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Prontuário médico e ordem judicial: em defesa da intimidade

30/09/2010 às 16:58
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Se a ordem judicial não vier acompanhada da autorização ou consentimento do paciente, deverá ser avaliado se há justa causa para o fornecimento do prontuário, não bastando pedidos genéricos.

1. Prontuário médico – conceito

A Resolução n.º 1.638/2002, do Conselho Federal de Medicina, define o prontuário médico como o documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo.

Em outros termos, é o conjunto de documentos relativos ao tratamento do paciente em determinada instituição. Surgem deste conceito importantes considerações.

A primeira é que, ao estabelecer que o prontuário médico possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao paciente, têm-se delimitada a finalidade primordial deste documento. Dele extrai-se toda a história pregressa de um paciente em relação ao tratamento realizado naquela instituição de saúde.

A segunda, é que o prontuário médico tem outra finalidade que não a de registro das informações clínicas do paciente. Ele tem a relevante função de dupla proteção, que diz respeito tanto ao médico quanto ao paciente.

A terceira é a de proteção da esfera íntima do paciente. O direito à intimidade tem plena aplicação no que se refere ao prontuário médico. Entendemos que se a esfera íntima do paciente é resguardada inclusive de seus familiares, visto que podem existir situações e informações que o mesmo não deseja que se tornem públicas a ninguém. Vale dizer, essa proteção da intimidade deve permanecer mesmo após o falecimento, afinal, os direitos da personalidade não se transmitem [01].

O Código Internacional de Ética Médica da Associação Médica Mundial, nessa direção, determina que o médico deve "respeitar os direitos dos pacientes, dos colegas, e de outros profissionais da saúde, e protegerá as confidências dos pacientes" e "manter absoluta confidencialidade de todo seu conhecimento sobre o paciente, mesmo após a morte do paciente". [02]


2. Da preservação da intimidade como garantia constitucional

A partir da conceituação acima, não há dúvidas de que os dados constantes no prontuário médico do paciente integram a sua intimidade.

E se assim o é, a Constituição Federal de 1988 assegura, em seu art. 5.º, inciso X, o seguinte:

Art. 5º

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O Código Civil, na mesma esteira:

Art. 21.

A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

A primeira abordagem a fazer é entender tratar-se de um dispositivo representativo de uma regra ou de um princípio, ou ainda uma combinação de ambos. Isso porque, se entendermos como princípio, o direito, neste caso, seria instável, sujeito a uma negação por outro direito ou bem jurídico concretamente superior (ponderação). Se tratarmos como regra, dado o caráter taxativo que a caracteriza, haveria um impedimento total de intervenção do Estado na esfera de intimidade ou vida privada do indivíduo.

Parece-me, contudo que o melhor é entendermos o direito fundamental a intimidade e a vida privada como regra e princípio, dando-lhe um caráter duplo. Neste sentido, José Adércio Leite Sampaio esclarece que:

"O disposto no inciso X do art. 5.º da Constituição Federal pode-se apresentar como regra e princípio, se formular no texto de sua regra uma cláusula de exceção. Assim:

"Estão proibidas as intervenções do Estado na esfera da intimidade e da vida privada das pessoas, se não forem previstas em lei ou se não forem necessárias ao cumprimento dos princípios opostos que, devido às circunstâncias do caso concreto, tenham precedência frente ao princípio da inviolabilidade da intimidade e vida privada." [03]

Com isso, desprezamos a leitura apressada do dispositivo, que nos conduziria a uma interpretação (equivocada, diga-se) do tipo "tudo ou nada", vale dizer, são invioláveis a intimidade e a vida privada e ponto, não se permitindo qualquer intervenção do Estado nesta seara. Como visto, não é essa a natureza do dispositivo.

Até porque a autorização da pessoa para o fornecimento de cópia do prontuário médico "retira o caráter ilícito da obtenção ou divulgação de informação da vida privada. Isso equivale a dizer que a revelação voluntária, sendo forma de exercício do controle informacional, significa a "perda da privacidade". [04] Logo, por só essa razão, o dispositivo se revela não absoluto, como todo e qualquer direito fundamental, respeitado, por óbvio, o referencial da dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Certo é que uma ordem judicial, acompanhada da autorização/consentimento do paciente, deve ser atendida sem maiores indagações. Trago à colação uma ordem judicial expedida pela Juíza do Trabalho, Dra. Ana Maria das Graças Veloso, da 7.ª Vara do Trabalho de Curitiba-PR, que, pelo exemplo, merece ser utilizada como paradigma:

"(...)

Determino a expedição de ofício ao Posto de saúde UMS Salvador Alende do bairro Sítio Cercado, na Rua Celeste Tortato Gabardo, telefone 3289-4828 e para o Hospital de Clínicas na Rua General Carneiro, nº 181, Alto da Glória, Médico Antônio Baldin Junior, setor de proctologia geral, para que encaminhe a este Juízo os prontuários de atendimento do reclamante no período anterior a abril de 2008 até o momento, com a concordância do mesmo."

Não é demasiado lembrar que a garantia constitucional da preservação da intimidade constitui-se, pela sua importância, em cláusula pétrea, a teor do art. 60. § 4.º, da CF/88 (Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais).


3.Conceito de intimidade - Ordem judicial para fornecimento de prontuário médico – inexistência de autorização do paciente ou esclarecimento de alguma causa justa – impossibilidade de cumprimento

Diante do que até aqui foi exposto, resta-nos ainda, e para o que interessa ao presente, buscar saber se o pedido judicial de fornecimento do prontuário médico de um determinado paciente e por este não autorizado (intervenção do Estado-Juiz, portanto) está previsto em lei ou é necessário ao cumprimento dos princípios opostos que, devido às circunstâncias do caso concreto, tenham precedência frente ao princípio da inviolabilidade da intimidade e vida privada. É também tema do que a doutrina denominou de "Teoria geral dos limites dos direitos fundamentais", dada à relatividade e limitação dos direitos fundamentais.

A resposta passa por uma conceituação, ainda que breve, da intimidade, conquanto saibamos que tal conceito está longe de uma uniformidade. Certo é que o homem tem um direito de controlar as informações sobre ele mesmo, decidindo quando, como, em que extensão e para que finalidade tais informações serão conhecidas pelos outros.

"A intimidade, em tal amplitude, pode ser então conceituada como um controle sobre quem nos pode ver, ouvir, tocar e cheirar, em suma, sobre quem nos pode sentir. Em menos detalhe, porém salientando a necessidade do caráter "privado", "particular" ou "pessoal" da informação, encontramos respostas na definição de intimidade de Gross, como controle sobre o conhecimento dos assuntos pessoais". [05]

Mas até que ponto pode o homem, sponte propria, controlar essas informações, impedindo sua divulgação? É aqui que entra em cena as limitações aos direitos fundamentais, que se operam por várias formas, a saber:

a) diretamente, quando a Constituição expressamente prevê;

b) indiretamente, através de leis por autorização expressa da Constituição;

c) por exigência de interpretação, para solução de casos concretos, em que não existam as situações anteriores (os chamados "limites imanentes"). [06]

Parece-me que os casos de fornecimento de prontuário médico mediante ordem judicial possa se encaixar na alínea b, acima citada.

De fato, a Constituição Federal, diretamente, não previu qualquer hipótese de restrição da intimidade, no tocante a divulgação do prontuário médico de alguém. Poderia ter feito como fez, por exemplo, para a casa do indivíduo (art. 5.º, XI), permitindo o ingresso, sem o consentimento do morador, em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; ou no direito de reunião em locais abertos ao público, desde que sem armas e que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local (art. 5.º, XVI); ou ainda, na liberdade de associação, restringindo-a no caso de associação para fins ilícitos e vedando-a a de caráter paramilitar (art. 5.º, XVII).

O que temos, indiretamente, em legislação infraconstitucional, é justamente o contrário: a impossibilidade de divulgação de dados constantes no prontuário médico, sem a autorização do paciente, ainda que, em certos casos, por ordem judicial.

Isso porque, a intervenção jurisdicional restringindo direitos fundamentais deve "conter-se no âmbito de uma autorização legislativa, que, em sua aplicação dependa, como sempre o fará, de um juízo de ponderação prévio à sua concretização". [07]

Vale lembrar que "fatos essencialmente sensíveis, como o estado de saúde, defeitos físicos, tratamento médico ou submissão à intervenção cirúrgica, recuperação de um estado mórbido... devem ter justificativa particularmente séria, objetiva e relevante ao interesse público para serem investigados ou revelados". [08]

Ora, como dito acima, o nosso ordenamento pátrio não só não permite a revelação do sigilo profissional, aqui leia-se sigilo médico, como tipifica como crime de violação do segredo profissional a revelação, sem justa causa, de segredos, de que se tem ciência em razão do mister que se desempenha, senão vejamos a redação do art. 154, do Código Penal Brasileiro:

Violação do segredo profissional

Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

No âmbito do processo penal, encontramos, igualmente, proibições de revelações de segredos profissionais. Neste sentido são as regras insculpidas nos arts. 207, do CPP e 355, do CPP Militar, a saber:

Art. 207.

São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Art. 355. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Já no âmbito do processo civil, a testemunha ou a parte não são obrigadas a depor sobre fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo, exceto nos casos de ações de filiação, dissolução ou anulação do casamento. Igualmente, e no que nos interessa mais especificamente, podem escusar-se de exibir, em juízo, documento ou coisa, se a exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo. Vejamos a redação dos arts. 406, 414, § 2.º, 347, parágrafo único e 363, todos do CPC:

Art. 406.

A testemunha não é obrigada a depor de fatos:

(...)

II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.

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Art. 414...

§ 2º A testemunha pode requerer ao juiz que a escuse de depor, alegando os motivos de que trata o art. 406; ouvidas as partes, o juiz decidirá de plano.

Art. 347. A parte não é obrigada a depor de fatos:

(...)

II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.

Parágrafo único. Esta disposição não se aplica às ações de filiação, de desquite e de anulação de casamento.

Art. 363. A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa:

(...)

IV - se a exibição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo;

Para os profissionais médicos temos o novel Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009) que estabelece o seguinte:

É vedado ao médico:

Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.

Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

(...)

Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.

§ 1º Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.

§ 2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.

A justa causa, de que trata o art. 154, do CPB, "requer um exame casuístico, para sua constatação, não havendo como definir, a priori, que casos incidirão ou não na franquia, não se podendo, contudo, exigir do médico, mesmo a julgar a sua ocorrência, a revelação dos fatos, se a lei não o obrigar, tampouco a sua consciência. A mesma regra vale para hipótese de haver autorização por parte de seu cliente; nada obstante, deve-se ter em conta que o sigilo visa sobranceiramente proteger o paciente e não o médico propriamente [09]:

"Administrativo. Mandado de segurança. Quebra do sigilo profissional. Exibição judicial de ficha clínica a pedido da própria paciente. Possibilidade, uma vez que o art. 102 do Código de Ética Médica, em sua parte final, ressalva a autorização. O sigilo é mais para proteger o paciente do que o próprio médico". [10]

O Ministro Luiz Gallotti, do STF, por seu turno, quando do julgamento do HC 39.308, proferiu o seguinte voto: "No choque entre os dois interesses sociais – o que liga ao resguardo e o correspondente à repressão do crime, a lei dá prevalência ao primeiro", sendo que "os motivos previstos em lei são a justa causa, a que se refere o Código Penal, para permitir excepcionalmente a quebra do sigilo" (como, por exemplo, a notificação compulsória em caso de moléstia contagiosa – art. 269, do CPB).

Chegamos, assim, à questão central. Poderá o profissional médico ou a instituição que detenha a guarda dos prontuários médicos recusarem o fornecimento de cópia do prontuário médico nos casos de requisições judiciais desacompanhadas de autorização/consentimento do paciente ou de uma justa causa, como no caso presente?

Parece-me que a resposta é positiva. Isso porque "Não basta a ordem judicial per se, fazendo-se necessária a indispensabilidade da medida, diante da inexistência de outro meio menos gravoso a substituí-la ou mesmo do pedido do paciente, para defesa de direito seu. O hospital, a clínica ou o profissional médico, se a entenderem desnecessária, deverão recorrer a instrumentos processuais aptos a corrigir o possível excesso judicial, como acertadamente vem decidindo nossos tribunais". [11]

O precedente a que se refere o douto Procurador da República é o RE 91.218/SP, de relatoria do Ministro do Supremo Tribunal Federal Djaci Falcão, in verbis:

"Segredo profissional. A obrigatoriedade do sigilo profissional do médico não tem caráter absoluto. A matéria, pela sua delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das particularidades de cada caso.

A revelação do segredo médico em caso de investigação de possível abortamento criminoso faz-se necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente. Na espécie o hospital pôs a ficha clínica à disposição de perito médico, que "não estará preso ao segredo profissional, devendo, entretanto, guardar sigilo pericial" (art. 87 do Código de Ética Médica). Por que se exigir a requisição da ficha clínica? Nas circunstâncias do caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o segredo profissional. Outrossim, a concessão do writ, anulando o ato da autoridade coatora, não impede o prosseguimento regular da apuração da responsabilidade criminal de quem se achar em culpa.

Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência jurisprudencial, e provido. Decisão tomada por maioria de votos.

(...)

Diante do exposto, concluo que à vista das circunstâncias antes registradas, a requisição judicial em causa é ilegal, por afetar o respeito devido ao sigilo profissional." [12] (destaquei)

Acrescentamos a este precedente o seguinte:

"Segredo profissional. Constitui constrangimento ilegal a exigência da revelação do sigilo e participação de anotações constantes das clínicas e hospitais. Habeas corpus concedido." [13]

Neste mesmo julgado, o Ministro Cândido Motta Filho consignou em brilhante voto que:

"Para mim, data vênia dos que pensam em contrário, o Juiz não pode obrigar o Superintendente do Hospital a fornecer, como diz o ofício "informações precisas sobre o tratamento, diagnóstico, remédio e tudo o mais que constasse da ficha médica, elaborada com referência à pessoa indiciada".

Não se trata, como se vê, de algumas informações, mas de informações completas, precisas, que envolvem tratamento, remédio e tudo o mais que se refira à pessoa indiciada.

(...)

... porque o fichário, que contém a descrição completa do doente, de todos os dados que formam a descrição de seu físico, até aqueles que compõem sua pessoa em seu comportamento, é absolutamente secreta. É, em regra, intocável.

(...)

Não é de hoje que o tema provoca discussões. Não é de hoje que se fala em doutrina do contrato, da doutrina do interesse ou da vontade. Por muito tempo, ele foi colocado entre o individualismo de caso de consciência e o anti-individualismo do interesse comum. Só a experiência dos tempos é que pode encaminhá-lo para uma solução jurídica, após a apreciação de casos que provocaram verdadeiros escândalos.

A solução partiu do princípio de que o segredo profissional, notadamente o segredo médico, é a regra. E é uma regra de tais conseqüências que, sua violação, constitui crime. A lei protege o segredo, em nome de direitos patrimoniais e em nome de direitos pessoais.

(...)

Isto quer dizer que a lei reconhece o interesse público nessa tutela. Como ensina FLORIAN, "o dever de segredo deriva não da vontade do que o confia, a outrem, mas da condição profissional, em virtude da qual ele é confiado e na natureza dos deveres que, no interesse geral, são impostos aos profissionais" (Tratatto, pg. 456).

(...)

Essa é a extensão do segredo, que vai do doente até à sociedade, que singulariza o privilégio de uma classe em nome, ao mesmo tempo, do interesse social e da dignidade humana."

E, quando a ordem é ilegal, o mesmo STF tem solução, a saber: "Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito". [14]

Ademais, mesmo pelo novel Código de Ética Médica, a disponibilização do prontuário médico, mediante ordem judicial, não se dá de maneira qualquer (enviando-o pelo correio, por exemplo). A regra estatuída no § 1.º, do art. 89, esclarece que quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz. Caso o médico não observe essa regra, poderá sofrer penalizações junto ao Conselho Regional de Medicina respectivo, pois os preceitos do Código de Ética Médica elaborado pelo Conselho Federal de Medicina são de observância obrigatória pelos médicos (Lei Federal n.º 3.268/57).

Agir assim é agir com discrição, com o senso de responsabilidade profissional que deve permear toda e qualquer atividade, especialmente a médica. Quantos segredos, quantas doenças só reveladas ao médico, quantas informações que poderiam destruir lares, honra, nome, prestígio e que lá estão, repousando no prontuário médico de um paciente?


4.Conclusões

Diante de todo o exposto, para o cumprimento de ordens judiciais para fornecimento de cópias de prontuários médicos sugerimos aos médicos e hospitais observarem o seguinte, evitando, com isso, a responsabilização médica:

a) se a ordem judicial vier acompanhada da autorização/consentimento do paciente, não há qualquer impedimento legal ou ético no seu fornecimento;

b) se a ordem judicial não vier acompanhada da autorização/consentimento, deverá ser avaliado se há justa causa para o fornecimento do prontuário, não bastando pedidos genéricos; ainda nestes casos, o prontuário médico somente poderá ser entregue ao perito nomeado pelo juiz, a teor do que dispõe o Código de Ética Médica.


Notas

  1. Art. 11, do CCB: Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
  2. <http://www.eticus.com/documentacao.php?tema=2&doc=33>
  3. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 213.
  4. Ibidem. p. 369.
  5. Ibidem. p. 369.
  6. Ibidem. p. 380-381.
  7. Ibidem. p. 384.
  8. Ibidem. p. 390-391.
  9. Corrobora este entendimento a posição do E. STJ, in verbis: "O sigilo é mais para proteger o paciente do que o próprio médico" (RMS 5821/SP, DJ 07.10.96, Rel. Min. Adhemar Maciel).
  10. Ibidem. p. 414-415.
  11. Ibidem. p. 415.
  12. STF. 2.ª Turma. RE 91218/SP. Relator: Min. DJACI FALCAO. DJ 16-04-1982.
  13. STF. Tribunal Pleno. HC 39308. Relator: Min. PEDRO CHAVES. DJ 06-12-1962.
  14. STF. 2.ª Turma. HC 73454-5/RJ. Relator Ministro MAURÍCIO CORREA. Julg.: 22/04/1996.
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Sobre o autor
Miguel Adolfo Kalabaide

Procurador do Município de Curitiba, Advogado, Ex-Juiz Leigo do Juizado Especial de Piraquara-PR, Professor de Direito Constitucional, Bacharel em Direito (UFPR), Pós-graduado em Direito Processual Civil (PUC-PR), Pós-graduado em Direito Constitucional (FEMPAR/UNIBRASIL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KALABAIDE, Miguel Adolfo. Prontuário médico e ordem judicial: em defesa da intimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2647, 30 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17516. Acesso em: 18 nov. 2024.

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