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Dignidade da pessoa humana: uma prerrogativa de todos

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INTRODUÇÃO

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possuiu suas bases no pensamento clássico [01] e no ideário cristão [02]. No pensamento cristão se assenta que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, digno, portanto. Sua Dignidade se associa ao fato da criação divina. No pensamento clássico, por outro lado, mostra-se presente a noção de "natureza individual racional" [03]. Uma racionalidade que se faz potencial e por isto presente até nas hipóteses em que a pessoa passe por privações de sentido.

Independente do referencial de que se parta, resta pacificado que a Dignidade da Pessoa Humana é o elemento fundante da vida. Racionalidade e autonomia estão na base da estrutura humana. Por ser assim, sabendo-se que o Ser Humano é digno e autônomo, a este deve ser conferida a prerrogativa de Ser e Estar no mundo sem sofrer qualquer discriminação. A realidade jus filosófica deve se estruturar para que o Ser Humano se realize em sua plenitude.

Definir Dignidade da Pessoa Humana é complexo. É certo que se pode contar com numerosas reflexões sobre o tema. Não há meios, contudo, para se aferir um conceito definitivo sobre o assunto. Algumas noções, entretanto, são convergentes: a) a felicidade [04] é o fim do Ser Humano; b) o direito surge do homem e para o homem; e, c) a Dignidade está fora do contexto do que pode mensurar na esfera econômica, sendo parcela essencial dos Direitos da Personalidade. Desta forma a Dignidade deve, por estar no núcleo destes direitos, ser preservada no que alude fundamentalmente: integridade física e psíquica.


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA PRERROGATIVA DE TODOS

Dignidade, etimologicamente, vem do latim digna, anunciando o que é merecedor, digno, considerável etc. Significaria, também, cargo ou honraria. É adjetivo derivado da forma verbal decet, de decere, convir [05].

Desenvolvendo a noção que a perspectiva etimológica nos apresenta, temos que Dignidade é pressuposto da idéia de justiça, porque dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento, independentemente de qualquer merecimento pessoal ou social. É inerente à vida. Disto podemos dizer, com clareza, que a Dignidade é direito que precede ao Estado, no exato sentir da lição de Carmem Lúcia Antunes Rocha:

"O sistema normativo de direito não constitui, pois, por óbvio, a Dignidade da Pessoa Humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê-la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A Dignidade é mais um dado jurídico que uma construção acabada no direito, porque firma e se afirma no sentimento de justiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades" [06]. (destacou-se)

Toda Pessoa Humana é digna, porque a Dignidade é pressuposto de sua condição. É a Dignidade, portanto, quem qualifica a pessoa, colocando-a em uma categoria acima de qualquer indagação. Informa, por esta razão, que, mesmo nos casos de peculiaridades pessoais, como os estados de privação, não se poderá falar em exclusão. A partir do regime que a Dignidade orienta, nenhuma pessoa pode ser preterida pelo sistema posto, pois o sectarismo é incompatível consigo.

Falamos, todos, em Dignidade. Este preceito é fundamental, sem qualquer dúvida. Mas em que consiste efetivamente? Qual o sentido e a função da expressão? Qual seu alcance? Que significa dizer que é fundamento da República Federativa brasileira?

Aos questionamentos apresentados, parece-nos producente se trazer à colação a lição do professor Ingo Sarlet, onde lemos que a Dignidade é:

"a qualidade intrínseca e distintiva de cada Ser Humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos." [07](destacou-se)

O destaque feito na definição do professor Sarlet se mostra importante. Com este se retoma o conceito liberal dos primórdios do Constitucionalismo Moderno e sua consideração do indivíduo, apontando para cada Ser Humano. Neste ponto é de se dizer que cada Ser Humano deve ser considerado pelo ordenamento jurídico, sem qualquer possibilidade de exclusão. Dignidade da Pessoa Humana, então, ainda guarda a significância dos primórdios: garantia do indivíduo contra o arbítrio estatal. A um só tempo aponta para respeito. Anuncia que é dever do Estado, e também da comunidade, dispensar a cada Ser Humano igual respeito e consideração, o que impediria atos de natureza degradante e desumana.

Como se percebe, é a Dignidade da Pessoa Humana a qualidade intrínseca e distintiva do Ser Humano, precedendo ao Estado. Nada obstante, uma vez considerada a existência deste, não há dúvidas de que sua função é realizar o complexo de atos que assegurem seu regime. A Dignidade é, então, um modo de poder-dever pelo qual todos são chamados a participar da grande aldeia comunitária. Todos têm prerrogativas contra o Estado e seus cidadãos. Ao mesmo tempo todos possuem deveres em relação aos cidadãos e à organização política estatuída.

A definição do professor Sarlet, anteriormente transcrita, traz elementos essenciais para que se possa considerar o que é Dignidade. Tais elementos são importantes porque fundamentam a tese de que é esta o ponto de partida dos Direitos Humanos. É importante, inclusive, porque permite se concluir que a Dignidade da Pessoa Humana está no núcleo dos Direitos da Personalidade, tornando tais direitos, na parcela nuclear, intransmissíveis, indisponíveis e absolutos.

A suposição trazida à colação é importante. A idéia de respeito permite uma releitura do tripé estrutural da Revolução Francesa. Desta forma, ao se falar em "fraternidade com respeito" se mostra clara a noção de solidariedade. Tolerância assume lugar importante. O respeito aduz a que cada indivíduo seja capaz de ver a perspectiva do outro. Não mais apenas uma prerrogativa de se situar contra o Estado, mas, também, e isto merece destaque, ser respeitado pelos próprios pares. Nisto o direito se faz agregador. Ver a perspectiva do outro, que não implica em se ser o outro, nos impõe a necessidade de respeitar os pontos de vista que são diferentes dos nossos. Impele-nos a entender as aspirações que sejam diferentes das que possuímos.

Ser fraterno, à luz da Dignidade da Pessoa Humana, não se reduz a tratar de forma respeitosa os que nos são iguais. Também, e, principalmente, aponta para a necessidade de respeito do diferente. Neste ponto, é de se ter que a solidariedade é um princípio essencial. É fundamental por estar marcado pelos valores que advêm do regime da Dignidade Humana.

Já se apontou que não se mostra trabalho simples reduzir o alcance do significado da expressão Dignidade da Pessoa Humana a elementos de morfologia e sintaxe. É de se ressaltar, todavia, as referências de maior relevância sobre o preceito.

Por Dignidade da Pessoa Humana pode se entender o substrato ético que consubstancia os valores básicos reconhecidos por uma sociedade. Trata-se da essência do Ser Humano, porque é do cerne da constituição da humanidade autonomia e racionalidade, que marcam o regime em comento. Não se faz necessário, por isto, que o princípio seja levado às minúcias. Através deste se elege o vetor que se quer priorizar, tornando-se possível uma discussão ética do direito, no direito e para o direito. Torna-se possível se entender e compreender suas razões e objetivos.

Da discussão aludida, uma questão se faz remanescente. Por mais que não se possa sedimentar um conceito absoluto sobre a Dignidade da Pessoa Humana, desponta um questionamento que remonta o pensamento clássico grego, presente na lição de Aristóteles: "a felicidade é o fim do homem" [08].

Sendo a felicidade o objetivo crucial do Ser Humano, e reconhecendo-se que este é digno, não há como se ignorar a idéia de autonomia. Partindo-se da noção de felicidade e de autonomia, resta pacificado que é da esfera da pessoa decidir os rumos que dará à sua vida para ser feliz. Tendo isto assente, não há como se pensar um direito que não se volte para o homem. Não há como se reconhecer um direito que não tenha sua base na Pessoa Humana.

A Dignidade está fora do contexto do que se afere no aspecto financeiro. Esta suposição se faz clara, principalmente na lição de Kant. Desta consideração tem-se que "é dever do Estado" [09] realizar, como missão positiva, políticas que vão ao encontro da realização da felicidade. Não basta enunciar [10] direito e dizer que a constituição é cidadã. É preciso se criar mecanismos para que esta cidadania seja realizada.

Como missão negativa tem-se que o Estado não pode criar mecanismos que objetem à realização do "Eu no Mundo", como parece estar ocorrendo com o Projeto de Lei 6.655-B de 2006. Dizemos isto porque do regime da Dignidade Humana decorre autonomia, ponto de partida para as pessoas realizarem a felicidade. Esta autonomia, reconhecida no plano Constitucional, é negada neste projeto, que taxa o (re)designado [11] em seu registro de nascimento com a alcunha transexual. No plano constitucional existe homem e mulher, mas no projeto, já aprovado na referida comissão, há uma terceira espécie. Com este haverá, então, homem, mulher e transexual.

Esta terceira figura, conquanto fuja ao padrão percebido por Laquer e ao consagrado no corpo constitucional, foi aprovada no controle prévio de constitucionalidade realizado na estrutura legislativa. Neste ponto é de se laurear a possibilidade do judicial review prevista em nosso ordenamento. Fosse na França [12], conquanto a mácula de inconstitucionalidade possa ser aventada, a situação não seria passível de revisão judicial.

A referência encontrada no Projeto de Lei aludido vai de encontro à nossa construção doutrinária e jurisprudencial. Esta assertiva tem por base a consideração que uma parcela essencial da Dignidade restará mitigada. Sendo a Dignidade da Pessoa Humana o postulado que encerra a prerrogativa de todos [13] os humanos de serem respeitados como pessoas, não parece producente se criar um terceiro gênero, que é constrangedor, evidentemente.

Como se percebe, ao menos no plano dogmático, resta claro que a Dignidade da Pessoa Humana importa em respeito a todos. Um respeito que impediria prejuízo à existência das pessoas, tal como a objetificação ocorrida com os escravos [14].

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O regime vivenciado no plano constitucional aponta nesta direção. Todos são iguais perante a lei e assim devem ser respeitados. É de se considerar, contudo, que nem sempre foi assim. É importante, por isto mesmo, se buscar a referência histórica da locução.

Todos são iguais perante a lei, no plano constitucional, porque todos são dignos. Sabendo que todos são dignos, não se pode deixar de considerar a importância da construção a partir da qual se sedimenta a locução Dignidade da Pessoa Humana. Uma expressão que começou a ser desenhada na antiguidade, desenvolveu-se na Idade Média com a perspectiva do cristianismo e foi pluralizada na contemporaneidade, sobretudo em razão das Revoluções Burguesas, como se verá no item seguinte.


DIGNIDADE NA ANTIGUIDADE

Na antiguidade, segundo Frei Secondi [15], a Dignidade da Pessoa Humana era nominada hypostasis, significando o que está na base e apontando para o que é fundamental. Com esta se considerava tão-somente o que essencial.

A idéia de fundamento e base de sustentação, vista na antiguidade, é exatamente o que chega até nós com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Este Diploma – em seu artigo 1º, III – reconhece à Dignidade da Pessoa Humana a condição de princípio fundamental, situado, por isto mesmo, no vértice do ordenamento jurídico. Em decorrência disto, resta evidente que qualquer subsunção ou integração a ser feita no "sistema jurídico" [16] deve ter em consideração a sua perspectiva.

A hypostasis, percebida por Secondi como essência de base, chegou até nós como Dignidade da Pessoa Humana. Para a consolidação deste conceito, todavia, foram importantes as contribuições de muitos doutrinadores, merecendo destaque a proposição de Boécio [17], para quem Dignidade é a rationalis naturae individua substantia: substância individual de natureza racional.

As lições de Boécio ressoam nas obras de quase todos os autores que se detêm sobre o tema [18]. É de se destacar, todavia, que esta referência se faz própria no mundo judaico-cristão [19], marcado pela individualidade. Em culturas tribais e animistas, todavia, a idéia perde força e a racionalidade individual dá lugar a um sistema que se volta à coletividade.

Embora o Ser Humano seja um ser complexo, a noção percebida por Boécio se mostra producente e encerra de modo sintético o que se tem de mais coeso sobre Dignidade para a referência ocidental. A racionalidade individual se apresenta, neste seguimento, como o traço distintivo da pessoa. É de sua essência e de sua natureza. É o diferencial, também detectado por Comparato [20], que distingue o Ser Humano e justifica os Direitos Humanos e os Direitos da Personalidade.

A referência ocidental de pessoa, ao menos no plano das idéias, se mostra clara nos dias de hoje. Pessoa é todo Ser Humano, aos quais se deve reconhecer a possibilidade de se autodeterminar, exercendo os direitos de que são titulares. Não basta, contudo, a possibilidade de autodeterminação. Sendo o homem "Ser Social", suas determinações precisam ser encampadas pela ordem jurídico-social, salvo quando o exercício das deliberações vir a contrariar esta ordem de modo objetivo.

A idéia sobre autodeterminação [21], associada ao conjunto de direitos que demandam uma atuação positiva do Estado, aponta para um só fato. Ser "Ser Humano" é ser Pessoa Humana, devendo a atuação estatal primar pelo reconhecimento das questões pertinentes aos Direitos da Personalidade, sobretudo quanto à parcela destes que é indisponível; onde estão situados os valores correlatos à Dignidade da Pessoa Humana.

A correlação entre "Direitos da Personalidade" e "Dignidade da Pessoa Humana", na quadra de direitos vivenciada, se mostra clara. Assim, até mesmo as características dos Direitos da Personalidade, historicamente sedimentadas, precisam ser lidas à luz da Dignidade Humana, especialmente no que diz respeito à transmissibilidade e disponibilidade. É de se considerar que há Direitos da Personalidade que podem ter o "exercício disposto" (no sentido defendido por Oliveira Ascensão [22]), caso da intimidade. Desta forma, pode o titular autorizar a veiculação de imagens suas, mas isto não implica em renúncia ao Direito de Intimidade. Significa, tão-somente, que o exercício do direito foi disposto.

A correlação aludida é importante. Importante também é entender a referibilidade da locução Dignidade da Pessoa Humana, que, em uma leitura apressada, parece concatenar uma repetição desnecessária e redundante. É preciso, desta forma, se entender a expressão Pessoa Humana.


POR QUE PESSOA HUMANA?

Entender a expressão Pessoa Humana é importante, sobretudo quando se pensa em Direitos da Personalidade, afinal, é a partir da perspectiva da personalidade que se concebe historicamente a pessoa. Pessoa, no ponto de vista que coincide com a aspiração do Direito Positivo, é o Ser Humano a quem a ordem jurídica reconhece personalidade.

A locução Pessoa Humana é daquelas que alude à redundância. É de se ter, contudo, que esta redundância é aparente. Uma referibilidade anafórica que se justifica quando se pensa na expressão do ponto de vista histórico, onde podemos perceber períodos em que personalidade era atributo reconhecível [23] pelo ordenamento jurídico, e não um atributo inerente à condição humana.

Dignidade é expressão que tem na igualdade [24] – formal em um primeiro momento, e, atualmente também material – sua correlação direta e necessária. Esta correlação se mostra importante porque, em alguns momentos, nem todos os humanos eram considerados sujeitos de direitos. Alguns indivíduos eram tomados por objetos, não sendo Pessoas Humanas. Não eram pessoas, na perspectiva do direito, porque não lhes era reconhecida personalidade jurídica e, assim, aptidão para aquisição de direitos e deveres, confundindo-se com objetos ou coisas.

Coisificação ou objetificação, em si consideradas, caracterizam um fenômeno onde o indivíduo recebia tratamento de coisa-objeto. Este tratamento não mais é possível na quadra de direitos vivenciada, mas foi uma realidade histórica marcante. No caso brasileiro, para se precisar, tivemos a situação de escravidão, legalmente instituída até 13 de maio de 1888 [25].

Nos dias de hoje, quando se pensa em Dignidade da Pessoa Humana, resta claro que esta é uma decorrência de se ser "Ser Humano". Esta correlação, que atualmente se faz lógica, é uma verdade histórica do momento vivenciado. Nem sempre foi assim, como se viu. Exatamente por isto pareceu pertinente se trazer para o corpo do texto este esclarecimento.

A pluralização da Dignidade da Pessoa Humana como inerente ao Ser Humano e o tratamento legislativo do tema se mostram positivos. É de se ter que desde a antiguidade já se fazia referência ao assunto. É de se ter, também, que, conquanto as referências sejam antigas, a realidade sempre foi de negação dos sucedâneos deste preceito.

Desde a antiguidade clássica a idéia acerca da Dignidade da Pessoa Humana já se encontrava presente. Por isto se trouxe à colação a noção de hypostasis. Tendo-se isto em mente, resta clara a negação de preceitos que decorrem do regime da Dignidade. Entre nós, ainda mais, vide as referências, mantidas até a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como filhos espúrios e ilegítimos. Mais grave ainda se mostra a situação da escravidão, formalmente abolida, mas materialmente vivenciada em alguns pontos do país.

Falar em Dignidade da Pessoa Humana é muito salutar. Não basta, contudo, se ter um discurso bonito e acabado sobre o tema se se pode detectar no plano social e jurídico-legislativo medidas que a contrariam. Negar a condição de Dignidade de forma a priori não se faz possível, já que todos são iguais perante a lei. Há casos, ainda assim, em que a igualdade é negada. Não no plano tributário, uma vez que o dinheiro não cheira. O non olet, com o qual se legitimou a cobrança de tributo pela utilização de banheiros públicos na realidade romana, se faz presente. Por isto mesmo o homossexual contribui para a previdência como o heterossexual e, na hora de deixar dependentes, encontra mais dificuldades. O senhor de 80 anos pode deixar como beneficiária sua companheira de 20 anos, ainda que o casamento tenha durado meses. Se se tratar de uma união homo-afetiva, contudo, mesmo que tenha durado 30 ou 40 anos, as dificuldades se farão presentes.

Na perspectiva tributária a igualdade se faz clara com a contribuição previdenciária, mas isto não se consubstancia no aspecto retributivo do instituto. Como se assinalou, todos são iguais no momento de contribuírem, mas, por ocasião da retributividade, desigualdades de tratamento são detectadas. Além disto, há diferenças na questão da cidadania ao se considerar a superação do clássico conceito eleitoral do instituto: votar e ser votado. Desta forma o transexual, cidadão na perspectiva eleitoral, tem sua intimidade mitigada, como se percebe no Projeto de Lei [26] destinado a cuidar do tema. Cidadão é quem recebe do Estado a base de endereçamento de direitos e garantias fundamentais, sem qualquer exceção. Ao transexual, como se evidencia, nega-se parte desta base.

É certo que houve mudanças no plano social e jurídico que vão de encontro da possibilidade de negação dos correlatos da Dignidade. Estas mudanças precisam ser compreendidas, inclusive do ponto de vista da negação do retrocesso [27], para não se mitigar conquistas que são próprias da humanidade. Para não se negar direitos que são da condição humana, sem qualquer exceção.

A negação do retrocesso, que deve marcar as conquistas da Dignidade da Pessoa Humana, é modo de se conferir eficácia jurídica à norma, no sentido de se limitar a criação de regras que venham a negar direitos consolidados. Aliás, conquanto a doutrina fale em sua maioria da negação na perspectiva legislativa, parece-nos que as conquistas sedimentadas no plano judicial também devem ser respeitadas pelo legislador, porque o aspecto democrático, vivenciado quando da elaboração das leis, não pode ser manto a encobrir arbitrariedades. É preciso se ter clara a noção – já defendida pelo Abade Sieyés em seu Qu’est-ce que le Tiers État? – de que o direito é também, e isto merece ser destacado, um remédio contra majoritário [28].

Em matéria de transexualidade o direito tem evoluído no sentido de maior agregação. Assim a mudança de nome tem sido deferida. De igual modo tem sido deferida a mudança civil de sexo.

A mudança no plano judiciário se reflete na perspectiva legislativa. Infelizmente – em razão da multiplicidade congressista, marcada por grupos que se esquecem da laicização [29] do Estado e se baseiam em dogmas, sobretudo religiosos – temos visto um movimento no sentido de se retroceder. Um movimento que, efetivado, importará na criação de um terceiro gênero.

Ver o direito nas suas múltiplas facetas é importante. O trabalho de interpretação é fundamental para se efetivar e se sistematizar de forma vetorial a Dignidade Humana. Esta compreensão é importante para que, em nome do direito, não se segregue e exclua, como, aliás, já se fez.

Segregar em nome do direito não é novidade. Nesta medida, cabe se colacionar o exemplo do estado nazista, paradoxalmente amparado pelo positivismo de Kelsen. Este teórico, em nome de uma metodologia que dava ao direito a condição de fim em si próprio, pugnou pela legitimidade do 3° Reich. Não que o nazismo o aproveitasse. Pelo contrário. Kelsen era judeu e nada tinha a ganhar com o regime. Nada obstante, por suposto de unidade, coerência e completude de sua teoria se viu compelido a discursar em nome da validade do regime, baseado na estruturação orgânica e fechada em si na tese do ordenamento jurídico.

Hoje resta claro que o direito não é fim em si próprio. Na verdade, o fim do direito é a Pessoa Humana. É o fim deste e o antecede. Este deve se aparelhar, por isto mesmo, para permitir que a pessoa se realize na sua plenitude. É preciso se reconhecer as prerrogativas decorrentes da Dignidade, mas, sobretudo, permitir a realização destes sucedâneos. Do contrário, ter-se-á um Estado vazio em seus propósitos. Um Estado que prevê e admite possibilidades, mas que nada faz para a realização das mesmas.

Guardadas as devidas proporções, qualquer entendimento do direito que esqueça sua condição de realização do Ser Humano (que o direito surge do homem e para o homem) brindará com valores nazistas. A afirmação, que parece forte, é feita por se considerar que a Dignidade da Pessoa Humana, positivada ou não, deve ser a ótica para se ver o direito. Do contrário, segregar-se-á e se criará tercium genius em nome de um estado de segurança, o que parece ocorrer na experiência legislativa brasileira – em sede projetos [30], diga-se – com relação à transexualidade. Em nome de uma segurança social haverá pessoas relegadas a um plano distante do estado de Dignidade.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Dignidade da pessoa humana: uma prerrogativa de todos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2642, 25 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17485. Acesso em: 7 nov. 2024.

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