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A (in)constitucionalidade da proibição do porte de drogas para consumo próprio

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17/10/2010 às 17:11
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A conduta de portar drogas para consumo pessoal é atípica, por falta de norma válida que a incrimine, e mais que isso, pela proibição constitucional a tal incriminação.

1. INTRODUÇÃO

Uma das grandes mazelas enfrentadas pela sociedade moderna é o tráfico ilícito de entorpecentes. Não bastasse o problema da difusão de substâncias psicoativas, gravitam em torno do tráfico outros delitos, como a lavagem de dinheiro e o porte ilegal de armas.

Uma discussão importante, reaquecida pelo lançamento do sucesso cinematográfico Tropa de Elite, é que o tráfico existe por conta do usuário. Segundo alguns, caso seja possível esvaziar o mercado consumidor das drogas, inevitavelmente, a atividade de traficância de entorpecentes seria extinta.

Por outro lado, muitos advogam que o tráfico e seus problemas correlatos são conseqüência lógica da criminalização das condutas relativas aos estupefacientes. Caso o cidadão pudesse utilizar tais substâncias dentro da legalidade, não haveria necessidade de recorrer ao mercado ilegal.

Ainda se argumenta que a repressão contra o consumo afasta os usuários - em especial, os dependentes - do Estado, dificultando seu tratamento e políticas sérias de redução de danos. Mas além de todos os argumentos de natureza social, moral, de segurança pública surge a necessidade de se investigar a possibilidade jurídica da criminalização, à luz da Constituição, da conduta de portar drogas para consumo próprio, encontrada na chamada "Nova Lei de Drogas"

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2º  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3º  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5º  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6º  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7º  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

O presente artigo tem a missão principal de investigar a constitucionalidade da proibição desta conduta. Não temos dúvida, que a análise exaustiva da lei, por meio de processos hermenêuticos, é trabalho fundamental do operador do direito, para revelar o sentido legal e aplicá-lo ao caso concreto.

Ocorre que não temos dúvida também, que o direito não pode se limitar a mera subsunção de fato à norma de maneira acrítica, sobretudo quando se trata de Direito Penal, caracterizado por proibir condutas sob pena de graves reduções de direitos individuais dos condenados.

Apesar disso, nos parece que a doutrina penal, ao se debruçar sobre a legislação de drogas no Brasil, muitas vezes se descuida de realizar análise de constitucionalidade dos preceitos nela contidos, notadamente em relação à proibição do porte de drogas para consumo próprio.

É nesse vácuo que pretendemos inserir este artigo. Estudar minuciosamente os fundamentos da proibição, na doutrina e jurisprudência, e assim, investigar a possibilidade constitucional desta incriminação.

Nota-se que o constituinte originário, quando tratou o Direito Penal, teve zelo em cuidar de limitar as formas de pena (art. 5º, XLVII da CRFB), as formas de criminalização de condutas (art. 5º, XXXIX da CRFB), mas não foi explícito no que diz respeito aos limites materiais para criminalização primária.

Tal situação, temos certeza, não sugere que o legislador possui "cheque em branco" para criminalizar condutas de forma aleatória ou arbitrária.

Nesse sentido, estudiosos do Direito Penal Brasileiro afirmam copiosamente que o legislador deve respeitar limites constitucionais ao criar leis incriminadoras. Devem respeito à dignidade da pessoa humana e devem sancionar somente atos que ponham em risco bem jurídico socialmente relevante. Retórica primorosa.

Após fixar a premissa de que o legislador infraconstitucional encontra limites ao criar tipos penais, inúmeros exemplos são criados para ilustrar o exposto. E diga-se, a doutrina penal é pródiga em criar tipos hipotéticos para provar que tal limitação existe. "Sorrir em momentos de felicidade – Pena: detenção, de 1 a 3 anos", "Utilizar gravatas amarelas – reclusão, de 6 a 20 anos", "Espirrar em público – reclusão, de 1 a 4 anos, e multa".

Não é preciso ler nenhum manual de Direito Penal para saber que não é possível incriminar tais condutas. A ciência do direito não pode se limitar a negar possibilidade de criação de tipos penais estapafúrdios, mas deve se posicionar justamente quando esses tipos se localizam em terreno limítrofe, entre a possibilidade constitucional de criminalização, com fito de defender bens jurídicos preciosos e o excesso inconstitucional, que viola direitos fundamentais.

Acreditamos que a situação da nova lei de drogas, quando regula o porte para consumo próprio, situa-se nessa zona nebulosa, pelo menos, primo ictu oculi. Teria havido excesso do legislador? O usuário tem direito a decidir o que deve fazer em relação ao seu próprio corpo? O simples porte de entorpecentes tem o condão de por em risco a saúde pública e assim, a criminalização é legítima? Finalmente, é constitucional o artigo 28 da lei 11.343/2006?


2.DIREITO PENAL

2.1 CONCEITO DE DIREITO PENAL

A primeira premissa necessária para o estudo do porte de entorpecentes para consumo próprio será conhecer os fundamentos do Direito Penal. Estes servirão de sustentação para se conhecer a natureza da norma, seu alcance, bem como sua compatibilidade com os princípios específicos deste ramo do direito.

Conforme lição de Mirabete [01], o direito possui função básica de ordenar a coexistência pacífica dos membros da sociedade. Condutas que vulneram interesse alheio, sendo, portanto, indesejadas, serão consideradas contrárias ao direito e por isso, merecerão sanção estatal, ainda que de natureza extrapenal.

Esclarece o mestre [02] em suas lições, que eventualmente, condutas humanas serão altamente lesivas ao convívio social, por vulnerarem preciosos bens jurídicos. Neste caso, diante da insuficiência da sanção de natureza civil para coibi-las, o Estado irá se valer de seu modo mais severo de repressão, a sanção penal. [03]

Assim, podemos concluir que o direito é verdadeiro balizador e limitador de condutas dos indivíduos que vivem em sociedade. Tal limitação, conforme vimos, está intimamente atrelada à finalidade de assegurar a vida em comum. [04]

Dentro deste contexto, irá surgir o chamado Direito Penal, assim conceituado por Heleno Cláudio Fragoso [05] como "o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de característica sanção penal."

Os estudiosos de direito penal, como regra, não costumam trazer conceitos muito díspares sobre este ramo jurídico, normalmente destacando um sistema de normas proibitivas e a vinculação de seu descumprimento a pena ou medida de segurança. Alguns autores, como Eduardo Magalhães Noronha [06], preferem acentuar o aspecto regulatório do poder punitivo estatal, enquanto Maggiore [07] prefere acentuar a perda ou diminuição de direitos pessoais por parte daqueles que cometem os delitos definidos por este ramo do direito.

Não obstante certa uniformidade na doutrina ao conceituar o Direito Penal, Eugênio Raul Zaffaroni [08] vai além do lugar comum, afirmando que o Direito Penal, além do conjunto normativo, é o sistema interpretativo destas disposições.

Nessa linha de raciocínio, esclarece Cesar Roberto Bitencourt [09], que tal interpretação resgata o papel do intérprete da norma, que deverá, num sistema jurídico moderno, ir muito além do mero texto das leis, para valorá-lo de acordo com princípios de justiça.

Ao já complexo conceito de Direito Penal até aqui exposto, deve-se acrescer a preciosa observação de Alberto Silva Franco [10], que explica que o Direito Penal é a forma de controle social, prévia e rigidamente definida em lei, para que se respeite o direito de liberdade do cidadão.

Assim, podemos definir o Direito Penal como o ramo do direito que relaciona condutas indesejadas com medidas de diminuição de direito dos indivíduos que as pratiquem, denominadas penas, por meio de leis anteriores à pratica delituosa, que devem ser interpretadas e aplicadas com justiça por seus operadores.

Definido um conceito de Direito Penal é importante desvendar sua missão dentro de um ordenamento jurídico, vale dizer, quais fins se pretende atingir através deste sistema.

A doutrina mais tradicional, quase em uníssono, afirma que a função do Direito Penal é tutelar bens jurídicos [11]. Vejamos o entendimento de Fragoso [12]

A função básica do Direito Penal é a defesa social. Ela se realiza através da chamada tutela jurídica: mecanismo com o qual se ameaça com uma sanção jurídica (no caso, a pena criminal) a transgressão de um preceito, formulado para evitar o dano ou perigo a um valor social (bem jurídico).

Sendo, portanto, a razão da existência do direito penal a proteção de bens jurídicos, cumpre ao estudioso do direito delimitar com exatidão o que seria este instituto. Assim o define Bitencourt [13], afirmando que "[...] bem jurídico pode ser definido como todo o valor da vida humana protegido pelo Direito", e, como ponto de partida da estrutura do delito é o tipo de injusto, representa a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido."

Nota-se na doutrina de Bitencourt um nítido caráter valorativo do conceito de bem jurídico, tendo em vista que este é um determinado valor que reside no cotidiano social, merecedor do status de protegido pelo direito, por vontade do legislador.

Corroborando o pensamento, esclarece Luiz Régis Prado [14], que a atividade valorativa para definição dos bens jurídicos é iniciada pelo Poder Constituinte Originário, que irá determinar quais valores irão estar contidos naquele pacto social.

Em momento posterior, o legislador infraconstitucional irá criminalizar condutas indesejadas, de acordo com o texto constitucional, havendo nele limitações intransponíveis para a edição de leis penais [15].

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Não se pode, contudo, pensar no Direito Penal como um sistema exaustivo de proteção a todos os bens jurídicos sociais, a ser criado pelo legislador, conforme veremos de maneira mais detida ao tratar dos princípios deste ramo do direito, notadamente o princípio da fragmentariedade e da intervenção mínima.

Os bens jurídicos, previamente selecionados como contrários ao direito, receberão um tratamento penal na medida em que se revelarem mais importantes para convivência social.

Mas não somente na criação de tipos penais os bens jurídicos terão função primordial. Na atividade interpretativa também deve haver especial atenção a este instituto [16].

Isto porque o operador do direito deve ter em mente que o direito penal é finalista, isto é, está ligado a desiderato específico – a proteção de bens jurídicos.

Assim, as leis penais devem ser interpretadas de forma a cumprir esse mister sem extrapolá-lo – em respeito à proibição do excesso - ou ficar aquém desta proteção – em respeito à vedação da proteção deficiente.

Ainda sobre a função do direito penal, Mirabete [17] afirma que, além de sua primordial função de proteção de bens jurídicos, o direito tem função de viés ético, que seria evitar que fossem realizados ataques aos valores mais profundos da sociedade.

2.3 CONCEITO DE CRIME

Conceituar tal figura jurídica nos leva a analisar o fenômeno em diferentes aspectos. Neste estudo, há necessidade de formação do conceito distinguindo seus aspectos formal e material.

Quando se estuda o instituto "crime" em seu aspecto formal, chega-se a conclusão de que este é um fato hipotético previsto pelo legislador, como ilícito penal. Assim, para que se cometa um crime, do ponto de vista formal, é preciso tão somente que alguém pratique conduta que se amolde a preceitos legais (normal penal incriminadora).

Conforme ensina Mirabete [18], este aspecto evidencia somente o crime enquanto contradição entre uma conduta humana e uma norma penal que a proíbe. Alerta ainda que tal forma de análise não consegue penetrar na "matéria" do delito.

No mesmo sentido, vejamos os dizeres de Fernando Capez [19]

Aspecto formal:

o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o seu conteúdo. Considerar a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade humana. (grifo presente no original)

Por outro lado, o crime, quando estudado de acordo com seu viés material, se relaciona intimamente com a função protetiva de bens jurídicos, conforme já demonstrado. Dessa forma, o crime será aquele ato que vulnera tais bens jurídicos, consagrados pela proteção penal, fazendo surgir a necessidade de reprimenda, por meio de pena.

Em síntese, Eduardo Magalhães Noronha [20] afirma que "crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei"

Pelo exposto, temos uma fundamental distinção a ser feita, que elucidará muitos dos questionamentos realizados no presente trabalho. Crime, do ponto de vista formal, é somente aquilo que a lei determina como tal. Porém, ainda é preciso que seja satisfeito outro ângulo para que possamos falar, substancialmente, em crime. Será necessário que o ato, em contradição com norma penal incriminadora, constitua "lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico-penal, de caráter individual ou difuso". [21]

Luiz Flávio Gomes [22], no mesmo sentido, funde os aspectos material e formal, para oferecer seu interessante conceito para o que seria "crime"

Crime, em suma, é a realização do fato descrito na lei e a conseqüente lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido. Conjugando-se essa clássica conceituação com o fundamental e prioritário princípio da intervenção mínima [...] temos a seguinte síntese: crime só pode ser a ofensa desvaliosa (lesão ou perigo concreto de lesão intolerável) a um bem jurídico relevante (digno de proteção, merecedor de proteção) protegido pela lei penal.

No complexo conceito trazido pelo autor, ressaltamos que para que haja crime, deve haver um bem jurídico relevante justificando esta proteção. Tal bem jurídico deve ter sofrido ataque intolerável por meio de conduta proibida em lei.

Entender o delito, por seu aspecto material, nos oferece segurança para afirmar que ainda que o legislador edite lei incriminando determinada conduta, tal previsão legal será somente o primeiro – ainda que importante - passo para que se caracterize um crime.

Por meio desta conclusão - que será reafirmada inúmeras vezes durante esta monografia – conclui-se que o trabalho do juiz, quando diante de determinada controvérsia penal, não está limitado à realização de operação de lógica formal, tendo como premissa maior a lei penal incriminadora e como premissa menor, a conduta praticada pelo réu.

É preciso verificar a presença dos pressupostos descritos para existência do crime, em seu aspecto material, tanto nos fatos trazidos ao seu conhecimento quanto no tipo previsto em abstrato pelo legislador.

Partimos, pois, da premissa que o legislador, ao criar leis penais incriminadoras, não possui liberdade arbitrária, devendo obediência aos conceitos aqui expostos. Nesse sentido, leciona Luiz Flávio Gomes [23]

Quem conta com esse poder de criminalizar condutas, portanto, sob o ponto de vista puramente descritivo, sempre teve (também) liberdade para delinear à sua maneira as decisões político-criminais. Mas todo esse panorama formalista ou positivista legalista está passando por profundas alterações. A evolução do Direito Penal e o reconhecimento dos direitos fundamentais como eixo do moderno Estado Constitucional e Democrático de Direito impõe restrições (formais e substanciais) a esse poder de criminalização, que hoje deve estar regido por critérios de merecimento e necessidade da pena.

Assim, tão somente por conceituar e demonstrar as finalidades do Direito Penal e da criminalização de condutas, pode-se visualizar uma série de barreiras a serem vencidas para que possa haver criminalização primária e secundária de condutas.

Tais barreiras serão mais bem entendidas quando se esmiuçar os princípios de Direito Penal, em seguida. Não obstante, já é possível concluir que:

a. Se o Direito Penal tem função de proteger bens jurídicos e o crime é a conduta que os expõe a perigo ou causam-lhe lesão, o legislador somente poderá criminalizar condutas que tenham aptidão hipotética para tanto. Caso contrário, estaria deturpando o próprio Direito Penal.

b. Da mesma forma, o juiz, quando aplicar a norma ao caso concreto, deverá verificar a presença da lesão ou perigo ao bem jurídico, sob pena de estar diante de irrelevante penal, por ausência de crime, em seu aspecto material.

c. A criação de normas penais incriminadoras está subordinada aos direitos fundamentais. Uma vez extrapolado este limite a pena é desnecessária, e tal excrescência passa longe de ser inofensiva, afinal, conforme vimos, o Direito Penal tem como característica a reação extremamente gravosa a ato contrário a suas proibições.

Superadas tais fases introdutórias, passa-se ao estudo minucioso dos princípios que regem este ramo do direito, como forma de melhor compreendê-lo.

2.4.2 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE

Tal princípio é umbilicalmente conectado à função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, bem como sua função de possibilitar o convívio social evitando e punindo condutas que vulnerem este convívio. Aí reside a legitimidade do Direito Penal: utilizar a força do Estado de maneira mais drástica para possibilitar a defesa e manutenção de determinada comunidade. As condutas que vulneram o sobredito convívio são identificadas por sua capacidade de lesar ou colocar em perigo bens jurídicos tutelados pela norma penal. Portanto, "não se admitirá descrição típica (criminalização) de condutas que não ofendam concretamente um bem jurídico (proibição de criação de tipos penais sem objetividade jurídica real e definida). [24]"

Assim, segundo os ditames deste princípio, uma conduta deve vulnerar um bem jurídico para que seja criminosa, seja por meio de perigo, seja por meio de efetiva lesão.

Aprofundando o assunto, trazemos a doutrina de Capez [25]

Toda norma penal em cujo teor não se vislumbrar um bem jurídico claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social, será considerada nula e materialmente inconstitucional.

O intérprete também deve cuidar para que em específico caso concreto, no qual não se vislumbre ofensividade ou real risco de afetação do bem jurídico, não haja adequação na descrição abstrata contida na lei

Daí, podemos concluir que o mandamento tem dupla função, dirigindo-se ao intérprete, que no caso concreto deverá, necessariamente, constatar a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido, sob pena de estar diante de um irrelevante penal, como também ao legislador. Este, em seu trabalho de criação legal, somente tem autorização constitucional para formular um tipo penal, quando esta conduta hipotética, seja apta a oferecer, em tese, risco de dano ou dano ao bem jurídico tutelado.

Logo, somente pode ser objeto de sanção penal a conduta que possa vir a representar uma lesão a bem jurídico socialmente relevante. Isto porque a demonstração da "[...] existência de um bem jurídico e a demonstração de sua efetiva lesão ou colocação em perigo constituem, assim, pressupostos indeclináveis do injusto penal" [26]

Assim, é imperativo que a norma penal tenha intuito de proteger os bens jurídicos sociais mais caros e não somente visar formar cidadãos de acordo com uma determinada diretriz moral, considerada adequada em certo momento histórico. [27]

Por derradeiro, não se pode olvidar que a função de limitação de criação de tipos penais, representada pelo principio da ofensividade, dirigida ao legislador, não está dissociada da função interpretativa, dirigida ao aplicador da lei no caso concreto. Conforme esclarece Cesar Roberto Bitencourt, uma vez violado o principio em estudo, por atividade legislativa inadequada, cabe ao juiz readequá-la aos princípios do Direito Penal. [28]

O intérprete deve encontrar legitimidade para readequar o Direito Penal legislado na própria Constituição, tendo em vista que a lei penal, por si só, não constitui o direito aplicável, afinal, esta tem como condição de validade a perfeita adequação ao instrumento normativo superior.

Superada a avaliação de conformidade constitucional da lei penal incriminadora, o juiz instado a aplicá-la no caso concreto ainda precisa vencer nova barreira para a criminalização secundária. É preciso que a conduta exteriorizada pelo agente, tenho posto em risco de dano ou causado dano ao bem jurídico tutelado pela norma penal.

Tal procedimento é necessário tendo em vista que uma norma penal, além de trazer em si uma proibição, traz também um valor, identificado pelo interesse que o legislador entendeu legítimo proteger. Conforme expusemos no capítulo anterior, o crime é a violação da conduta somada à violação do valor normativo, representado pelo bem jurídico. Nesse sentido, vejamos Gomes [29]:

[...] ao juiz compete descobrir, depois de verificada a subsunção formal da conduta à letra da lei, qual é o bem bem (sic) jurídico (qual é o valor) protegido e se esse bem jurídico foi concretamente afetado (lesado ou posto em perigo).

Assim, além da aptidão genérica da conduta para trazer dano ou perigo ao bem jurídico, é preciso que aquela conduta individualizada tenha atingido tal resultado. Desta forma encerramos este princípio com as seguintes conclusões:

a)O legislador somente tem legitimidade para criminalizar condutas que exponham a perigo ou causem lesão a bens jurídicos. Inaptas para tanto as condutas descritas, o tipo penal padece de vício por incompatibilidade com a Constituição, tendo em vista o excesso legislativo.

b)Diante de leis penais que não sejam, conforme descritas pelo legislador, aptas a alcançar tais resultados, o juiz deve abster-se de aplicá-las no caso concreto, por sua invalidade, em respeito ao princípio da ofensividade.

c)Normas descritas abstratamente podem abarcar condutas lesivas e não lesivas ao bem jurídico tutelado, afinal o legislador está impossibilitado de descer a minúcias. Desta forma, ao julgar, deve-se atentar para se aquela conduta efetivamente praticada violou a norma penal em seu aspecto material. Ausente tal violação, estaremos diante de conduta atípica, ainda que haja subsunção formal à norma incriminadora válida.

2.4.3 PRINCÍPIO DA ALTERIDADE

Tal princípio representa um passo além da simples ofensividade da conduta. Segundo tal diretriz, não há simplesmente a necessidade que determinada conduta, para ser considerada como injusto penal, ponha em risco um bem jurídico individual ou coletivo. É preciso que seja vulnerado um bem jurídico alheio.

Neste sentido é a dicção da Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão

Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Assim, podemos notar um conceito básico de convívio social: a disposição de bem jurídico indivídual próprio ou sua má gestão por parte do titular não é situação apta a fundamentar qualquer interferência estatal.

Desta forma, haverá espaço para que o indivíduo possa se realizar como ser humano sem qualquer estímulo negativo do Direito Penal a condutas particulares. Vejamos a singela lição de Zaffaroni [30]:

[...] la conciencia individual es um ámbito que en esta tierra sólo incumbe a cada hombre. Sin embargo, debe impedir autoritariamente que algunos hombres realicen su elección en el mundo, porque de hacerla impedirían la realización de otros hombres"

Assim, o doutrinador argentino chega ao cerne do estudo deste princípio. A limitação de condutas por meio de Direito Penal se justifica pela capacidade que tal conduta teria em impedir a realização de outras condutas legítimas por diversos agentes daquela comunidade. É dizer, devemos utilizar o direito como forma de convivência harmônica de liberdade. Condutas que têm suas conseqüências limitadas ao agente que a pratica não legitimam a tutela penal em razão do princípio da alteridade.

Diante de tal premissa, Roxin [31] conclui que

"[...] só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; ...o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite em está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos

Nesse sentido trazemos a lapidar lição de Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista [32], que ensina que "[...] nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo".

Assim notamos que o Estado Democrático deve garantir ao cidadão seu pleno desenvolvimento enquanto pessoa, pautando suas atitudes de acordo com seu julgamento pessoal de certo e errado, a despeito de convicções alheias em sentido contrário. De tal premissa extrai-se que o Estado, de igual modo, não pode proibir aquelas condutas que não extravasem o âmbito do próprio agente, pois situam-se no desenvolvimento de sua própria personalidade.

Como outra conseqüência temos que o legislador não pode criar tipos penais hipotéticos nos quais não se vislumbre a possibilidade de afetação de bem jurídico total ou parcialmente alheio. Agindo de maneira ilegítima o legislador, deve o aplicador da norma, no caso concreto, diante de nenhuma conseqüência social da conduta, reputá-la com atípica, diante do conceito material de delito e do princípio da alteridade, que deve funcionar com norte interpretativo da atividade judicante.

Assim o princípio da alteridade, impõe verdadeiro mandato de tolerância aos cidadãos, que devem suportar condutas que lhe pareçam impróprias, ou mesmo que prejudiquem aquele que as pratica, sendo-lhes garantido que também não se verão alvo de intromissões indevidas da coletividade em seu âmbito de intimidade.

Trazendo tal princípio para a questão ora discutida, cumpre investigar de qual forma a conduta de portar drogas com dolo específico de consumo próprio pode afetar direito alheio, tal qual a saúde pública como um todo. Isto porque para legitimar a tutela penal, é preciso que da conduta descrita abstratamente pelo legislador seja possível constatar a possibilidade que tal conduta atinja um bem jurídico, total ou parcialmente alheio.

2.4.6 PRINCÍPIO DA INTIMIDADE

Segundo Alexandre de Moraes [33], "[...] os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas"

O referido princípio, dentre outros desdobramentos, determina que o indivíduo, em seu âmbito pessoal, pode fazer escolhas, ainda que a coletividade as considere imorais, mas que exatamente por se situarem no âmbito intimo do indivíduo, não são aptas a violar direito alheio e por isso estão a salvo de intromissões externas.

Este princípio normalmente não é tido como um princípio do Direito Penal, especificamente, mas obviamente não está fora de contexto no presente trabalho, pois é preciso investigar a legitimidade estatal para intervir em escolhas pessoais. Nesse sentido se pronunciou a 6ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo:

A simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que, situando-se na esfera individual, se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado - e, portanto, ao Direito – penetrar. (TJSP, Apelação Criminal n.º 993.07.126537-3, julgada em: 31 de mar. 2008.)

Pelo exposto, o direito à intimidade funciona como barreira que pode ser imposta pelo cidadão ao Estado e que, conseqüentemente, torna qualquer intromissão em condutas que se circunscrevem à sua vida privada como atentatórias a CRFB.

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Sobre o autor
Rafael Torres Smith

Advogado.Formado pela FDV - Faculdades Integradas de Vitória

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SMITH, Rafael Torres. A (in)constitucionalidade da proibição do porte de drogas para consumo próprio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2664, 17 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17627. Acesso em: 18 abr. 2024.

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