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Da inconstitucionalidade do art. 11 do Estatuto Jurídico da Igreja Católica do Brasil.

O ensino religioso ecumênico nas escolas públicas como exigência histórica dos princípios do pluralismo e da liberdade de crença

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25/08/2010 às 07:47
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Merece crítica o Decreto nº 7.107/2010 pelo tratamento ao magistério do ensino religioso nas escolas públicas de nível fundamental.

INTRODUÇÃO

No início do corrente ano, o Presidente da República sancionou o Decreto nº 7.107, de 11.2.2010, contendo o acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, a versar sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. A propósito, o referido diploma estabelece, em apertada síntese descritiva, as normas basilares de convivência entre o Estado brasileiro e as instituições vinculadas àquele segmento religioso.

Discorreu-se no tratado em apreço sobre o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica e de suas instituições eclesiásticas, bem como sobre o direito conferido a estas de exercerem suas atribuições regulares, dentro dos limites objetivos fixados pelo ordenamento jurídico pátrio (artigos 1º a 5º, 7º e 14) , sobre a cooperação com o Estado nas áreas de preservação do patrimônio histórico, saúde e educação (artigos 6º, 8º, 9º e 10º) e sobre aspectos pertinentes ao regime tributário e trabalhista do clero e seus auxiliares (artigos 13, 15, 16 e 17).

Mesmo antes da publicação do Decreto nº 7.107/2010, o chamado Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil já vinha sendo objeto de infindáveis críticas, fundadas, em grande medida, na propalada violação ao postulado da laicidade estatal, positivado no art. 19, I, da Constituição Federal, a impor a desvinculação das entidades públicas aos cultos religiosos e na aludida diferença de tratamento conferida àquela crença em relação aos demais segmentos religiosos estabelecidos no País. [01]

Dentre as críticas impingidas ao chamado Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, merecem especial destaque, a nosso ver, aquelas voltadas para o tratamento conferido pelo referido diploma ao magistério do ensino religioso nas escolas públicas de nível fundamental, a ponto de ensejar a elaboração de um estudo específico. A propósito, o tema foi abordado no artigo 11, § 1º da seguinte forma:

"Artigo 11. A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação." (Destacou-se)

Da análise do dispositivo ora transcrito, verifica-se que o chamado Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil vinculou o ensino religioso às doutrinas eclesiásticas professadas pelos distintos segmentos existentes no País, primando, portanto, por um modelo confessional em detrimento da forma ecumênica de magistério daquela disciplina, a primar pelo ensinamento dos conceitos morais que permeiam, de maneira unívoca, a totalidade das religiões. [02]

Diante disso, formula-se a indagação: a forma confessional de ensino religioso propalada pelo chamado Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil estaria em conformidade com as pautas axiológicas emanadas da Constituição Federal, em especial com as diretrizes constantes dos artigos 206, III e 210, caput, da Carta Magna, a pautarem a atividade educacional do Estado pelo reconhecimento em torno do pluralismo de ideias e pelo respeito aos valores culturais da população? [03]

A importância ora conferida ao tema ganha relevo na medida em que os aspectos a envolverem o ensino religioso transcendem a questão da franquia às manifestações de fé no ambiente escolar, abrangendo, para muito além desse tópico, a concretização do princípio constitucional da pluralidade ideológica nos ambientes públicos, a constituir a matriz do postulado do Estado Democrático de Direito e da própria liberdade religiosa.

Dito em outros termos, ao tratar do ensino religioso nas escolas oficiais de nível fundamental, não se está a pensar apenas na questão atinente à liberdade de ministrar aos alunos uma ou outra doutrina religiosa, mas sim no próprio atendimento ao postulado constitucional da pluralidade ideológica, tão caro ao Estado Democrático de Direito, e que ganha importância na espécie justamente por envolver a veiculação de conceitos morais em ambientes vinculados ao Poder Público e por este mantidos.

E assim, diante do indissociável liame existente entre o ensino religioso e o postulado da pluralidade ideológica, o presente artigo propõe-se a investigar, em um primeiro momento, em que sentido o conteúdo histórico-institucional do referido princípio incorporou a liberdade de crença e, posteriormente, se a sua positivação no texto da Constituição Federal de 1988 admite a subsistência de norma a estabelecer um modelo confessional de ensino religioso no ordenamento jurídico, tal como o fez o art. 11, § 1º, do Decreto nº 7.107/2010.


2.O ENSINO RELIGIOSO ECUMÊNICO NA REDE OFICIAL DE ENSINO COMO IMPOSIÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIBERDADE RELIGIOSA E DO PLURALISMO IDEOLÓGICO.

Tal como os demais dispositivos principiológicos do ordenamento jurídico que consagram garantias fundamentais, os direitos ao pluralismo ideológico e à liberdade religiosa reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 configuram instituições cujo conteúdo axiológico foi talhado ao longo do tempo, ou, nas palavras de Bobbio, "caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas." [04]

Não são eles, portanto, preceitos de caráter meramente programático, cujos significados serão atribuídos discricionariamente pelo legislador infraconstitucional ou pelo julgador. Ao contrário, os direitos ao pluralismo ideológico e à liberdade religiosa possuem um rico conteúdo institucional definido historicamente que confere sentido aos artigos 5º, VI, 206, III, 210, caput e § 1º, da Carta Magna e que, analisados à luz dos casos concretos, permitirão ao intérprete definir a medida exata da aplicabilidade prática dos referidos preceitos, contribuindo, portanto, para a evolução conceitual destes últimos, conforme bem assevera Gustavo Zagrebelsky [05]:

"La ciencia del derecho constitucional no puede transformarse en una búsqueda libre que parte de premisas arbitrarias y encuentra resultados igualmente arbitrarios, usando la constitución como pretexto plegable hacia acá o hacia allá, como mejor convenga.

(…)

Las normas constitucionales de principio no son más que la formulación sintética, privada casi de significado desde el punto de vista del mero análisis del lenguaje, de las matrices histórico-ideales del ordenamiento. Por un lado, declaran las raíces y, por otro, indican una dirección. Ofrecen un punto de referencia en el pasado y, al mismo tiempo, orientan el futuro. Los princípios dicen, por un lado, de qué pasado se proviene, en que líneas de continuidad el derecho constitucional actual quiere estar inmerso: por otro, dicen hacia qué futuro está abierta la constitución.

Los principios son, al mismo tiempo, factores de conservación y de innovación, de una innovación que consiste en la realización siempre más completa y adecuada a las circunstancias del presente del germen primigenio que constituye el principio.

(…)

En una constitución basada en principios, la interpretación es el acto que relaciona un pasado constitucional asumido como valor y un futuro que se nos ofrece como problema para resolver en la continuidad.

El futuro (…) se nos aparece entonces a la luz de una precomprensión, a la luz de los principios constitucionales. (…) Y toda precomprensión se transforma inmediatamente en un enriquecimiento de la post-comprensión, alimentando la historia de los principios constitucionales, una historia hecha por una continua referencia <<circular>> a su alcance inicial pero continuamente revitalizada y alimentada a la luz de los casos siempre nuevos e imprevisibles que el tiempo incesantemente aporta.

(…)

Pasado y futuro se ligan en una única línea y, al igual que los valores del pasado orientan la búsqueda del futuro, así también las exigencias del futuro obligan a una continua puntualización del patrimonio constitucional que viene del pasado y por tanto a una incesante redefinición de los principios de la convivencia constitucional." [06]

Pois bem, fixada tal premissa, cumpre formular breve averiguação histórica acerca dos postulados da liberdade religiosa e do pluralismo ideológico, a fim de definir, ao cabo de tal análise, em que medida o conteúdo das referidas instituições jurídicas condiciona o oferecimento do ensino religioso nos estabelecimentos educacionais mantidos pelo Estado. E a primeira constatação a defluir de tal empreitada, atesta, justamente, para o fato de que os dois princípios partilham de uma identidade histórica comum, de modo a impossibilitar a definição de um sem levar em conta o outro.

De fato, a pluralidade ideológica e a liberdade de crença são frutos dos conflitos religiosos vivenciados nos Séculos XVI e XVII na Europa Ocidental, cujo advento criou uma realidade até então inédita, marcada pelo surgimento de novas orientações religiosas após a reforma protestante e cujo desfecho culminou com a ruptura dos vínculos que uniam a Igreja Católica e o Estado e com a neutralidade do Poder Público nos aspectos relacionados à fé de seus cidadãos.

Nesse sentido, à medida que os dogmas católicos passaram a ser contestados pelos partidários da reforma protestante, a partir do Século XVI, a ideia em torno da "unidade de crença" a congregar os súditos em torno da fé professada por seu rei ("cujus regio, ejus religio") foi sendo paulatinamente minada e, diante disso, o Estado viu-se na contingência de assumir novas posturas, sob pena de perda de legitimidade. [07]

No entanto, e como sói ocorrer com a totalidade dos direitos fundamentais dotados de conteúdo histórico-institucional, o alcance de tal resultado deu-se apenas após sucessivas conflagrações protagonizadas pelas forças reformistas, de um lado, e conservadoras, de outro. Somente após a ocorrência das referidas vicissitudes, foi possível evoluir para uma situação de convivência entre as distintas crenças escolhidas pelos cidadãos, sem a imposição de uma delas por parte do Estado, conforme bem destaca Ramón Soriano:

"Groso modo, bien podría señalarse a mi juicio dos etapas en el proceso de la conquista de la libertad religiosa. La primera, que abarca el siglo XVI principalmente, es de la tolerancia religiosa, en la que se trata de que las religiones minoritarias sobrevivan y sean respetadas dentro de un confesionalismo de Estado; Es el ejemplo de los hugonotes en Francia o de los puritanos en Inglaterra. La segunda etapa, más própria del Siglo XVII, es la de una libertad religiosa en la que se pretende un reconocimiento de condiciones de igualdad de las religiones; Es el ejemplo de quienes fundan nuevos Estados en tierras americanas dotándolos de una carta constitucional. La primera etapa está especialmente signada por las guerras de religión; La segunda por la convivencia inestable de distintas religiones en un mismo Estado." [08]

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Em uma primeira etapa, deflagrada logo após a reforma protestante no Século XVI, os soberanos europeus, ainda vinculados à Igreja Católica, passaram a perseguir abertamente os partidários das novas crenças, gerando, com isso, lutas sangrentas cuja subsistência colocou em risco a própria coesão social em torno do Estado. Como resultado de tais conflagrações, os reformistas lograram extrair de monarcas como Carlos V (Alemanha) e Henrique IV (França) a tolerância em relação a suas crenças, por intermédio da formulação de pactos específicos, cujos exemplos mais difundidos são a Paz de Habsburgo (1555) e o Édito de Nantes (1598) [09].

Há de se ressaltar que nessa primeira etapa da consolidação do direito à liberdade de crença, o Estado – corporificado na figura do soberano – permanecia vinculado a uma religião, dela extraindo sua legitimidade axiológica. A nota distintiva em relação à situação de conflito vivenciada imediatamente após a reforma protestante reside na possibilidade de coexistência entre a fé oficial e os cultos reformistas. Tem-se em tais características, portanto, os traços peculiares ao modelo da tolerância religiosa.

A segunda etapa do processo ora descrito, fez-se representada pelo modelo da liberdade religiosa, que ia além da singela tolerância justamente porque desvinculava a autoridade estatal dos dogmas regulares, tornando neutro o Poder Público e assegurando às crenças estabelecidas em sua jurisdição igualdade de tratamento. O primeiro expoente de tal paradigma fez-se representado pelo pastor anglicano Roger Williams, que, ao fundar a colônia de Providence (Rhode Island) em 1636, dotou-a de uma carta de direitos franqueando a coexistência de credos independentemente da chancela oficial. [10]

No entanto, em que pese o pioneirismo de Roger Williams, a liberdade religiosa somente foi reconhecida como um verdadeiro direito, na acepção hodierna do termo, com o advento do constitucionalismo e das garantias fundamentais no final do Século XVIII, frutos jurídicos do pensamento iluminista, cuja matriz encampava, dentre outros aspectos não menos importantes, a utilização da razão humana, em substituição aos dogmas religiosos como instrumento precípuo para a explicação dos fenômenos da natureza.

Há de se ressaltar, contudo, que a própria formulação do pensamento iluminista e das ideias a ocasionarem a ruína do absolutismo e o advento do constitucionalismo moderno somente foi possível em função das vicissitudes que sucederam a reforma protestante. De fato, com o surgimento de novas crenças em contraposição à Igreja Católica e com a conquista da tolerância religiosa, os dogmas até então vigentes passaram a ser questionados e, naturalmente, novas concepções em torno dos fenômenos naturais e sociais encontraram terreno fértil para surgir e prosperar.

Nesse contexto, a propalada origem divina que legitimava o sistema absolutista foi paulatinamente perdendo sentido e o poder dos governantes passou a ter como fundamento o "consenso racional" dos governados em torno da ideia de que o Estado existe para ser o garante dos direitos individuais e pretensamente inatos e de que as prerrogativas conferidas às autoridades oficiais só se justificam conquanto exercidas no desempenho desse mister.

A partir de tal matriz filosófica, os direitos fundamentais titularizados pelos cidadãos foram catalogados, assim também como foram definidos os limites conferidos aos titulares do poder no exercício de tal atribuição, em um documento idealizado como a pedra fundamental do Estado e como o guia supremo das condutas a serem por ele implementadas: a constituição escrita. A importância histórica da reforma protestante para o desfecho ora narrado é sintetizada por Miguel Carbonell da seguinte forma:

"Los derechos fundamentales comienzan a tener interés para el derecho a partir del siglo XVIII, no antes. En los siglos precedentes las prerrogativas de los indivíduos o su posición frente al Estado pudieron tener interes para la moral o la filosofia, pero no para el derecho.

(...)

Em términos generales, el Estado constitucional surge como respuesta a los excesos del Estado absolutista que se consolida en Europa durante el siglo XV y al descontento de su población. (...) En parte, el surgimiento del constitucionalismo moderno se debe al pensamiento de la Ilustración y al cambio de paradigma que dicho pensamiento introduce respecto al papel del Estado y al lugar de las personas dentro de la organización estatal. Por tanto, si se quisiera entender el nacimiento de los derechos fundamentales se tendría que hacer un recorrido sobre tres rutas distintas: El Estado absolutista, el pensamiento de la Ilustración y el constitucionalismo originário como nueva forma de organización del poder.

(...)

El Estado absolutista, como se sabe, es la forma de organización estatal que sigue a la decadencia del Estado feudal. Aunque su cristalización es muy diferente en cada país, podemos decir que se afirma durante el siglo XVI. (...) Hay muchos factores, junto al del cambio en la organización economica, que justifican y explican la superación del Estado absolutista y el surgimiento del Estado moderno. Es obvio que la reforma protestante tuvo un papel importante en el surgimiento de los derechos fundamentales y en el tránsito a la modernidad, ya que permitió comenzar a explicarse la realidad del mundo y de la vida religiosa a partir de una pluralidad de credos, lo que con el paso del tiempo daria lugar al surgimiento de la tolerancia religiosa y del derecho de la libertad religiosa. (...) Desde el comienzo, el constitucionalismo moderno está investido del problema de la tolerancia religiosa, que con el tiempo se convertirá en el de libertad religiosa; y la libertad religiosa es la madre de todas las libertades. Después, en nombre de la propiedad liberada de los vínculos medievales, se descubrirá que el mercado debe ser tutelado por las intervenciones del Estado absoluto mercantilista y se protegerán los partidos políticos como canales de expresión de los distintos grupos sociales.

(...)

¿Qué es lo original del constitucionalismo por oposición a la forma de organización social y política que había prevalecido durante buena parte de la Edad Média? El constitucionalismo como filosofia política aspira en lo fundamental a uma sola cosa: controlar el poder con el fin de preservar la libertad (...). Para ello, es necesario que cada Estado se dote de una regulación básica de carácter unitário: La Constitución escrita. (...) Por otro lado, las Constituciones escritas sirven para cambiar el fundamento de la legitimidad de lo estatal, o mejor dicho, de las autoridades que ejercen funciones públicas. Si el derecho del feudalismo se apoyaba en buena medida em la tradición, en los desígnios divinos o en la ascendencia real, el constitucionalismo aspira a basar la legitimidad de la actuación de las autoridades (...) en el consenso racional de los membros de la comunidad." [11]

Assim, os eventos iniciados a partir da reforma protestante que conduziram à formulação das noções de tolerância e liberdade religiosa possibilitaram, em um primeiro momento, a criação de alternativas dogmáticas aos ditames católicos voltados para a explicação dos fenômenos mundanos e, em uma etapa mais avançada, a formulação de um novo paradigma ideológico, de cariz pretensamente racional (a filosofia iluminista), cujo teor acabou por descredenciar a origem divina como elemento legitimador do Estado, substituindo-a pelo conceito até então inédito dos direitos individuais e da não menos inovadora figura da constituição escrita. [12]

Nesse contexto de desvinculação entre o Estado e a Igreja, de fomento ao pensamento racional e de reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos, não cabia mais às autoridades oficiais promover a doutrinação de seus cidadãos com base em uma ou outra filosofia e de cercear o livre fluxo de ideias no bojo da sociedade por imposição de dogmas religiosos.

Com a adoção de tal postura advinda de imperativos históricos, o Estado passou a assumir uma posição de neutralidade em relação às convicções filosóficas e religiosas de seus cidadãos, cabendo-lhe, a partir de então, zelar pelo convívio pacífico entre as diferentes correntes de pensamento, mantendo-se, dessa forma, a ordem pública. Surgiram, então, como decorrência evolutiva do direito à liberdade religiosa previamente conquistado, as garantias concernentes à liberdade de consciência e à pluralidade ideológica, conforme assevera Pablo Nuevo López:

"Reconocida la libertad ideologica y los derechos individuales, la aparición de uma pluralidad de formas de entender la vida es simplesmente cuestión de tiempo. Esta libertad ideológica tiene una especial transcendencia, pues de la misma deriva el principio de la neutralidad del poder público, con la consiguiente ´renuncia radical por el Estado a toda acción de adoctrinamiento político, filosófico y moral, y la imposibilidad para el ordenamiento, en relación con ello, de cualquier valoración positiva o negativa, de las plurales expresiones ideológicas de la comunidad.

En virtude de esta neutralidad ideológica del Estado (…) los poderes públicos ´deben abstenerse de participar de cualquier debate sobre ideas y creencias políticas, morales, filosóficas, estéticas, etc.´ El Estado pasa a ser, entonces, un instrumento de mediación y de síntesis de las expresiones ideológicas de las diversas formaciones sociales presentes en la sociedad, pues cada una de ellas concurre a la esfera pública con su propria personalidad." [13]

E, efetivamente, as primeiras constituições modernas surgidas no final do Século XVIII asseguraram expressamente em seus textos a liberdade religiosa com o nítido intuito de afastar o Estado da apologia a crenças e orientações filosóficas, de modo a promover, com isto, a igualdade entre as mais diversas correntes de pensamento e, consequentemente, a própria pluralidade ideológica no espaço público, conforme bem destaca Thomas Cooley em comentário ao tratamento do tema nas cartas das unidades federativas que integram os Estados Unidos da América:

"Aquele que examinar com cuidado as constituições americanas verá que não há nada expresso de modo mais claro do que o desejo de seus elaboradores de preservar e perpetuar a liberdade religiosa, e de protegê-la em face da aproximação do Estado em direção à desigualdade de direitos civis ou políticos baseada nas diferenças de crenças religiosas. Eles (os elaboradores) não poderiam ter falhado em perceber, para além disso, que a união entre a Igreja e o Estado era, senão impraticável na América, certamente contrária ao espírito de nossas instituições, e que qualquer forma de prevalência de um segmento sobre os demais teria o condão de represar as energias da população e necessariamente tenderia a promover o descontentamento e a desordem.

(…)

Além disso, tais constituições não estabeleceram apenas a tolerância religiosa., mas sim a igualdade religiosa; e nesse particular avançaram não apenas em relação à pátria mãe [Inglaterra], mas também em relação à grande parcela da legislação colonial, que, embora mais liberais se comparadas às dos demais países civilizados, permaneciam repletas de conteúdos baseados na discriminação entre crenças religiosas.

(…)

Aquilo que se afigura ilegal perante as constituições americanas pode ser sintetizado da seguinte forma:

1.Qualquer lei referente ao estabelecimento de uma religião oficial. Os legisladores ordinários não têm a prerrogativa de estabelecer a união entre a Igreja e o Estado, ou de estabelecer preferências legais entre em favor de um ou outro segmento religioso ou forma de adoração.

(…)

2.O apoio compulsório mediante taxação ou, de outro modo, pelo estabelecimento de instrução religiosa. Não apenas nenhuma denominação será favorecida às custas das demais, como também toda adesão à orientação doutrinária de cariz religioso deverá ser totalmente voluntária.

3.Atendimento compulsório a formas de adoração religiosa. Qualquer cidadão que, por sua própria escolha, não se vincula às ordenações de uma determinada religião, não o será pelo Estado. O Estado procurará, da melhor maneira possível, reforçar as obrigações e os deveres que os cidadãos devem ter com seus similares, enquanto cidadãos, mas aqueles deveres que eles possuem para com seu Criador devem ser reforçados tão-somente por suas próprias consciências, e não sob as penas da lei humana." [14]

Vê-se, portanto, que o princípio da liberdade religiosa concebido no contexto das modernas democracias constitucionais, ao ter como um de seus principais consectários a desvinculação entre a Igreja e o Estado, vislumbrou as instituições oficiais como espaços filosoficamente neutros, onde impera, necessariamente, a convivência entre as mais diversas crenças e visões de mundo em situação de isonomia.

E nessa coexistência igualitária de orientações no seio dos ambientes públicos é que reside, justamente, o traço fundamental do direito à pluralidade ideológica e à própria liberdade de consciência. Desse modo, nos espaços em que vierem a ter lugar as relações entre os cidadãos e o Estado, não poderá este último, ao exercer suas atividades oficiais, induzir aqueles primeiros à aceitação de uma ou outra visão de mundo, seja através da imposição expressa ou por meio da sugestão velada.

A incidência de tal concepção firmada no transcurso da história será ainda mais forte na rede oficial de ensino fundamental, onde estudantes em fase de formação da consciência terão contato com conteúdos disciplinares elaborados e ministrados por agentes públicos em ambientes mantidos pelo Estado. Nesse contexto, caberá às autoridades zelar não só pela neutralidade religiosa do espaço escolar, como também proporcionar todas as condições para o livre desenvolvimento da personalidade dos alunos enquanto cidadãos de um Estado Democrático de Direito.

Do contrário, a vinculação exclusiva dos conteúdos curriculares a uma ou outra orientação filosófica ou religiosa criará consideráveis obstáculos à habilidade de questionamento dos estudantes e à capacidade de discernimento em torno das diferentes visões de mundo existentes, gerando, com isto, empecilhos para a consolidação de uma sociedade marcada pela pluralidade ideológica e pela liberdade de consciência.

Justamente por tal razão, os conteúdos inerentes aos postulados da liberdade de consciência e do pluralismo ideológico ora discorridos vêm sendo sucessivamente reafirmados em situações concretas nas quais as atividades educacionais exercidas sob os auspícios do Estado, encontravam-se, de algum modo, impregnadas de conteúdos religiosos pertinentes a uma determinada crença.

Assim, no contexto norte-americano, tem-se como o exemplo mais conhecido dessa sorte de situações o caso "Engel v. Vitale", apreciado pela Suprema Corte em 1962, cuja discussão gravitava em torno da possibilidade ou não do Comitê de Docentes (Board of Regents) do Estado de Nova York determinar aos alunos a realização de uma breve prece cristã no início de cada dia letivo. [15]

Ao apreciar o caso em apreço, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu que as leis a conferirem respaldo à determinação emanada do Comitê de Docentes do Estado de Nova York naquele sentido iam de encontro à Primeira e à Décima Quarta Emendas da Constituição norte-americana, na medida em que a prolação da referida prece nas salas de aula da rede oficial de ensino não só configurava demonstração pública de vinculação entre o Estado e um determinado segmento religioso, como também tinha o condão de coagir os alunos não cristãos à partilha da orientação espiritual ali professada. Tais aspectos foram ressaltados expressamente na opinião condutora proferida à ocasião pelo Juiz Hugo Lafayette Black:

"Pensamos que ao valer-se do sistema público de ensino para encorajar a recitação da oração proferida pelos regentes, o Estado de Nova York adotou prática totalmente inconsistente com o teor da Primeira Emenda [Establishment Clause]. Não há qualquer dúvida de que o programa de invocação diária de bênçãos divinas prescrito pelo corpo de regentes do Estado de Nova York consiste em uma atividade religiosa. É ele uma invocação solene da fé divina, bem assim uma suplicação pelas bênçãos do Todo Poderoso. A natureza de tal prece sempre foi religiosa, e nenhum dos recorridos negou isto.

(...)

Os requerentes asseveram, entre outras coisas, que as leis estaduais que requerem ou permitem o uso da oração dos regentes devem ser derrubadas, conquanto violam a Primeira Emenda [Estabilishment Clause], uma vez que tal prece foi formulada por agentes públicos como parte de um programa governamental voltado para o reforço de crenças religiosas. Por tal razão, argúem os recorrentes que o uso da referida oração pelo Estado rompe com o muro constitucional de separação entre a Igreja e o Estado. Concordamos com tal assertiva, pois, uma vez que a constituição proíbe expressamente a edição de leis voltadas para o estabelecimento de uma religião oficial, neste País os assuntos de governo não compreendem a composição de preces oficiais para qualquer grupo da população americana a ser recitada como parte de um programa religioso auspiciado pelo governo.

(...)

Não há dúvidas, portanto, que o programa de preces diárias do Estado de Nova York estabelece oficialmente as crenças religiosas contidas na oração dos regentes. (...) Nem o fato de que a prece seria neutra no que concerne à denominação e tampouco o fato de que sua observância por parte dos alunos é voluntária a torna livre dos limites da Primeira Emenda, tanto no que concerne à cláusula que veda o estabelecimento de uma religião oficial [Establishment Clause], quanto no que tange à disposição a estabelecer o livre exercício de crenças [Free Exercise Clause], ambas a vincularem os Estados em função da décima quarta emenda. Muito embora as referidas cláusulas se sobreponham em certas circunstâncias, proíbem elas dois diferentes tipos de coerção estatal sobre a liberdade religiosa. A cláusula do estabelecimento [Establishment Clause] (...) não depende de qualquer demonstração em torno da compulsão concreta exercida pelo Estado e é violada pela singela edição de leis que estabelecem uma religião oficial. (...) Quando o poder, o prestígio e o apoio financeiro do governo é utilizado em suporte a uma determinada crença religiosa, a pressão coercitiva indireta sobre as minorias religiosas em vistas a conformá-las à religião pré-aprovada é evidente." [16]

No mesmo sentido da orientação lavrada em "Engel v. Vitale", a Suprema Corte norte-americana, ao apreciar um ano depois o caso "Abington School District v. Schempp", reconheceu que a legislação do Estado da Pensilvânia a determinar a leitura de trechos da Bíblia Sagrada por parte dos alunos no início dos dias letivos ia de encontro à Primeira Emenda, pois tal imposição configurava, em última instância, apologia de orientação religiosa por parte do Poder Público. [17]

Mais recentemente, na década de 1990, o Tribunal Constitucional Federal Alemão apreciou o famoso "caso do crucifixo" (BVerfGE 93, 1), em que se discutia a constitucionalidade de dispositivo do "Regulamento para a Escola Fundamental do Estado da Baviera" a impor a colocação de cruzes com a clássica imagem de Jesus Cristo nas salas de aula dos estabelecimentos de ensino mantidos pela referida unidade federativa.

Quando do julgamento da Reclamação Constitucional em apreço, o Primeiro Senado do Tribunal Constitucional Federal Alemão firmou o entendimento de que a norma impugnada era, de fato, contrária ao dispositivo da constituição teutônica a estabelecer a liberdade de crença (Art. 4, I, GG), porquanto a colocação de crucifixos em espaços mantidos pelo Poder Público por imposição de lei denotava vinculação entre o Estado e uma determinada crença religiosa.

Cumpre destacar que, para além de tal constatação, a decisão lavrada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão em BVerfGE 93, 1 ateve-se expressamente à assertiva de que a colocação daquele símbolo religioso em sala de aula teria o condão de influir diretamente na formação da consciência dos alunos e, principalmente, no desenvolvimento de suas personalidades, em prejuízo ao postulado da pluralidade ideológica, conforme atestam os trechos pertinentes constantes do acórdão:

"O Art. 4 I GG protege a liberdade de crença. A decisão por ter ou não uma crença é, assim, assunto do indivíduo, e não do Estado. O Estado não pode nem lhe prescrever nem lhe proibir uma crença ou uma religião. (...) Essa liberdade refere-se, do mesmo modo, aos símbolos por meio dos quais uma crença ou uma religião se apresenta. O Art. 4 I GG, deixa a critério do indivíduo decidir quais símbolos religiosos serão por ele reconhecidos e adorados e quais serão rejeitados. Em verdade, não tem ele direito, em uma sociedade que dá espaço a diferentes conviccções religiosas, a ser poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos religiosos que lhe são estranhos. Deve-se diferenciar disso, porém, uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de uma determinada crença, aos atos nos quais esta se manifesta, e aos símbolos por meio dos quais ela se apresenta. Por essa razão, o Art. 4 I GG revela sua eficácia assecuratória de liberdade justamente em áreas da vida não deixadas à auto-organização social, mas que são tomadas, por precaução, pelo Estado.

(...)

O Art 4 I GG não se limita, porém, a impedir que o Estado se imiscua nas convicções, atos e manifestações religiosas do indivíduo ou de comunidades religiosas. Ele lhe impõe, antes, também o dever de lhes garantir uma gama de atividades, na qual a personalidade pode se desenvolver em seu âmbito ideológico e religioso, e de lhes proteger contra ataques ou obstáculos perpetrados por seguidores de outras orientações religiosas ou de grupos religiosos concorrentes. O Art. 4 I GG não fornece ao indivíduo e às comunidades religiosas, entretanto, uma pretensão ao auxílio estatal para a expressão de sua convicção religiosa. Pelo contrário, do Art 4 I GG decorre o princípio da neutralidade estatal no que concerne às diferentes religiões e confissões. O Estado no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele mesmo se mantém neutro nas questões religiosas.

(...)

Aliada à obrigação escolar geral, as cruzes nas salas de aula fazem com que os estudantes, durante as aulas, em razão da vontade do Estado, [sempre] se deparem com este símbolo, sem que tenham a possibilidade de evitar a confrontação com um símbolo [de religião da qual não são adeptos], sendo obrigados destarte a estudar [por assim dizer] ´sob a cruz´. Por isso, a colocação de cruzes nas salas de aula é diferente da confrontação freqüente no dia a dia com símbolos religiosos das mais variadas orientações religiosas. De um lado, esse tipo de confrontação não é provocado pelo Estado, mas conseqüência da propagação de diferentes convicções e comunidades religiosas na sociedade.

(...)

Ainda que seja correto dizer que a colocação de uma cruz na sala de aula não implica em coação à identificação ou a determinados testemunhos e de modos de comportamento, tampouco tem como conseqüência que a aula das disciplinas laicas seja marcada pela cruz ou que seja orientada aos seus postulados religiosos, simbólicos ou exigências comportamentais. (...) A educação escolar não serve apenas ao aprendizado de técnicas racionais fundamentais ou ao desenvolvimento de capacidades cognitivas. Ela deve fazer também com que os potenciais emocionais e afetivos dos alunos sejam desenvolvidos. A atividade escolar tem, assim, como escopo de promover de maneira abrangente o desenvolvimento de suas personalidades, principalmente influenciando também seu comportamento social. É nesse contexto que a cruz em sala de aula ganha seu significado. Ela tem caráter apelativo e identifica os conteúdos religiosos por ela simbolizados como exemplares e dignos de serem seguidos. Não bastasse, isso ocorre, além do mais, em face de pessoas que, em razão de sua juventude, ainda não puderam consolidar suas formas de ver o mundo, que ainda deverão aprender e desenvolver a capacidade crítica e a formação de pontos de vista próprios, e que, por isso, são muito facilmente sujeitas à influência mental." [18]

Do esboço histórico ora formulado a respeito dos princípios da liberdade religiosa e do pluralismo ideológico, vê se que o conteúdo histórico-institucional das referidas garantias revela, dentre outros elementos integradores, o intuito de promover a coexistência das mais diferentes crenças e concepções filosóficas nos espaços em que se dão as relações entabuladas entre o Estado e os cidadãos, aí incluídos, por evidente, os estabelecimentos da rede oficial de ensino.

E diante de tal constatação, outra não pode ser a conclusão senão a de que o único modelo de ensino religioso compatível com o conteúdo histórico-institucional dos postulados da liberdade religiosa e do pluralismo ideológico - e, portanto, passível de adoção no âmbito dos estabelecimentos públicos de ensino fundamental - é o ecumênico, pautado pela divulgação genérica das orientações morais pertinentes às diversas crenças difundidas na sociedade e, principalmente, pelo imperativo de se conferir aos alunos a possibilidade de optarem, segundo sua própria consciência, por uma delas ou por nenhuma.

Em que pese, todavia, a veracidade do que foi exposto até então, há de se verificar se as diretrizes regentes do ordenamento jurídico brasileiro compartem daquele mesmo conteúdo histórico-institucional resultante das vicissitudes que plasmaram os princípios da liberdade religiosa e da pluralidade ideológica no plano global. É o que se pretende no tópico subsequente.

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Sobre o autor
Paulo Roberto Lemgruber Ebert

Advogado. Doutorando em Direito do Trabalho e da Seguridade Social na Universidade de São Paulo-USP. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EBERT, Paulo Roberto Lemgruber. Da inconstitucionalidade do art. 11 do Estatuto Jurídico da Igreja Católica do Brasil. : O ensino religioso ecumênico nas escolas públicas como exigência histórica dos princípios do pluralismo e da liberdade de crença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2611, 25 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17251. Acesso em: 28 abr. 2024.

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