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Inimigo e Direito Penal

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Resumo:


  • O Direito Penal do Inimigo caracteriza-se pela punibilidade de atos preparatórios, penas excessivamente altas e pela mitigação ou supressão de garantias.

  • Críticas apontam que a inflação legislativa antiliberal e o aumento de penas não contribuem para a prevenção de delitos, violando princípios constitucionais e o Estado de Direito.

  • O conceito de Direito Penal do Inimigo é contestado por ser incompatível com o Direito Penal tradicional, por violar direitos fundamentais e por representar um retrocesso ao reduzir indivíduos a meros objetos de coação, ameaçando a dignidade humana e a democracia.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

INTRODUÇÃO

Atualmente vivemos um período de grande "terror midiático". Ligamos o televisor e nos deparamos com jornalistas fazendo um grande drama sensacionalista elegendo o criminoso que receberá o estigma de inimigo da sociedade. Faz-se uma propaganda de que esses inimigos não merecem viver com pessoas de bem, assim, não merecem viver com dignidade, pois são extremamente "maus". Induzem a população a pensar que a única solução para a criminalidade é a criação de mais tipos penais e o recrudescimento das penas.

Destarte, a população movida pelo pânico produzido pela mídia, clama por punições mais severas para esses objetos, ou melhor, "seres malignos", aplaudindo leis que possuem penas desproporcionais, que mitigam ou suprimem direitos e garantias e que criam novos tipos penais, assim, consentem a utilização de elementos que são próprios do Direito Penal do Inimigo (que tem como foco o perigo a ser neutralizado).

O Direito Penal, assim, é visto como a solução de todos os males, como educador e os legisladores criam leis cada vez mais severas com o intuito de se destacarem no cenário político.

O presente trabalho tem como escopo demonstrar a história do inimigo no Direito Penal, definir o que é Direito Penal do Inimigo e analisar as críticas dirigidas ao mesmo.


A HISTÓRIA DO INIMIGO NO DIREITO PENAL

Ao longo de toda a história do Direito Penal, ou melhor, do poder punitivo, sempre houve a identificação de um inimigo, isto é, esteve constantemente presente a seletividade, sendo importante destacar que a reação que enseja a individualização de um inimigo sempre teve caráter político [1].

A individualização de uma pessoa como inimiga tem como base a sua suposta periculosidade, descaracterizando-a como pessoa, assim, ela passa a ser considerada um mero ente daninho, um objeto perigoso, desprovida de alguns direitos individuais. A pena para essas pessoas (inimigos), teria o único objetivo de contenção de um perigo. [2]

Segundo Zaffaroni [3], o conceito de inimigo surgiu no próprio direito romano, e serve de suporte para as subclassificações do conceito de inimigo que procuram legitimar o diferencial tratamento do poder punitivo, que são racionalizadas pela doutrina penal. No direito romano havia duas categorias de inimigos: o hostis alienígena, que era o inimigo em geral, ou seja, aquele que incomodava o poder, como por exemplo, os insubordinados, os que não tinham disciplina ou o simples estrangeiro. E o hostis judicatus, que eram excepcionalmente declarados como tal pelo Senado, quando representavam uma ameaça à segurança da República, desta forma, eram declarados inimigos públicos. Estes pertencem ao núcleo dos dissidentes que configurarão os inimigos políticos puros de todos os tempos.

No século XV o poder europeu foi se ampliando para outros continentes, o que ficou conhecido como colonialismo. Após, houve o neocolonialismo (a partir do século XVIII) e a partir do século XX junto com outras potências desenvolvidas exerce a globalização.[4]

Para que a Europa exercesse esse poder, ela teve que reordenar suas sociedades, para tal fim retomou o poder punitivo que havia desaparecido com o fim do Império Romano. O retorno ao poder punitivo significava a apropriação pelo poder público do conflito, ou seja, o poder público tomaria o lugar da vítima, assim, a vítima seria um mero dado para a criminalização. Desta forma, o poder público adquiriu uma grande capacidade de decisão nos conflitos, selecionando as pessoas sobre as quais recairia o seu poder e a medida e forma desse poder, exercendo-o, assim, de forma arbitrária. Essa estruturação do poder punitivo foi usada como pretexto para vigiar, disciplinar e neutralizar os disfuncionais - para que toda sociedade participasse de um mesmo ideal -, legitimando um verdadeiro genocídio colonialista. [5]

No discurso teocrático da colonização é a própria mitologia cristã que permite a criação do inimigo, sendo o primeiro inimigo o próprio Satã. Assim, com base no medo e no preconceito, o poder punitivo criou um novo inimigo, aproveitando-se da crença nos malefícios das bruxas. Desta forma, além de confiscar o papel da vítima, o Estado confisca também o papel de Deus. [6]

Nesse diapasão, houve uma repressão penal plural, onde o poder punitivo considerava como inimigos os autores de crime graves, sobre os quais recaía a eliminação física. Também eram eliminados os inimigos políticos. As pessoas que reincidiam em pequenos delitos ou que se comportavam de forma indisciplinada eram denominadas indesejáveis, estas eram neutralizadas pela morte ou mediante a incorporação forçada aos exércitos ou ainda pela imposição de trabalhos forçados. Já os delinquentes ocasionais eram considerados amigos (iguais), desta forma, mereciam certa benevolência quando eram submetidos ao poder punitivo. [7]

A morte pública dos dissidentes políticos e daqueles que cometiam crimes graves reafirmava a vigência da norma e também cumpria a função de contenção. [8]

O poder punitivo era acompanhado pelo modelo inquisitorial, assim, a busca da verdade era realizada por meio do interrogatório ou inquisitio, onde era permitida a tortura até que o inquirido (objeto do conhecimento) respondesse a questão com clareza e de forma suficiente. Neste momento há o sequestro de Deus pelo dominus. Essa prática acompanhou a revolução mercantil e o colonialismo. O dominus representava o bem e todos a que a ele se opusessem representavam o mal. O fundamento que legitimava a violência contra o inquirido era a necessidade da verdade pelo dominus. Para concretizar sua bondade, ele precisava também ser quase infinitamente sábio, assim, nada podia opor-se a sua ânsia pela verdade. A sua bondade se manifestava na libertação dos males que ameaçavam a todos, os quais se exteriorizavam através das bruxas ou da heresia. [9]

No momento em que o Estado torna-se laico, o saber torna-se o bem e a ignorância, o mal. Assim, nada pode deter a busca pela verdade, legitimando-se toda violência sobre o objeto de conhecimento. O dominus (sujeito cognoscente) sempre estará num plano superior ao objeto de conhecimento. [10]

O conhecimento necessita sempre mais, destarte, o saber do dominus necessitava sempre crescer mais, com a justificativa de que isso era indispensável para a libertação dos males cósmicos. Surge assim, um saber que busca sempre o poder, ou seja, tem-se como objetivo a dominação do objeto de conhecimento. Como o objeto de conhecimento é um ser humano, para conservar a posição de dominus, é necessário hierarquizar esse ser, incorrendo em todas as formas de discriminações e crueldades imagináveis. Todo obstáculo ao saber do dominus é inimigo do bem e aliado do mal. [11]

Na Revolução Industrial, houve o surgimento de uma nova classe (industriais e comerciantes), que queria enfraquecer a classe já estabelecida (nobreza e clero). A arma da classe estabelecida era o poder punitivo, assim, a nova classe tinha como objetivo enfraquecer tal poder, dessa forma, criou-se um discurso penal redutor, em busca de mudanças no poder penal punitivo, que continuou a ser exercido de forma seletiva, mas tornou-se um instrumento para o crescimento ou expansão da nova classe. [12]

A pena de morte continuava a ser aplicada aos dissidentes e aos criminosos graves, sendo estes os assassinos. Já para os indesejáveis, a medida aplicada era a neutralização – prisões com altas taxas de mortalidade, a deportação ou a submissão a julgamentos intermináveis utilizando como medida de neutralização a prisão preventiva ou provisional. Embora a prisão tenha substituído a pena de morte, ela significava uma verdadeira pena de morte nas metrópoles. Cumpre destacar, que o fator mais importante para a mudança parcial do poder punitivo foi a concentração urbana, mas mesmo introduzindo importantes novidades, o poder punitivo continuava sendo seletivo, assim, o grupo de iguais continuava sendo muito reduzido. [13]

O Poder Punitivo, usado como instrumento verticalizador das sociedades colonialistas e neocolonialistas, foi utilizado nas sociedades colonizadas para convertê-las em grandes campos de concentração para os nativos, que eram considerados biologicamente inferiores. Os nativos eram tratados como inimputáveis e os mestiços como loucos em potencial, desta forma, justificava-se a exclusão, e os mais rebeldes eram considerados inimigos. [14]

No século XX, com a Revolução Mexicana, iniciou-se à derrubada das repúblicas oligárquicas, o poder punitivo se transformou ao compasso das ditaduras de velho estilo e de processos políticos denominados como populismo. Os discursos penais abandonaram o positivismo puro e se matizaram com teorias alemãs importadas sucessivamente como técnicas, com total amputação do seu marco político e social original. A legislação contou com a influência do Codice Rocco e dos projetos suíços de Stooss. [15]

Os populismos não eram simpáticos às administrações norte-americanas, estas, por meio de golpes de Estado, promoveram retrocessos nos incipientes Estados impulsionados pelos populismos. Esta atitude gerou resistências - que com o decorrer dos anos, deram lugar a movimentos minoritários armados de inspiração marxista -, assim, com este pretexto, os Estados Unidos da América (EUA), intervieram nesses países, provocando novos golpes de Estado que instalaram fortes ditaduras e regimes militares [16].

Os inimigos dos regimes militares não se detiveram somente aos integrantes de grupos minoritários armados, mas a toda possibilidade de mudança social progressista. As ditaduras de segurança nacional latino-americanas aplicaram reclusão perpétua, excepcionalmente à pena de morte formal, e ao mesmo tempo medidas de extermínio para os indesejáveis ou execuções policiais sem processo [17].

Aos dissidentes foram executadas duas formas de exercício do poder punitivo, devido a um desdobramento do sistema penal. Assim, havia um sistema penal paralelo que os eliminava através de detenções administrativas ilimitadas, e um sistema penal subterrâneo, que procedia a eliminação direta por morte e ao desaparecimento forçado, sem nenhum processo legal. Deste modo, o poder punitivo neste contexto foi exercido de forma ilimitada [18].

A administração norte-americana também pressionou para que estas ditaduras declarassem guerra às drogas, com o fundamento na segurança nacional. À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim na Alemanha, tornou-se necessária a eleição de um novo inimigo que justificasse a alucinação de uma guerra e para manter níveis elevados de repressão. Como consequência, em 1980, toda a região estabeleceu uma legislação penal autoritária, com violação de vários princípios penais e a introdução no âmbito processual de elementos inquisitoriais. [19]

A droga não teve o condão de ocupar o lugar deixado pela queda do muro de Berlim e o autoritarismo penal não teve efeito preventivo, assim, a repressão não consegue refrear o uso de drogas. [20]

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A revolução tecnológica ou comunicacional deu origem à globalização, com isso, permitiu-se que se espalhasse pelo planeta um discurso único de características autoritárias, antiliberais, que estimula o exercício do poder punitivo mais repressivo e discriminatório em escala mundial. Esse discurso é um fenômeno midiático e publicitário. Assim, o autoritarismo (que permanece com características inquisitoriais) se impõe como discurso único, diferentemente da forma como se impunham os autoritarismos anteriores. [21]

Na Europa de entreguerras o autoritarismo se baseava em discursos penais de caráter biologista, como o marxismo na Rússia, o idealismo na Itália e o racismo na Alemanha. [22]

Os discursos, neste contexto, nutriam-se da ideologia proveniente do século XIX, isto é, tendo como base à periculosidade (positivismo). Destarte, os inimigos eram considerados parasitas pelos soviéticos, subumanos para os nazistas e inimigos do Estado para os fascistas. Todos esses que eram reduzidos à condição de inimigo, eram submetidos a um sistema penal paralelo, que era composto por tribunais especiais inquisitoriais. Esse autoritarismo exerce o seu poder de forma ilimitada, cruel, genocida, criando sistemas penais subterrâneos, sem nenhum respaldo legal. Assim, eram mostrados somente o sistema penal formal e alguma coisa do sistema penal paralelo, enquanto o sistema penal subterrâneo ficava por trás dos panos. [23]

Os criminosos graves eram mortos, os dissidentes eram mortos ou exilados e os indesejáveis eram aprisionados por tempo indeterminado, mas os nazistas decidiram também pela eliminação destes. [24]

As leis autoritárias eram dirigidas aos autocratas para agradá-los, ao público como forma de propaganda, e secundariamente, se dirigiam a burocratizar a supressão de inimigos, que eram os estranhos ou hostis. As leis se dirigiam ao público com o objetivo de propaganda, e não, por serem democráticas, desta forma, elas respondem à técnica völkisch, que corresponde em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo escolhido, é uma propaganda popularesca. [25]

O nazismo foi a coroação do conceito de inimigo ôntico criado por Rafael Garofalo consagrando a escola positivista, e da propaganda völkisch, essa combinação permite indicar quais são as vidas indignas de serem vividas, vidas sem valor de vida, possibilitando a declaração dos judeus como inimigos, ocupando o lugar que era de Satã na inquisição. Houve, assim, o desenvolvimento da periculosidade até as últimas consequências, sendo o critério da medida penal a periculosidade [26].

A justificativa do poder punitivo ilimitado é sempre o discurso da alucinação de uma guerra e toda a identificação de inimigo baseia-se em um mito. O autoritarismo do entre-guerras realizou esse processo de modo perversamente grosseiro, baseado em uma construção brutal e irracional, legitimada pela propaganda völkisch. [27]

O autoritarismo entreguerras corresponde ao antigo autoritarismo, que se impõe de forma diversa de como é imposto o novo autoritarismo (baseado em um discurso único), que Zaffaroni denomina de autoritarismo cool.

Desde 1980, nos EUA, a criação do inimigo tem sido uma preocupação entre os políticos [28]. Ideias bastante difusas, mas igualmente confusas como "crime organizado" ou "corrupção" foram utilizadas como norte para a criação de inimigos, na busca de preencher o vazio que a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), deixou. O tráfico de drogas, nos EUA, ao contrário do que ocorre no Brasil, não foi suficiente para a criação do inimigo. O terrorismo, que ressurge após os atentados em Nova Iorque em 2001, permite a criação de um estado de alerta permanente desde então, embora dificilmente possa ser aplicado aos inimigos internos, indesejáveis e dissidentes, que não se encaixam no estereótipo criado para o terrorista [29].

Na Europa, os imigrantes são candidatos preferenciais a se tornarem inimigos, uma vez que, eles sim, se encaixam com facilidade no estereótipo de terrorista. O estrangeiro imigrante sempre foi um forte candidato a ser declarado inimigo, desde Roma até os dias atuais [30].

Já na América Latina, a situação se dá muitas vezes por medidas preventivas (ou medidas de contenção); segundo Zaffaroni [31] três quartos dos presos ainda não foram condenados, estão presos por medidas cautelares, segundo a presunção de sua periculosidade. O indivíduo encontra-se preso por ser suspeito de um fato consumado. O crime ocorreu, mas quem está preso em três quartos dos casos não é o condenado por ele e sim o acusado ou suspeito. Soma-se a isso o fato de que os corpos policiais são bastante problemáticos, lidando com graves problemas de corrupção, com o fato de não poderem se sindicalizar e de que, em muitos lugares, como no Brasil, estão militarizados. Desta forma, na América Latina todos os suspeitos são considerados inimigos no exercício real do poder punitivo.

Atualmente, contudo, não se pode mais criar inimigos baseados exclusivamente em questões de gêneros, como as bruxas, ou em questões étnicas, como os judeus na Alemanha nazista, e a velocidade das comunicações exigem coisas novas constantemente criando, nesse aspecto, uma necessidade constante de bodes expiatórios, dentro de um aparato publicitário völkisch que se move quase que por si mesmo. Logo, cria-se o que Zaffaroni denominou de autoritarismo cool do século XXI, baseado em convicções passageiras, modistas. Gera-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana com o aumento do rigor da legislação penal, legitimando-se a violência policial. [32]

O autoritarismo cool tem o que Zaffaroni chama de opacidade de perversão; uma perversão sem brilho, sem convicção, um discurso meramente publicitário, sem qualquer inspiração acadêmica, nem a mais superficial, repleto de irracionalidade [33]. "(...) É uma guerra sem inimigo definido; o único inimigo que invariavelmente reconhece é o mesmo de todo autoritarismo: quem confronta seu discurso". [34] Logo, trata-se de um vazio de pensamento [35], reflexo da condição atual do Estado moderno, que, enfraquecido e incapaz de resolver problemas sérios da situação social, optam por fingir que conhecem a solução e a elencar inimigos, baseando-se numa motivação simbólica. [36]

Pode-se assim, criar um grande movimento de deslegitimação dos direitos, especialmente se não há um meio claro de identificação daqueles declarados como inimigos. [37]

Todos podem ser inimigos, o que leva à necessidade de se exercer um controle social autoritário sobre toda a população, o que incorre em uma limitação generalizada da liberdade e na prisão de inocentes. Criam-se expedientes que as forças policiais poderão utilizar corriqueiramente, seja para crimes comuns, seja para vinganças pessoais, e aumenta-se a chance de tortura. Consiste-se, assim, em um tratamento repressivo para todos, o que se refere mais a um Estado Absolutista do que ao Estado de Direito. [38]

Nota-se que em toda a história aquele que detinha o poder, de forma arbitrária, segundo os seus interesses, individualizava as pessoas que seriam consideradas inimigas. Desta forma, o poder punitivo sempre foi seletivo, e podemos observar que a classificação de inimigo que surgiu em Roma perdura até os dias atuais com diferentes nuances. [39]

Jakobs utilizou pela primeira vez a expressão Direito Penal do Inimigo em 1985 para criticar o avanço do endurecimento das leis penais, mas em 1999 passou a defender tal fenômeno com o objetivo de conter o seu avanço indiscriminado. [40]

Até a virada do milênio, o Direito Penal do Inimigo era um assunto praticamente ignorado. Este conceito era utilizado para criticar as novas tendências da legislação penal, ou se dirigia o foco para problemas dogmáticos específicos. Havia também uma minoria que tentava legitimá-lo, o que não atraiu nenhuma atenção. [41]

Segundo Luís Greco:

Já as manifestações mais recentes de Jakobs provocaram apaixonadas reações. Na Alemanha respondeu-se principalmente à palestra proferida no congresso sobre "A ciência jurídico-penal alemã diante da virada do milênio", enquanto no exterior levou-se em conta também um estudo mais extenso, cuidadosamente traduzido por Cancio Meliá. [42]

Alguns autores, assim, começaram a participar da discussão e foram formulados vários argumentos, principalmente adotando-se uma postura crítica. O foco principal das críticas foi a possibilidade de ser retirado do ser humano o seu status de pessoa, reduzindo-a a um mero objeto de coação. Também foram oferecidas várias diagnoses. [43]

A proposta de Jakobs é que existam dois pólos no Direito Penal, um chamado Direito Penal do Cidadão, dirigido àqueles que oferecem uma garantia cognitiva de um comportamento pessoal, isto é, "(...) a todos aqueles que são fiéis ao ordenamento jurídico com certa confiabilidade" [44]. O outro é chamado de Direito Penal do Inimigo, dirigido aos que não oferecem uma garantia cognitiva do comportamento pessoal, isto é, aqueles que se afastaram de modo permanente do direito e que oferecem perigo ao ordenamento jurídico. [45]

De acordo com essa dicotomia proposta por Jakobs, Salo de Carvalho afirma que, "(...) há o redimensionamento no marco ideológico defensivista com a assunção formal da dicotomia bem e mal e com a estruturação explícita da beligerância como norte programático do direito e do processo penal". [46]

O inimigo é considerado um mero ente perigoso, assim, ele perde o seu status de pessoa e alguns direitos fundamentais, pois ele se nega a entrar em um estado de cidadania por não oferecer uma garantia cognitiva do seu comportamento, então, não merece gozar dos benefícios deste mesmo estado, como por exemplo, os terroristas, aqueles que cometem crimes econômicos, sexuais e a criminalidade organizada [47].

Sobre essa classificação de Jakobs, Salo de Carvalho aduz que:

A inevitável ampliação do conceito de inimigo, ao ultrapassar o marco dos integrantes de grupos terroristas para agregar as demais organizações criminosas, fornece condições de expansão das malhas de punitividade a partir da radical ruptura com os sistemas de garantias constitucionais. (...) Abre espaço, portanto, para a justificação do terrorismo de Estado (direito penal do terror) através da aplicação do direito penal (do inimigo). [48]

O Direito Penal do Cidadão pune os atos exteriorizados, assim, espera-se que o cidadão cometa o ato para ser punido [49]. A pena tem função de reafirmação da vigência da norma, como afirma Jakobs:

(...), a finalidade da privação da liberdade ao delinquente de evidente periculosidade, como, por exemplo, no caso do terrorista, é diferente da que ocorre em relação a um delinquente cuja periculosidade ulterior não mostre um grau similar de evidência. No caso normal do delito, a pena é uma espécie de compensação que é executada necessariamente à custa da pessoa do delinquente: a pena é contradição – isso é evidente – é infligir dor, e esta dor é medida de tal modo que o apoio cognitivo da norma infringida não sofra pelo fato cometido. Tanto a contradição como a dor se pré-configuram no plano dogmático jurídico-penal no conceito de culpabilidade.(...). [50]

O Direito Penal do Inimigo combate inimigos (entes perigosos),assim, ele tem como escopo à contenção do perigo (o combate à periculosidade), desta forma, a pena tem como função a eliminação de um perigo mediante a coação.

Destarte, a medida executada contra o inimigo não significa nada, somente coage, não tendo relação com a culpabilidade do agente, mas sim, com a sua periculosidade. [51] A punibilidade recai sobre o âmbito da preparação, não sobre os atos cometidos, dirigindo-se à pena à segurança frente a fatos futuros. [52] Segundo Jakobs , "(...) materialmente, é possível pensar que se trata de uma custódia de segurança antecipada que se denomina pena". [53]

Jakobs, como afirmado anteriormente, defende o Direito Penal do Inimigo como uma parte bem delimitada do Direito Penal, como forma de contenção de seu crescimento ilimitado. Desta forma, defende que na perspectiva de um Estado de Direito, é mais seguro reconhecer a presença do Direito Penal do Inimigo em um pólo delimitado do Direito Penal, do que contaminar o Direito Penal Geral com fragmentos do Direito Penal do Inimigo, já que nem todas as pessoas que cometem crimes são inimigas do ordenamento jurídico [54]. Conforme Jakobs, "(...) um Direito Penal do Inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias do Direito Penal do Inimigo." [55]

Alguns filósofos já adotavam o conceito de inimigo em suas teorias, como Rousseau, Fichte, Hobbes e Kant. Jakobs faz uma polarização entre tais pensadores, considerando como radicais Rousseau e Fichte, para os quais todos os delinquentes seriam considerados inimigos, e moderados Hobbes e Kant, para quem só alguns seriam considerados de tal forma. [56]

No posicionamento de Rousseau:

(...), todo malfeitor que viole o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da pátria, deixa de ser seu membro ao infringir suas leis, e até lhe faz guerra. Então a conservação do Estado é incompatível com a sua, sendo necessário que um dos dois morra, e quando se faz perecer o culpado, é menos na qualidade de cidadão do que na de inimigo. Os processos, o julgamento, são as provas e a declaração de que ele rompeu o tratado social, e que, em conseqüência, não é mais membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela sua residência, deve ser segregado pelo exílio como infrator do pacto, ou pela morte como inimigo público; porque semelhante inimigo não é uma pessoa moral, é um homem, e é então que, pelo direito de guerra, deve-se, matar o vencido. [57]

Rousseau ainda afirma que "(...) não se tem o direito de matar, mesmo como exemplo, a não ser aquele que não se pode conservar sem perigo" [58].

Fichte admite o conceito de inimigo para algumas pessoas, como os assassinos, incorrigíveis e traidores, excluindo-os do direito penal, deixando-os sobre o âmbito do Direito Administrativo. Aos inimigos cabe a pena de morte como medida administrativa eliminatória. Embora o infrator perca todos os direitos ao violar o contrato, ele faz surgir um novo contrato que é o considerado de expiação, que origina o direito de exigir a pena proporcional para proteger a segurança pública. Ele defendia a exclusão somente quando o contrato de expiação fosse insuficiente, mas o agente poderia sempre reclamar o direito de melhorar, assim, a exclusão tratava-se sempre de uma exclusão temporária, salvo no caso do agente não melhorar ou de assassinato. Assim, só ficavam fora do contrato os assassinos, os incorrigíveis e os traidores. Os assassinos ainda tinham uma chance quando pessoas, voluntariamente, se comprometiam em assumir o risco de corrigir-los, desde que não colocasse em risco a segurança dos outros cidadãos. [59]

Jakobs não segue a concepção de Rousseau e Fichte, pois segundo ele:

(...), na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso, deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres tem como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato. [60]

Jakobs se inspira em Hobbes e Kant. Hobbes defende que o inimigo é aquele que comete um crime de alta traição, pois representa uma recaída ao estado de natureza, sendo este castigado como inimigo, e não, como súdito. Assim, o delinquente mantém o seu status de cidadão, a não ser que ameace a organização do Estado. [61]

Kant considera como inimigo aquele que insiste em permanecer num mero estado de natureza, representando, assim, um perigo constante àqueles que estão em um estado cidadão, desta forma, deve ser expelido, não devendo ser tratado como pessoa, mas como um inimigo. [62]

Destarte, de acordo com Jakobs, "(...) Hobbes e Kant conhecem um Direito Penal do Cidadão – contra pessoas que não delinquem de modo persistente por princípio – e um Direito Penal do Inimigo contra quem se desvia por princípio" [63]. Sendo que neste último caso, exclui-se o status de pessoa do agente. Desta forma, Jakobs cita-os como precursores da sua teoria.

O Direito Penal do Inimigo encontra-se na terceira velocidade do Direito Penal, de acordo com o que se denomina processo de expansão do Direito Penal proposto por Jésus Maria Silva Sánchez. [64]

Para Jésus Maria Silva Sànchez, existem três velocidades do Direito penal, isto é, três enfoques diferentes que podem ser concebidos ao Direito Penal. [65]

A primeira velocidade do Direito Penal seria aquela que tem por fim a aplicação da pena privativa de liberdade, mas com a observância dos direitos e garantias fundamentais, já que o que está em jogo é um direito fundamental que é a liberdade do indivíduo. Assim, trata-se do Direito Penal tradicional. [66]

O Direito Penal de segunda velocidade trata-se da supressão de determinadas garantias materiais e processuais em razão à adoção de medidas alternativas à prisão, como por exemplo, o que ocorre aqui no Brasil com os Juizados Especiais Criminais, cujo escopo é a aplicação de pena não privativa de liberdade. Desta forma, por não se tratar de pena privativa de liberdade, e sim, de privação de direitos ou multas, as regras de imputação, os princípios processuais e os princípios políticocriminais clássicos podem sofrer uma flexibilização em proporcionalidade a menor intensidade da sanção. [67]

O Direito Penal do Inimigo está situado na terceira velocidade do direito penal. A presente velocidade é considerada uma combinação da primeira e segunda velocidades, isto é, busca-se a aplicação da pena privativa de liberdade, mas é permitido para esse fim a flexibilização de algumas garantias processuais e materiais. É o que observamos, por exemplo, na Lei de Crimes Hediondos, na Lei do Crime Organizado, e na Lei de Tóxicos [68].

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Sobre a autora
Thayana Calmon Leitão Magalhães

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Geraldo Di Biase. Cursando especialização em Ciências Penais na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Thayana Calmon Leitão. Inimigo e Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2577, 22 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17032. Acesso em: 25 dez. 2024.

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