A sociedade brasileira a partir da implantação do Estado democrático de direito com a Constituição de 1988 passou a discutir novamente temas relacionados com sua estrutura sócio-econômica, política, cultural e jurídica.
Seguindo essa nova tendência fala-se em reforma da previdência, reforma administrativa, reforma judiciária, como se todos os problemas do Brasil pudessem ser resolvidos por meio de mudanças, através de decretos. Acredita-se que o os modelos existentes são inoperantes, e que os comportamentos possam simplesmente serem modificados através da Lei.
No conjunto dessas reformas encontramos àqueles que entendem que a Justiça Militar deve ser extinta, por ser um órgão de exceção, por ser uma Justiça voltada para a impunidade, que legitima a violência policial entre outras coisas.
Conforme constou no Jornal do Senado e foi divulgado pelo Infojus, o Ministro Celso de Melo, presidente do Supremo Tribunal Federal, teria afirmado que não existe mais sentido, "em tempos de paz, que civis sejam julgados pela Justiça Militar", e ainda segundo o Ministro, "que o país deve extinguir a Justiça Militar no âmbito do Estado".
Com a devida venia, ao posicionamento do Ministro do Pretório Excelso, a questão da extinção da Justiça Militar merece algumas considerações, então vejamos.
Quando se trata do tema da extinção da Justiça Castrense percebe-se que não se menciona a extinção da Justiça Militar Federal, limitando-se o tema à discussão da extinção apenas e tão somente da Justiça Militar Estadual.
Em nosso sistema jurídico, o militar divide-se em duas categorias, os militares que são integrantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), art. 142 da Constituição Federal, e os militares que são integrantes das Forças Auxiliares (Polícia Militar e Corpos de Bombeiro Militar), art. 42 "caput" da Constituição Federal, com as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional n.o 18. Em decorrência dessa divisão temos uma Justiça Militar Federal e uma Justiça Militar Estadual.
A Justiça Militar Estadual, que encontra-se prevista e disciplinada na Constituição Federal, art. 125, parágrafos 3.o e 4.o, sendo um órgão constitucional, é formada em 1.a instância pelas Auditorias Militares, e em segunda instância pelos Tribunais de Justiça Militar, que existem apenas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e nos demais Estados por Câmaras Especializadas do Tribunal de Justiça. O Órgão Superior da Justiça Militar, em matéria recursal ou originária é o Superior Tribunal Militar (S.T.M), art. 122, I, e art. 123 da Constituição Federal.
O artigo 125, parágrafo 4.o da Constituição Federal, disciplina que nenhum civil em tempo de paz será julgado pela Justiça Militar Estadual porque esta não possui competência para fazê-lo. Segundo o artigo mencionado, "Competente a Justiça Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (grifo nosso)
Por força de disposição constitucional, se um civil ingressar em uma Organização Policial Militar (OPM) e ali praticar um furto, ocasionar um dano à Administração Pública Militar Estadual, ou qualquer outro crime, em decorrência deste fato e por força do art. 125, parágrafo 4.o da Constituição Federal, será julgada pela Justiça Comum, pois a Justiça Militar não possui competência para julgá-lo. Em tempo de paz, será sempre, regra esta absoluta, julgado pela Justiça Comum.
É importante se observar que se este mesmo civil ingressar em uma organização militar (OM) pertencente a uma das Forças Armadas, e ali praticar um furto, um dano aos bens da Administração Pública Militar Federal, ou qualquer outro crime militar, mesmo que em tempo de paz, por força do art. 124 "caput" da Constituição Federal será julgado pela Justiça Militar Federal, sendo que nas discussões em termos de modificações da estrutura do Poder Judiciário conforme mencionado não se fala da extinção desta Justiça Especializada.
Além dessa competência, antes do advento do novo Texto Constitucional, a Justiça Militar Federal ainda julgava os civis incursos nos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, como ocorreu no período de 64-87, sendo que essa atribuição passou para o âmbito da Justiça Federal.
Partindo-se do entendimento do Presidente do Congresso Nacional, Senador Antônio Carlos Magalhães, segundo o qual é necessário a extinção dos "órgãos inúteis, inclusive os tribunais civis e militares", seria necessário se repensar a existência de todas as Justiças Especializadas que a muitos anos vem exercendo atividade jurisdicional, e prestando serviços de qualidade ao país.
A Justiça Militar não é uma criação brasileira, mas existe em Estados desenvolvidos como Israel, Estados Unidos, Portugal, entre outros, com Procuradorias Militares, Advogados Militares, que integram os quadros das Forças Armadas, com atividades que lhe são peculiares.
A maioria dos estudantes de direito e alguns operadores da ciência jurídica desconhecem a existência do Código Penal Militar, Código de Processo Penal Militar, Estatuto dos Militares, disposições a respeito de continências, e demais textos legais da vida de caserna, sendo que estas matérias nem mesmo constam da grade obrigatória das faculdades de direito.
Em decorrência da particularidade das funções desenvolvidas pelos militares (federais ou estaduais) nada mais justo do que estes sejam julgadas por pessoas que conhecem o dia-a-dia da atividade militar, o que leva a existência dos chamados Conselhos de Justiça, Permanentes ou Especiais, que são órgãos colegiados formados por civis e militares. O civil que compõe o Conselho é o auditor militar provido no cargo por meio de concurso de provas e títulos e os militares são oficiais da Corporação que exercem sua funções junto às auditorias por período de três meses, sendo que cada Conselho possui um juiz militar e quatro oficiais.
Ao contrário do que se possa pensar, a Justiça Militar é uma Justiça eficiente que busca a efetiva aplicação da Lei, no intuito de evitar que o militar, federal ou estadual, volte a cometer novos ilícitos, ou venha a ferir os preceitos de hierarquia e disciplina, que são elementos essenciais das Corporações Militares.
Percebe-se que a especialidade da Justiça Militar, estadual ou federal, se deve em decorrência da particularidade das atividades constitucionais desenvolvidas pelo militares.
O que se poderia questionar e que muitas vezes é esquecido pela maioria daqueles que pretendem discutir o assunto, seria o afastamento da competência da Justiça Militar em relação aos crimes militares impróprios, ou seja, àqueles que também se encontram previstos e disciplinados no Código Penal comum.
Com relação aos crimes dolosos contra a vida, onde a vítima seja um civil, uma vez que este na Justiça Militar Estadual por força do art. 125, parágrafo 4.o da Constituição Federal jamais poderá ser julgado na condição de autor, co-autor ou partícipe, a competência foi transferida para a Justiça Comum.
Mas, devido a falta de uma maior discussão e por imprecisão de técnica legislativa o inquérito policial continua sendo de competência da autoridade militar, que após a sua conclusão remeterá os autos ao integrante do Ministério Público comum para que ofereça a denúncia se assim o entender, ou peça o seu arquivamento ou a realização de novas diligências, o que levou a uma dicotomia que se assemelha mais a uma heresia jurídica, como ensinava o Professor Seixas Santos em suas aulas na Faculdade de Direito "Laudo de Camargo" da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
A discussão é uma das qualidades do Estado democrático de direito, é a via que fortalece as instituições e conduz ao aprimoramento dos órgãos existentes, mas é necessário que esta seja feita de forma tranqüila, sem buscar atender a um discurso meramente reformador ou a uma determinada tendência.
Há mais de 100 (cem) anos a Justiça Militar Federal vem exercendo seu papel jurisdicional, sempre prevista e disciplinada nas Constituições que foram promulgadas ou outorgadas em nosso país.
A extinção desses Tribunais poderá conduzir ao caos, uma vez que existem matérias que são peculiares a vida militar como insubordinação, abandono de posto, deserção, motim, delito do sono, e outras, previstas e disciplinadas no Código Penal Militar.
No tocante a extinção da Justiça Militar Estadual, que é competente para julgar apenas e tão somente os policias militares e bombeiros militares, seria necessário a extinção das Polícias Militares criadas em 1831 por ato do então regente Padre Feijó, com o surgimento de um novo órgão dedicado a função de Segurança Pública.
No Brasil por força da sua própria formação histórica assim como ocorre na França, Itália e outros países, se faz necessária a existência de uma Polícia com uma estética militar, com atividades constitucionais para o policiamento ostensivo e preventivo, e nada mais justo que no exercício de suas atividades esses agentes sejam julgados por uma Justiça Especializada.
A morosidade que também existe na Justiça Castrense poderá ser encontrada em qualquer Justiça Especializada, Federal, Trabalhista ou Eleitoral, pois se deve a vários fatores como o número de processos, a falta de estrutura material, a falta de funcionários, e o número limitado de juízes.
A questão da impunidade nesses Pretórios não condiz com a realidade, uma vez que uma análise dos processos julgados nas auditorias militares levam a conclusão que várias pessoas, ou seja, vários militares, policiais militares, e bombeiros militares, foram condenados por violarem os disposições do Código Penal Militar.
Portanto, ao invés de se discutir a extinção da Justiça Castrense seria necessário uma revisão em sua competência, deixando em sua atribuição apenas os crimes propriamente militares, remetendo-se os impróprios para a Justiça Comum.