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A palavra da vítima no crime de estupro e a tutela penal da dignidade sexual sob o paradigma de gênero

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25/11/2010 às 09:02
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A mulher precisa superar o descrédito sexista que envolve sua vitimização, consubstanciado, por exemplo, no caso da violência sexual, no pressuposto de que a palavra da vítima deve ser reiteradamente testada.

O crime de estupro encontra-se tipificado pelo artigo 213 [01] do Título VI do Código Penal Brasileiro e compõe a estrutura dos "Crimes contra a Dignidade Sexual". A pertinente alteração taxonômica – até 2009 o Título VI referia-se aos "Crimes contra os Costumes" - operou-se por intermédio da Lei n. 12.015/2009, evidenciando que o bem jurídico objeto da tutela penal deixou oficialmente de referir-se aos costumes, à moralidade sexual posta, para voltar-se à tutela da integridade física e psíquica das pessoas – em especial as mulheres, considerando serem elas, quantitativa e tradicionalmente, as ocupantes do pólo passivo do crime – vítimas da violência sexual perpetrada.

É certo que sempre houve menção expressa no estatuto repressivo à tutela da liberdade sexual, mesmo antes da Lei n. 12.015/2009. Pertinente, pois, questionar-se o lugar desta fala: sobre qual tipo de liberdade sexual incide a tutela penal, considerando a ordem patriarcal de gênero vigente, que atribui aos homens o papel de elaborar padrões de conduta e moralidade, e até mesmo de formalizá-los sob uma roupagem legal, segundo as necessidades de manutenção da engrenagem de poder?

A importância de tal questionamento reside não apenas no fato de oferecer resposta à opção legislativa que por décadas manteve o crime de estupro em sede de crime contra os costumes, negando-lhe a condição de crime contra a pessoa, mas também, e principalmente, para melhor proceder à análise do discurso dos operadores do direito, sendo possível constatar a ocorrência de verdadeiro julgamento moral da vítima e do acusado, em detrimento do ato de violência sexual praticado.

Não por outro motivo assevera Naele Uchoa Piazzeta

O sentido da expressão "crimes contra os costumes" leva em conta os comportamentos sexuais que norteiam a vida de um povo num momento determinado e, por isso, a ordem pública - os ditos bons costumes - é mais visada do que propriamente tutelada a vítima [02].


I - O PARADIGMA DE GÊNERO E OS PAPÉIS SOCIAIS ATRIBUÍDOS A MULHERES E HOMENS

Em verdade, a análise do crime de estupro revela a força dos estereótipos sociais de gênero [03], in casu tomados como o conjunto de papéis que são conferidos à mulher como obrigatórios e dos quais esta não pode se desvencilhar sob pena de perder as condicionantes que justificam o "respeito" que a sociedade lhe deve dedicar.

Uma vez constatada a importância do paradigma de gênero nas relações sociais, mormente quanto às expectativas depositadas no desempenho do papel feminino, pólo desempoderado da relação entre os sexos, conclui Sílvia Pimentel que

À mulher cabe reconhecimento e respeito muito menos pelo fato de ser pessoa, sujeito de direitos, do que por seu enquadramento na moldura de comportamentos e atitudes que a sociedade tradicionalmente lhe atribui. [04]

O referencial de gênero é definido por Heleieth Saffioti e Suely de Almeida [05] como sendo uma relação social que remete os indivíduos a uma categoria previamente constituída. Coloca em relação um indivíduo com outros, determina se ele é pertencente a uma categoria e o posiciona face a outros pertencentes a outra categoria.

Prosseguem as autoras aduzindo que

Para Lauretis, o gênero não é apenas uma construção sócio-cultural, mas também um aparelho semiótico, "um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição no sistema de parentesco, status na hierarquia social, etc.) aos indivíduos no interior da sociedade [06].

Também para Sílvia Pimentel [07] o gênero deve ser entendido na sua concepção relacional, enquanto variável de análise que, somada também às variáveis raça/etnia e classe social constituem

No entender de Saffiotti, os três pilares fundantes da sociedade. São, portanto, fundantes das relações sociais, pois regulam as relações homem-mulher, as relações homem-homem e as relações mulher-mulher.

Prossegue referida autora aduzindo que as relações de gênero devem ser analisadas em um contexto de poder, sendo certo que no âmbito da sexualidade feminina é que se exerce o grande controle masculino.

Com efeito, no campo da sexualidade é possível encontrar toda sorte de preconceitos e estereótipos – como os juízos de valor que categorizam as mulheres em honestas e prostitutas, em boas mães e mulheres de família etc., concluindo Saffioti e Almeida [08] que

Socialmente construído, o gênero corporifica a sexualidade (não o inverso), que é exercida como uma forma de poder. Logo, as relações de gênero são atravessadas pelo poder. Homens e mulheres são classificados pelo gênero e separados em duas categorias; uma dominante, outra dominada, obedecendo aos requisitos impostos pela heterossexualidade. A sexualidade, portanto, é o ponto de apoio da desigualdade entre os sexos.

Destarte, tem-se que na dinâmica patriarcal da construção de gênero, determinante dos papéis a serem desempenhados por homens e mulheres, cabe aos primeiros a ocupação do espaço público, consubstanciado no controle político e gestão das instituições (em contraposição aos elementos família/casa, característicos do espaço privado). Na qualidade de detentores do poder, gozam de autonomia, identidade e status, alçando-se na condição de trabalhadores e proprietários [09].

Às mulheres é relegado o espaço privado, razão pela qual é necessária a fiscalização e domínio de sua sexualidade e reprodução, definidas por Lucila Larrandart [10] como sendo os lugares centrais do status das mulheres. É natural, pois, que sejam também o alvo principal da disciplina fomentada pelo controle informal exercido pela família, escola, religião, mídia etc. e, em última instância, também pelo direito penal, que cuida de incriminar condutas femininas desviadas do modelo erigido pelo patriarcado, como é o caso do aborto e do infanticídio.

Na definição de Anne-Marie Devreux, a desigual divisão do poder entre os gêneros não resulta de processos naturais ligados às capacidades próprias dos homens e das mulheres. A lógica patriarcal embasa a divisão desigual do poder na divisão das funções produtivas (exercidas na esfera do trabalho) e reprodutivas (exercidas na esfera doméstica) [11].

Garante-se a manutenção da ordem de gênero que se reproduz sob os desígnios androcentristas, caracterizada pelo domínio e primazia dos homens sobre as mulheres. É possível, ainda, assegurar que as instâncias formais de controle social – onde se situa o direito penal – apenas possuam como destinatárias as mulheres nas hipóteses em que os papéis por elas desenvolvidos assumam tamanha relevância que o controle exclusivo do patriarcado, exercido na esfera doméstica, se revele insuficiente para sua tutela [12]. Isto porque tais papéis, sob a ótica patriarcal, são importantes também na esfera pública – por exemplo, para a garantia da produção e propriedade, o que demanda o controle rigoroso sobre a sexualidade e reprodução femininas. [13]

Destarte, as relações de gênero são, primordialmente, relações de poder, sendo certo que na seara da sexualidade feminina se manifesta de forma mais contundente o controle e o poder masculino.


II - GÊNERO, PODER E CRIME: A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO JUDICIAL A PARTIR DOS PAPÉIS SOCIAIS DESEMPENHADOS PELO AUTOR E PELA VÍTIMA

O estupro reflete, de forma violenta, uma face do exercício do poder masculino: a vítima não dispõe de seu próprio corpo, porquanto um de seus papéis na divisão sexual de trabalho constituída sob a lógica androcentrista, que é assimilada e reproduzida pelo senso comum – inclusive do estuprador –, é o de disponibilizar seu corpo para a satisfação sexual do homem [14].

A objetificação [15] da mulher no crime de estupro, no entanto, não ocorre somente quando da prática do crime e do tratamento das conseqüências que dele porventura advenham. É reiterada no discurso dos operadores do sistema de justiça criminal durante toda a fase de colheita de provas - desde a fase inquisitorial até a fase judicial -, culminando em sentenças que em sua maioria revelam o que efetivamente se encontra em julgamento: não o fato criminoso, mas a conduta moral da vítima e do autor do crime.

A lógica patriarcal aplicável é a da honestidade, razão pela qual argumenta Vera Regina Pereira de Andrade [16]

O julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam, simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira "reputação sexual’ que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimização sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina.

O que ocorre, pois, é que no campo da moral sexual o sistema penal promove, talvez mais do que em qualquer outro, uma inversão de papéis e do ônus da prova. A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, regra geral, é de incitativa privada – acaba por ver-se ela própria "julgada" (pela visão masculina da lei, da polícia e da Justiça), incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada.

Confiram-se os seguintes julgados [17], os quais atestam que a dinâmica da prova, em sede de crime de estupro, possui vetor diverso, pois compete menos ao acusado sustentar sua inocência - a exemplo dos demais crimes - que à vítima provar a veracidade de suas declarações:

Estupro é a posse sexual da mulher por meio de violência física ou moral, isto é, pela força ou por grave ameaça. Supõe dissensão sincera e positiva da vítima, manifestada por inequívoca resistência, não bastando platônica ausência de adesão, recusa meramente verbal, oposição passiva ou inerte ao ato sexual (RT 607/291 – TJSP).

Para a tipificação do estupro exige a lei que a vítima, efetivamente, com vontade incisiva e adversa, oponha-se ao ato sexual Seu dissenso ao mesmo há de ser enérgico, resistindo, com toda sua força, ao atentado à sua liberdade sexual. Não se satisfaz, pois, com uma oposição meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia. (TJSP – RT 535/287).

Tratando-se de mulher leviana, cumpre apreciar com redobrados cuidados a prova da violência. E ainda mais a vis compulsiva. Para a condenação é mister que essa prova seja estreme de dúvida (TJSP – RT 537/301).

Toda vez que uma mulher adulta, adotada de suficiente força para oferecer resistência, afirmar ter sido coagida ao coito mediante violência, dever-se-á usar da máxima cautela e objetividade, tanto mais quanto a experiência ensina que, muito frequentemente, afirmações de tal natureza não passam de invenção (TJSP – RT 498/292).

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Os crimes contra os costumes são, geralmente, praticados na clandestinidade,sem a presença de testemunhas, razão pela qual tem valor probatório o depoimento da vítima se harmônico e coerente com as demais declarações constantes dos autos (TJMS – RT 673/353).

Lênio Streck [18] assinala que o senso comum que domina o imaginário jurídico é construído a partir de um discurso que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, óbvio, cuja tipicidade não é percebida e com relação ao qual todo o "exterior" é relegado à categoria de margem ou desvio: discurso-lei que não é percebido como lei. Aduz, com fulcro em Roland Barthes, que tal discurso pode ser denominado de "ideosfera": círculo, sistema de idéias-frases, de idéias fraseadas, de argumentos fórmulas, portanto objeto linguageiro essencialmente copiável e/ou repetível, fenômenos muito importantes de mimetismo.

Vera Regina Pereira de Andrade acentua também que nos crimes sexuais o código de valores secundário (second code) policial, ministerial e judicial não difere do senso comum social, definindo aquele como sendo o código social latente integrado por mecanismos de seleção dentre os quais tem se destacado a importância dos estereótipos de autores e vítimas, além de "teorias de todos os dias" (teorias do senso comum) dos quais são portadores os agentes do controle social formal (operadores do sistema de justiça criminal) e informal (a opinião pública), além de processos derivados da estrutura organizacional e comunicativa do sistema penal." [19]

A partir deste senso comum é que os operadores do direito encontram campo fértil para se valerem de estereótipos (como aquele que se refere à mulher adulta como sendo alguém sempre capaz de reagir a um estupro, razão pela qual dificilmente o ato sexual ocorre sem o seu consenso) e preconceitos (como o que se refere à "mulher leviana") em seus discursos, negando às mulheres vítimas de violência sexual a condição de sujeitos de direitos, como aqueles relativos à integridade física e psíquica, bem como de ver reconhecida sua dignidade de pessoa humana.

E assim acontece desde tempos remotos na cultura jurídica brasileira, pois o preconceito modernamente desvelado no discurso judicial já ocupou explicitamente o discurso legislativo, a teor do que preconizava o artigo 222 do Código Criminal do Império (1830). Confira-se:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas - de prisão por um mez a dous annos.

Com efeito, tomando-se por base os julgados declinados, é possível extrair que todas as mulheres são levianas ao relatarem uma violência sexual – e o são por este simples motivo - até que elas próprias, exibindo necessárias marcas em seus corpos, sejam hábeis o suficiente para convencer os operadores do contrário. É como se o acusado, de alguma forma, estivesse cumprindo um determinado papel em sociedade, um papel ilícito, imoral, porém esperado, razão pela qual recai sobre a conduta da vítima o ônus de demonstrar a ocorrência e, principalmente, a não concorrência para o crime.

Por todo o exposto, não há seara mais propícia que a dos crimes sexuais para a aplicabilidade de um dos indicativos para a fixação da pena insculpidos no artigo 59 [20] do Código Penal, qual seja, o do comportamento da vítima.

As demandas femininas em se tratando de crimes sexuais são sempre submetidas ao crivo da suspeita, do constrangimento e da humilhação durante as fases de investigação e jurisdicionalização do conflito. Sintetizando o processo de revitimização, Vera Regina [21] aponta para a reiterada investigação acerca da moralidade da vítima (para que prove ser uma vítima adequada), de sua resistência (para que prove ser uma vítima inocente), bem como para a dificuldade em obter-se condenações embasadas exclusivamente no testemunho da mulher (dúvidas acerca da credibilidade da vítima).

A valoração/qualificação da vítima, do seu status pessoal, constitui, em última instância, releitura ilegítima do princípio da presunção de não-culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII da Constituição), consectário do princípio do favor rei, que se opera às custas de um indisfarçável viés de gênero, em evidente afronta aos princípios da igualdade e da não discriminação insculpidos no artigo 5º, caput, e inciso I da Constituição Federal de 1988. Cumpre que se proceda, no mínimo, a uma ponderação de bens e valores.

Insiste-se em atribuir às vítimas o dever de provar sua honestidade, sua "envergadura moral", sua resistência visível ao ato sexual violento, além da descabida exigência – de natureza jurisprudencial, ou seja, encontrada no discurso consolidado dos operadores, não na lei - no sentido de que sejam repetidas à exaustão idênticas descrições do fato criminoso, promovendo doloroso processo de revitimização que não encontra par em situações semelhantes.

Há situações em que a vítima, algumas vezes à pedido da defesa, outras por deliberação do próprio magistrado, é obrigada a depor na presença do acusado, sob o argumento de ser direito deste acompanhar a produção da prova oral, em observância ao princípio do contraditório e um de seus consectários, o direito de presença.

A práxis forense revela que sequer em casos de roubo a vítima é obrigada a depor na presença do acusado se alegar temor de represálias, podendo proceder ao reconhecimento deste, se necessário, em sala apropriada para tanto. Assim, não há outra conclusão plausível senão a de que nos crimes de estupro uma vez mais a credibilidade da vítima é posta em dúvida, na medida em que se lhe exige que repita a narrativa do fato criminoso face a face com o agressor.

Destaca-se, por oportuno, que em situações tais entende-se como plenamente preservado o direito ao contraditório quando, a despeito da ausência do acusado na sala de audiências, seu defensor encontrar-se presente.

Exigências desta natureza ultrapassam os limites da necessidade de aferir a verossimilhança das declarações para alcançar-se a verdade real processual, como acontece em qualquer outro crime e com qualquer outro tipo de vítima, considerando-se os princípios que regem o direito processual penal constitucional.

Ela Wiecko V. de Castilho [22] assinala que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional estabelece normas de prova e procedimento para o tratamento de crimes que tenham mulheres como vítimas de violência sexual e de gênero, prevendo, por exemplo, a possibilidade de determinar a realização de um ato processual a portas fechadas, ou permitir a produção de prova por meios eletrônicos ou outros meios especiais, ponderando todas as circunstâncias e, em particular, a opinião da vítima (art. 68, 2). O Regulamento Processual do Tribunal detalha normas para vítimas de violência sexual, abrangendo princípios, valoração e confidencialidade. Ressalta a autora, no particular, que o consentimento da vítima não poderá ser inferido do silêncio ou da falta de resistência da vítima à suposta violência sexual.

Resta evidenciado, também face ao confronto com as diretrizes internacionais acerca do tema, que na justiça penal brasileira a análise da palavra da mulher em um crime de estupro ainda é submetida a um sistema velado (e diferenciado) de avaliação de provas, verdadeiro resquício do sistema da íntima convicção que, ressalte-se, há muito não encontra qualquer respaldo Constitucional, porquanto o artigo 93, inciso IX da Constituição Federal preconiza que as decisões judiciais deverão ser motivadas, sob pena de nulidade (sistema da livre convicção ou da persuasão racional). Tal motivação, evidentemente, deve encontrar respaldo na lei e serve de freio ao arbítrio judicial.

O sistema da íntima convicção atribui ao magistrado toda a responsabilidade pela avaliação das provas, conferindo-lhe ampla liberdade para decidir de acordo única e exclusivamente com sua consciência [23].

O problema, há muito constatado e que impulsionou a mudança no sistema, é que a consciência do operador não raro encontra dificuldades para manifestar-se com a isenção devida e esperada. In casu, o risco se revela nos estereótipos e preconceitos de gênero incorporados e exercitados todos os dias de maneira mecânica, os quais também são externados no momento da sentença. Falta-lhes, no entanto, o conteúdo jurídico, porquanto não é possível motivar, na forma da lei, padrões de comportamento "exigíveis" da vítima, porquanto eivados da subjetividade do operador.

Quando do ato decisório, ao invés de ater-se apenas ao julgamento da violência sexual praticada, verificando tão-somente se há razões objetivas para desqualificar a palavra da vítima – elemento, ao que tudo indica, crucial do acervo probatório - perde-se o operador em divagações subjetivas de cunho moralista e patriarcal, exercendo juízos de valor acerca da vida pessoal da mulher violentada, sua conduta moral e sua específica reação à violência no caso concreto, impondo-lhe um padrão de conduta que não encontra qualquer amparo na lei penal.

Destarte, não é exagero afirmar que nos crimes sexuais a palavra da vítima vale menos que qualquer outro meio de prova, pois sua credibilidade dependerá do significado próprio que lhe atribuir o julgador, perfazendo o sofisma percucientemente evidenciado por Lênio Streck [24] no binômio mais utilizado pela jurisprudência tanto para justificar a condenação como a absolvição: "a palavra da vítima dos delitos de estupro é de fundamental importância/ a palavra da vítima deve ser convincente". Confira-se:

Há que se examinar o problema que exsurge do modus interpretativo próprio do sentido comum teórico dos juristas. Com efeito, de um lado está sedimentado que "a palavra da vítima nos delitos de estupro é de fundamental importância"; de outro, como subespécie deste prêt-a-porter, tem-se que "a palavra da vítima deve ser convincente" para a comprovação do delito. Aparentemente, os dois verbetes tratam do óbvio: a palavra da vítima é de fundamental importância (em todos os crimes) e a palavra da vítima deve ser convincente (em todos os crimes). Entretanto, no plano da resolução dos crimes sexuais, por se tratar de delitos praticados quase sempre sem testemunhas, a dogmática jurídica elegeu tais verbetes para servirem de "significantes primordiais-fundantes", aptos para um procedimento subsuntivo do intérprete. É como se no verbete "a palavra da vítima assume fundamental relevância nos crimes sexuais" estivesse contida a essência da credibilidade da palavra das vítimas de crimes sexuais. Ou, de outro lado, na"máxima" "a palavra da vítima deve ser convincente" estivesse contida a essencialidade do grau de convencimento dos depoimentos das vítimas de crimes sexuais. Na verdade, como a dogmática jurídica ainda pratica dedutivismos, os citados verbetes escondem a possibilidade da aferição da singularidade de cada caso (singularidade que envolve não somente as circunstâncias que cercam o caso, mas a situação social do réu, da vítima e a visão de mundo – faticidade e historicidade – dos operadores do direito encarregados de analisar a lide.

Plenamente justificáveis, pois, as preocupações e precauções com o discurso jurídico e seus protagonistas, externadas em disposições expressas de instrumentos nacionais e internacionais de reconhecimento e defesa dos direitos humanos das mulheres, tais como a a Convenção de Belém do Pará (1995) [25], a Declaração de Viena (1993) e a Convenção de Beijing (1995), resultado da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela Organização das Nações Unidas, ambos ratificados pelo Brasil.

Entre as medidas elencadas como necessárias para o combate à violência contra a mulher destaca-se, na Convenção de Beijing, a adoção pelos governos de medidas destinadas a

Instaurar, melhorar ou desenvolver, conforme o caso, e financiar a formação de pessoal judicial, legal, médico, social, educacional, de polícia e serviços de imigração, com o fim de evitar os abusos de poder conducentes à violência contra a mulher, e sensibilizar tais pessoas quanto à natureza dos atos e ameaças de violência baseados na diferença de gênero, de forma a assegurar tratamento justo às vítimas de violência.

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Sobre a autora
Danielle Martins Silva

Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, pós-graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Danielle Martins. A palavra da vítima no crime de estupro e a tutela penal da dignidade sexual sob o paradigma de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2703, 25 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17897. Acesso em: 8 nov. 2024.

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