensinamentos pode-se observar que muitos dos governos que atualmente regem as nações pelo mundo não podem se considerados como democráticos. Por esse motivo Ribeiro(1996: 02) demonstra seu espanto ao verificar o desvirtuamento doutrinário da conceituação de <democracia> arrimando-se em enquete promovida pela Unesco, em 1949, entre diversas nações tanto no Oriente como no Ocidente, onde se verificou que todas esses Estados se autoproclamavam de democráticos.
A democracia, por seu turno, pode ocorrer com a participação direta da população na tomada das decisões políticas da sociedade ou através da representação, quando se escolhem indivíduos que iram representar a população no exercício do poder estatal. Saliente-se, no entanto, que pode haver representação do poder estatal sem a ocorrência de eleições, como no caso do poder judiciário brasileiro (REIS, 1982: 44). Admiti-se, também, a democracia semi-direta ou semi-representativa, como um sistema misto, entre a democracia direta e democracia representativa. Nesse sistema adota-se, em regra, a democracia representativa e apenas em determinados momentos, de acordo com a relevância do acontecimento, adota-se a democracia direta. No Brasil adota-se o sistema misto ou democracia semi-direta ou semi-representativa(MIRANDA, 1992: 25) como se extrai do parágrafo único, do Art. 1° da Constituição Federal: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
As formas diretas do exercício do poder popular encontram-se dispostas no Art. 14 da C.F. o qual dispõe que entre os direitos políticos, a manifestação popular dar-se-á através do "I plebiscito; II referendo; III iniciativa popular.(3)"
III. A PARTICIPAÇÃO POPULAR DIRETA COMO
ALTERNATIVA LEGITIMADORA DAS DECISÕES POLÍTICAS
A legitimidade do poder político sempre suscitou questionamentos. Na Grécia antiga se exercia o poder político excluindo-se segmentos relevantes da sociedade como as mulheres e os escravos, mesmo assim costuma-se rotular aquela forma de governo como de democrática. Sob nosso prisma atual o governo da Grécia antiga não pode ser considerado como democrático mas, considerando tratar-se de uma sociedade que dista mais de dois mil anos do mundo contemporâneo, é bastante razoável que o modelo Grego receba a rotulação mencionada, uma vez que a divisão de poder naquela Sociedade era, na época, o modelo político mais próximo do que atualmente se denomina de democracia.
A noção de legitimidade vem sendo alterada, através dos tempos. O que era considerado como governo político plenamente legítimo, há mais de 2000 anos, obviamente não o é no momento. A exclusão de segmentos da sociedade na participação política(mulheres, negros ou pobres, p.ex., seja na democracia direta ou representativa) passaram a colidir com os principais ideais da Revolução Francesa, quer sejam: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Com a exclusão paulatina das exceções referidas passou-se a ter, cada vez mais, um crescimento na participação popular na tomada de decisões políticas. No entanto, com a grande distância dos centros de decisão política e o crescimento natural dos conglomerados urbanos inviabilizou-se, quase por completo, a prática da democracia direta em todo o mundo, apenas em algumas regiões, como nos Cantões Suíços, ainda persiste a democracia direta. A democracia representativa passou a ser regra a ser adotada pela quase totalidade dos Estados.
O problema da legitimidade, no entanto, não se extinguiu.(4) A eleição de representantes do povo por critérios democráticos, pode não ser suficiente para que a sociedade, efetivamente, se sinta representada. Basta verificar-se a composição das casas legislativas, nas diferentes esferas de poder, para se constatar que os segmentos da sociedade não se encontram representados de forma equilibrada. É inegável, p.ex., que há mais representantes de empresários, nas casas legislativas do que operários. Essa distorção gera um grave problema de legitimidade.
Para o representante estatal que necessita do reconhecimento popular, em situações extremas, pode-se requisitar a ouvida do povo como forma de legitimar suas ações, quer seja previamente (plebiscito) ou mesmo para confirmar as decisões adotadas (referendum), dividindo-se a responsabilidade da ação política com os demais membros da sociedade. É o que se denomina, como visto, de democracia semi-direta.
IV. AS DIFERENTES FORMAS DE PARTICIPAÇÃO
POPULAR DIRETA NO PROCESSO POLÍTICO
Constitui-se como direito político, previsto constitucionalmente, a manifestação popular através da: iniciativa popular, do plebiscito e do referendo (Art. 14 da C.F.).
IV.1. Iniciativa popular
É a manifestação direta do povo na elaboração das leis federais ordinárias ou mesmo complementares, como dispõe o Art. 61 § 2° da C.F. , bem como na hipótese de legislação municipal ou estadual (Art. 27 § 4° e 29, XIII, da C.F), respectivamente. Nesse caso, adverte-se não se tratar de matéria atinente ao direito eleitoral(5), mas a processo legislativo.
Através da iniciativa popular tem-se a possibilidade direta de manifestação do eleitorado nas propostas legislativas. A nível da legislação federal o constituinte impõe que a proposta deverá ser subscrita, ao menos, por um por cento do eleitorado nacional e que estes eleitores estejam distribuídos em pelo menos cinco Estados brasileiros, cuja manifestação por Estado não poderá ser inferior a 3/10 por cento dos eleitores.
Trata-se de alternativa constitucional cuja efetividade não vem ocorrendo como deveria. A primeira razão consiste nas dificuldades práticas do recolhimento de quase 1 milhão de assinaturas, dividida em cinco Estados brasileiros. A segunda, decorre da primeira e consiste no fato de ser muito mais fácil obter o "patrocínio" de um representante do legislativo federal do que empreender uma verdadeira "cruzada" para obtenção das assinaturas. Deve-se ressaltar, no entanto, que os projetos assinados por essa via possuem uma legitimidade extremamente expressiva, podendo, com mais razão, ser invocada a via constitucional quando se tratar de questões de alta relevância.
IV. 2. Plebiscito e referendo
O plebiscito constitui-se em poderoso instrumento posto à disposição dos detentores de poder, visando legitimar suas ações.(6) "Significando ato de decidir, a palavra plebiscito tem origem em plebs (plebe) e sciscere (decretar). Em Roma, estando separados em classes os patrícios e os plebeus, eram inicialmente estes que, ao se reunirem para votar as suas leis (as quais requeriam, então, aprovação pelo Senado) exerciam o que se cunhou como sendo o plebiscito". (7) (ROCHA: 1992: 54). Esta é a origem genética do plebiscito.
O referendo não se confunde com plebiscito. A "grande diferença é que, enquanto no primeiro o povo é chamado a decidir sobre um determinado texto legal, no plebiscito a decisão tem como objetivo apoiar ou rejeitar em bloco um regime político, ou mutação profunda no seu ordenamento ou estrutura."(REIS, 1982: 84).
Fávila Ribeiro, por seu turno, fala que o plebiscito é o "pronunciamento feito corpo de votantes em favor de uma mudança a ser introduzida nas instituições fundamentais do Estado." e referendum como a "manifestação de assentimento exarada pelo voto popular para conferir validade a uma proposição normativa ordinária." (Ribeiro: 1996, 04)
J.J. Gomes Canotilho afirma que plebiscito é "a decisão que transcendendo a normatividade constitucional, e sem quaisquer limites políticos e jurídicos, legitima, em termos "democráticos-populares", uma ruptura constitucional ( encapuçada ou não sob a forma de revisão ou reforma da Constituição)." E referendum "será a consulta popular directa que, respeitando os princípios básicos do Estado de direito democrático-constitucional , tanto no procedimento como no seu conteúdo e sentido, visa alterar - total ou parcialmente a ordem jurídico-constitucional existente (ex.: revisão total ou parcial da constituição na forma por esta estabelecida)".(CANOTILHO, 1993: 123).
Segundo BONAVIDES: APUD ROCHA: 1992: 55) "O plebiscito, ao contrário do referendum circunscrito sempre às leis seria um "ato extraordinário e excepcional, tanto na ordem interna como externa.." Teria por objeto medidas políticas, matéria constitucional."
Pode-se concluir não haver pacificação doutrinária na conceituação de plebiscito e referendo. Os conceitos doutrinários são fluídos, permitindo interpretações as mais diversas sobre os institutos invocados.
V. PLEBISCITO E SEU DESENVOLVIMENTO NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Da origem grega até o direito constitucional brasileiro, passaram-se mais de 02 milhares de anos, até que o instituto jurídico foi incluído, primeiramente, na Constituição de 1937(8), cuja aplicação se previa após a vigência do então diploma constitucional. (ROCHA: 1992: 56). O plebiscito em verdade, não aconteceu mas a inovação constitucional já havia ocorrido.
A Carta Constitucional de 1946, por seu turno, em seu Art. 2º(9), também previa, a exemplo da C.F. de 1937, a ocorrência de plebiscito nas mesmas hipóteses do Art. 5º da C.F. anterior.
A Emenda Constitucional nº 04, de 02 de setembro de 1961, instituiu o Sistema Parlamentar de Governo, já prevendo em seu Art. 25 que "A lei votada nos termos do art. 22 poderá dispor sobre a realização plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses, antes do termo do atual período presidencial." Ocorrido o plebiscito de janeiro de 1963, retornou-se ao sistema presidencialista de governo.
As Constituições de 1967 e 1969 silenciaram a respeito do plebiscito, apenas retornando na Constituição de 1988. Ressalve-se, no entanto, que os arts. 14 das Constituições de 1967 e de 1969 previam a edição de lei complementar para a consulta prévia às populações locais para a criação de novos municípios. O plebiscito foi escolhido como forma para a consulta prévia da população(melhor seria como vimos a designação simples e precisa de povo), pela Lei Complementar nº 01 de 09 de novembro de 1967.
A Constituição de 1988 atual foi clara e expressa incluindo o plebiscito como direito político e forma de exercício do poder de sufrágio(Art. 14). O sufrágio na visão, sintética, mas precisa, de Palhares Moreira Moreira Reis é a "técnica que permite emitir uma opinião, ou escolher um representante." (REIS, 1982: 82)
No direito brasileiro o plebiscito sempre esteve ligado a alterações profundas na estrutura política. Há quem entenda que o plebiscito é uma ameaça para o Estado Democrático de Direito no Brasil(Ferreira: 1992, 191). Diz o Autor que no Brasil a "publicidade da propaganda política é dominada pela mídia eletrônica em poder de autênticos monopólios de fato". Lembra o insígne mestre que "O plebiscito sempre foi uma arma perigosa nas mãos do Estado autoritário nas épocas de Hitler e Mussolini, que conseguiram cerca de 90% de aprovação eleitoral." Conclui seu pensamento afirmando "´É menos perigoso à democracia avança e consciente, porém uma ameaça mortal à liberdade do povo nas falsas democracias dos países de economia dominada".
Ouso discordar, em termos, da opinião do insigne Mestre. A meu ver me parece muito mais fácil manipular os legisladores pátrios, através do "sistema" de trocas de interesses, o qual a imprensa constantemente divulga, do que manipular toda a sociedade. Obviamente que nem os legisladores, nem os eleitores estejam imunes a serem conduzíveis para um determinado caminho não se nega aqui o poder de influência da mídia - a grande diferença entre uma hipótese e outra é que há uma legitimidade muito maior no ato estatal que esteja escudado na iniciativa popular daquele que não está.
Mesmo com essa crítica penso que em pelo menos um caso, o eminente doutrinador tem total razão em sua assertiva, o plebiscito feito para a emancipação de Municípios têm sido verdadeira prova de nossa incapacidade de tratar desse assunto relevante. Com a liberdade dadas às Leis Estaduais criaram-se um sem-número de Municípios, até a edição da Emenda Constitucional n° 15/96, sem qualquer condição material de emancipação, na mais das vezes, cedendo-se a mesquinhos interesses políticos em detrimento dos próprios Munícipes.
VI. PLEBISCITO E REFERENDO E SEUS LIMITES MATERIAIS
VI.1 Situação anterior à edição da Lei nº 9709/98.
Como já se disse anteriormente, ao tempo da C.F. 67, foi editada a Lei Complementar no. 01/67 dispondo sobre os limites materiais dos plebiscitos. Dizia o art. 3º da invocada LC:
"Art. 3o. As Assembléias Legislativas, atendidas as exigências do artigo anterior, determinarão a realização de plebiscito para consulta à população da área territorial a ser elevada à categoria de Município."
Parágrafo único. A forma de consulta plebiscitária será regulada mediante resoluções expedidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais".
Vê-se, de logo, que o disciplinamento da invocada Lei Complementar era bastante restrito e circunscrevia-se à hipótese de criação de Município.
O plebiscito não constava, expressamente, da Constituição Federal de 1967/69, estando os seus limites submetidos à Lei Complementar n° 01/67, até a vigência da Lei nº 9.709/98.
Veja-se, p.ex., a resposta, pelo TRE do Paraná, à consulta formulada pela Câmara de Vereadores de Curitiba, que pretendia realizar plebiscito visando a ouvida da população a respeito de obra pública de vulto, extraída do artigo de Reginaldo Fanchin, assim dispôs:
"Ementa: Consulta acerca da aplicabilidade do disposto no parágrafo único do art. 3o. da Lei Complementar 1/67 para a forma de consulta plebiscitária prevista no art. 109 da Lei Orgânica do Município de Curitiba. Inexistência de previsão legal para tanto.
A Lei Complementar 1/67 atribui ao TRE a competência para designação de data para realização de plebiscito apenas nos casos de criação de novos municípios.
O caput do art. 14 da CF que criou novas formas de consulta popular (onde se insere a aludida no art. 109 da Lei Orgânica do Município de Curitiba) ainda depende de Lei Federal regulamentadora para sua eficácia." (FANCHIN, 1991: 160)
Pelo que se observa o TRE paranaense entendeu que nem mesmo legislação estadual ou municipal poderia regulamentar a Constituição Federal de 1988 para os fins de dar aplicabilidade ao dispositivo constitucional, fora dos limites do então vigente § 4o. do artigo 18 da C.F.(10)
Esclareça-se que o § 3º do Art. 18 da C.F. vigente inovou ao trazer a previsão expressa de plebiscito nos casos de incorporação, subdivisão, desmembramento ou anexação de Estados ou Territórios Federais, cuja eficácia, no entanto, encontra-se dependente de edição de Lei Complementar.
Com a Emenda n° 15/96 e a exigência de lei complementar federal para a criação de Municípios cessou a prática desmedida do surgimento de Municípios que até então vinha acontecendo, estando esse dispositivo constitucional, portanto, esvaziado de eficácia até a edição da invocada Lei.
A Constituição Federal, em seu Art. 14, não impõe, contudo, limites materiais ao exercício da soberania popular pelo plebiscito. O legislador constituinte além de fornecer status constitucional a essa alternativa de exercício da soberania popular, também abriu fecundo campo a ser regulamentado pela legislação infra-constitucional, não se limitando às questões territoriais entre Municípios.
Esclarece-se, no oportuno, que no âmbito dos Estados e Municípios tem-se dois modelos de plebiscito (ou referendo): 1) O que trata de alterações territoriais de Estados e Municípios(11), regulados pelo Art. 18 da C.F. §§ 3º e 4º(C.F.), os quais encontram-se, especialmente, tratados pelos Arts. 3º, 4º, 5º , 7º; da Lei nº 9.709/98 2) Aquele tratado no Art. 2º e 6º da Lei nº 9.709/98, os quais se encontram com plena eficácia, e sobre os quais se passará a tecer considerações a partir de agora.
Que matéria poderá ser tratada no plebiscito? Até a edição da Lei Ordinária Federal n° 9.709, de 18 de novembro de 1998 o plebiscito estava limitado às hipóteses previstas na Constituição, por dependerem da Lei que viesse complementar o dispositivo constitucional. Essa situação se encerra com a edição da Lei n° 9.709/98.
VI.2. O tratamento infra-constitucional do plebiscito e referendo dado pela Lei n° 9.709/98.
A mencionada norma legal foi editada com a finalidade de regulamentar o disposto no Art. 14, I, II e III da C.F. A primeira pergunta que pode ser feita é? Por que foi editada pela ordinária ao invés de lei complementar como se fazia na ordem constitucional anterior?
A resposta é bastante simples: a Constituição em vigor não exige a edição de lei complementar para tanto. O Art. 14 da C.F. apenas diz que o dispositivo constitucional será regulamentado por Lei, sem especificar qual. Quando isto acontece o STF vem entendendo, em inúmeras oportunidades, que se trata de lei ordinária federal. Exige-se lei ordinária federal, afastando-se a regulação por lei estadual ou municipal considerando que se trata de direito político (direito eleitoral) a qual a competência para legislar é privativa da União (Art. 22, I, C.F.), sendo indelegável a competência, inclusive, a teor do Art. 66 § 1° , II, C.F. Nada impede, no entanto, que com base na Lei recém-aprovada, os Estados e Municípios não possam regular seus próprios plebiscitos, logicamente que pode, desde que estejam submetidos às regras da legislação regente e à Constituição Federal.
A Lei n° 9.709/98, nascida do substitutivo n° 3.589/93, do Deputado Federal do PSDB/SP Almino Afonso, dispõe em seu Art. 2° , caput, que "Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa." Nos §§ 1° e 2° desse Artigo encontra-se a diferença entre o institutos: "§ 1° O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido." E no § 2° : "O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição."
A primeira observação que merece ser feita é o rompimento com a tradicional distinção que se fazia do plebiscito e referendo, como visto supra. Pelo dispositivo legal a única diferença entre eles é que um tem um caráter ratificatório, chancelatório(referendo) o outro plebiscito, tem um caráter autorizativo, permissivo. Nesse sentido é oportuno invocar-se Almino Affonso, o Autor do projeto da Lei n° 9709/98: "Tendo em vista a controvérsia no âmbito da doutrina e da história, sobre a conceituação de plebiscito e referendo, valho-me da lição de Gládio Gemma ("os dois termos são, a rigor, sinônimos") e opto por defini-los de maneira direta e objetiva: plebiscito e referendo são consultas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa, cabendo diferenciá-los, tão-somente, quanto a ordem de convocação..."(AFFONSO, 1996: 17).
Destaque-se, ainda, que a mencionado Artigo, pela 1a. vez, trata materialmente do plebiscito, circunscrevendo seu objeto em "matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa." A primeira questão que salta aos olhos é o que vem a ser matéria de acentuada relevância?
Numa primeira vista pode-se indagar se existe matéria constitucional que não seja de acentuada relevância? Creio que não. Por ser matéria constitucional é matéria de acentuada relevância, ao menos sob a ótica do legislador constituinte, tanto assim que integra o corpo constitucional.
No entanto, nem toda matéria constitucional poderá ser levada à consulta plebiscitária(e ao referendo), mesmo que seja reconhecidamente de acentuada relevância. A razão é bastante simples como o plebiscito e o referendo são convocáveis pelo legislativo nacional(Art. 49, XV, da C.F.), - por proposta de um terço no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional(Art. 3° da Lei n° 9709/98 e no caso dos Estados e Municípios na forma que dispuser a Constituição Estadual(12) e a Lei Orgânica do Município(Art. 6° da Lei n° 9709/98) não me parece lógico que nas matérias de exclusiva iniciativa do Poder Judiciário ou do Presidente da República ou mesmo da competência privativa do Congresso Nacional, quando não for possível a "delegação de competência", tenha-se a convocação do plebiscito ou referendo, que se representa, nos moldes traçados pela Lei 9709/98, como uma abdicação de competência do Poder Legislativo.
Não se pode abdicar daquilo que não se possui. De outra parte poder-se-á argumentar que não se estará abdicando da competência, mas apenas criando os meios necessários para que o legítimo titular do poder de sufrágio possa exercê-lo, sem intermediários, qual seja: o povo.
Essa interpretação não se apresenta compatível com o Estado de Direito pois transfere a apenas um poder - o legislativo - a faculdade de convocar a ouvida do povo nas questões que lhe pareçam mais relevantes, mesmo quando se trate de matéria submetida à iniciativa legislativa privativa de um dos poderes.
Essa limitação não ocorreria caso houvesse a previsão legal de convocação do plebiscito pelo ato comum dos três chefes dos poderes estatais (legislativo, executivo ou judiciário). A Lei, no entanto, não faz qualquer previsão nesse sentido.
O Art. 3° da Lei n° 9.709/98 no entanto limitou, materialmente, a convocação de plebiscito?e referendo:
"Art. 3° . Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3° do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, ?or proposta de um terço no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei."(grifos inexistentes no original).
Merece observar-se que a Lei não incluiu as questões do Poder Judiciário como suscetíveis de plebiscito e referendo. Deve-se interpretar adequadamente o dispositivo. Quando a mencionada Lei fala das questões de relevância nacional (melhor seria ter permanecido com a expressão acentuada relevância a que alude o Art. 2° da Lei, em respeito ao disposto no Art. 11, II, "b" da L.C. n° 95/98 que trata do processo legislativo)(13) dos Poderes Executivo ou Legislativo e não fala do Poder Judiciário ela exclui, tão-só, a atividade própria do Poder Judiciário, qual seja, sua atividade judicante. Não se poderá cogitar referendo em que se venha indagar a correção ou não de determinada decisão judicial, no caso concreto. Nesse caso, estar-se-ia atribuindo ao legislativo, o papel de "superpoder controlador", o qual na sua competência para convocar plebiscito ou referendo, poderia, em tese, - excluindo-se a dificuldade de operacionalizar a consulta - submeter as decisões judiciais contrárias ao seus interesses, mesmo aquelas ainda não prolatadas(em hipótese de plebiscito), ao controle popular(a exemplo do que acontecia, assemelhadamente, na C.F. de 1937). Sem dúvida, nem ao menos uma emenda constitucional poderia atribuir esse poder ao Legislativo, por ofensa ao princípio da separação dos poderes(Art. 60 § 4° , C.F.).
Não se exclui, todavia, do referendo ou plebiscito aquelas matérias que, em tese, o Congresso Nacional tenha iniciativa legislativa, mesmo quando se refira ao poder judiciário. Ora, se o congresso nacional pode iniciar o processo legislativo porque não poderia "abdicar"(14) dessa competência em nome do povo. Nesse caso, a meu ver, não haveria qualquer ofensa constitucional ou legal.
Quanto à matéria legislativa ou administrativa, a qual se liga com muito mais vigor às competências dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios para convocação de plebiscito ou referendo, de fato, o dispositivo se torna de difícil delimitação. Apenas no caso concreto ver-se-á qual matéria se apresenta como de acentuada relevância para fins plebicitários ou de referendo.
É até desejável que a legislação não tenha apresentado "hipóteses legais" em que o plebiscito ou referendo poderão ser exigidos. O que atualmente apresenta-se de elevada relevância poderá não ser no futuro. Nesse ponto a Lei merece aplausos, afinal de contas é tradição em nosso direito positivo que as Leis tenham vida curta e as que tem vida mais perene são constantemente alteradas por apenas trazerem, em regra, disposições casuísticas.
De qualquer forma, transfere-se a conceituação do que seja de elevada relevância para o corpo legislativo federal, Estadual, Distrital ou Municipal.