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Mediar e conciliar: as diferenças básicas

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29/11/2010 às 12:47
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Sumário:

1) Introdução: Os Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos (MESCs); 2) As Características do Direito Atual; 3) O Conflito: Sua Permanência e Modos de Abordagem; 4) A Função da Dogmática Jurídica; 5) A Conciliação; 6) A Mediação; 7) Características Básicas da Mediação; Complexidade, Criatividade, Transdisciplinaridade; 8) Utilização da Mediação e da Conciliação; 9) Concluindo: O Elogio da Mediação.

1 – Introdução: Os Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos (MESCs)

O Poder Judiciário no Brasil e no Mundo, vem mostrando de forma bastante clara, nas últimas décadas, sua incapacidade e insuficiência para resolver as controvérsias sociais, econômicas, familiares, empresariais, políticas, criminais e afins, pelo meio do consagrado e tradicional Processo Judicial.

Em consequência dessa crise do Poder Judiciário, começaram a ser desenvolvidos, na nossa cultura jurídica ocidental, sobretudo da década de 70 em diante, os Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos (Mescs) que, basicamente, são a Arbitragem, a Negociação, a Conciliação e a Mediação.

A finalidade dos MESCs, em apertada síntese, é possibilitar que os interessados na solução dos litígios não dependam da decisão da Justiça Estatal. Há um incentivo para que as partes litigantes encontrem soluções com maior liberdade, por si próprias, ainda que ajudadas por um terceiro, independente, ou mesmo se submetam ao julgamento de um Juiz Privado, por elas escolhido, livremente, com é o caso da Arbitragem.

Cada um desses procedimentos dos MESCs têm suas características específicas, a saber:

- A Arbitragem é feita por um Árbitro que não precisa ser formado em direito e é escolhido pelas partes, podendo ser qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes. O Árbitro decide o litígio, e a decisão arbitral produz os mesmos efeitos, entre os interessados como se fosse uma sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário. No Brasil a Arbitragem, atualmente, é regulada por lei específica (Lei 9.307/96).

- A Negociação é feita pelas próprias partes, entre si, livremente, sem interferência de um terceiro, podendo ou não chegar a um acordo.

- A Conciliação se faz geralmente em Juízo, durante o curso do processo, sob a direção do próprio Juiz do Estado. Mas pode ser feita, também, dentro ou fora do Poder Judiciário, na presença e com a participação de um Conciliador privado, visando, explicitamente, obter um acordo para prevenir ou terminar o litígio. O Conciliador atua analisando a controvérsia em conjunto com as partes, sugerindo soluções, incentivando o acordo, intervindo nas controvérsias com suas opiniões. Há um objetivo claro e pré-estabelecido: chegar a um acordo pela conciliação das partes. Cada parte faz concessões para a outra e a Conciliação representa o acordo para terminar a controvérsia.

- A Mediação é procedimento não-adversarial, visando a autocomposição entre as partes, com o auxílio de um terceiro, o Mediador, que não julga, nem intervém na decisão das partes. O Mediador apenas facilita a comunicação entre os envolvidos visando ajudá-los a compreender a complexidade da controvérsia e sua transformação numa outra situação melhor, procurando, assim, fazer a terapia do vínculo conflitivo. As partes podem chegar, ou não, a uma solução sobre a controvérsia. Mas sempre estarão aumentando, durante a Mediação, seu poder de decidir por si próprias, sem delegar a decisão a um terceiro. O objetivo principal da Mediação não é chegar a um acordo. O acordo é uma das possibilidades decorrentes do procedimento de Mediação, mas não é a finalidade da Mediação.

Conciliação e Mediação são, frequentemente, confundidas, como se fossem similares, quando são absolutamente distintas. Essa confusão advém, sobretudo, da presença de um terceiro (Conciliador ou Mediador) e da possibilidade de obtenção de um acordo, como veremos em detalhes na sequência.

É necessário, neste momento em que a confusão vem se acentuando nos meios jurídicos e na opinião pública, estabelecer as diferenças básicas entre Mediação e Conciliação.

Com efeito, o Conselho Nacional de Justiça, no Brasil, vem promovendo há alguns anos movimentos de estímulo à Conciliação, mutirões de conciliação, em todo território nacional, o conhecido Projeto "Conciliar é Legal". Isso vem tornando a Conciliação mais conhecida pela população. Há uma propaganda oficial sobre os benefícios de conciliar ao invés de litigar. Isso, de certa forma, contribui para a diminuição da cultura do litígio no Brasil, abrindo outras alternativas para além da "cultura da sentença judicial" que é a predominante.

Muitos confundem esses Projetos de Conciliação como se fossem também Projetos de Mediação, acreditando que o objetivo final, no fundo, é conseguir acordos nos litígios judiciais, para desafogar o número de processos em tramitação no Poder Judiciário, diminuindo o excessivo tempo de tramitação desses processos.

No entanto, a Mediação não tem, absolutamente, esse objetivo de obter acordos, nem de diminuir a litigiosidade judicial, embora também possa ajudar nesse aspecto.

A Mediação é, qualitativamente, diferente da Conciliação Judicial, ou Extrajudicial. A Mediação existe sem necessidade de ser tutelada por qualquer poder estatal, dependendo apenas das partes estarem dispostas a exercitarem seu poder de autocomposição e se abrirem para o aprendizado vital, a partir do conflito.

A finalidade desta reflexão é tentar estabelecer as diferenças básicas entre as os dois procedimentos, de Mediação e Conciliação, de modo que a Mediação e a Conciliação sejam, devidamente, caracterizadas e colocadas nos seus devidos lugares.

Para isso, inicialmente, vejamos as principais características atuais do Direito Positivo, posto pelo Estado, para poder situar a Mediação e a Conciliação nesse contexto.


2 - As Características Atuais do Direito Positivo

O Direito Positivo atual tem sua origem no ordenamento jurídico baseado nos Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). É um direito que entre outras características é positivado, escrito, formal, objetivo e racional. A lei é a fonte primária do Direito. Fora do comando e da hierarquia da lei positiva, encabeçada pela Constituição do Estado, não existe possibilidade de exercício dos direitos pelos cidadãos.

O Estado Constitucional de Direito é o padrão da maioria das Nações e as decisões das controvérsias são feitas através dos Juízes nomeados pelo Estado, ou seja, dos membros do Poder Judiciário, tudo em nome do Estado.

Sobra pouca liberdade para que os cidadãos possam procurar, por si próprios, a composição de suas controvérsias. O Estado é quem decide através do Poder Judiciário, e outros órgãos similares, as controvérsias existentes na sociedade.

O Poder Judiciário, como Poder do Estado, tem o monopólio da Jurisdição, mas não tem o monopólio do sentimento de justiça, pois isso pertence a todos os cidadãos.

De outro lado, a sociedade contemporânea atual é, sabidamente, complexa e global. A Era da Informática, neste século XXI, acabou por difundir e tornar acessível, a todos, o acesso aos conhecimentos e informações, criando uma rede de comunicação em todos os setores das atividades humanas.

A recente crise econômica mundial, iniciada em 2008, é um sintoma de como os Estados estão dependentes uns dos outros. A Economia não pode mais ser conduzida, isoladamente, por um ou outro País, pois todos acabaram sendo interdependentes. A complexidade aumentou na Economia, na Política, no Direito, na Ecologia, enfim, em todos os aspectos das atividades humanas.

O chamado Neoliberalismo econômico, baseado na hegemonia do Mercado livre, sem muita regulamentação, predominou desde as últimas décadas.

Mas, com a crise financeira de 2008 os Estados voltaram a intervir na área da economia privada, ajudando as empresas privadas em crise, seja no Brasil, nos EUA, na Europa, em toda parte.

Fala-se, hoje, até em "desmundialização", em retorno a padrões anteriores à crise, quando a presença estatal era mais forte na economia e quando cada Estado tinha mais autonomia de conduzir sua política econômica. A confiança na força do Mercado livre para regular a economia parece abalada.

Outro aspecto relevante na nossa era é o destaque que a Ecologia ganhou na preocupação coletiva, em função, sobretudo, do aquecimento global, estudado e comprovado pelos cientistas. Há uma nova preocupação sobre a sobrevivência da vida humana no Planeta Terra.

A discussão econômica com o uso de recursos naturais, antes consideradas abundantes, não causava preocupação há anos atrás. A água, por exemplo, na economia clássica, era considerada recurso sem valor, mas passou a ser discutida pela economia atual, em função do esgotamento desse recurso.

Tudo isso, está provocando uma revisão do Antropocentrismo, a concepção ocidental, de origem judaico-cristã, que afirma ser o homem o centro do universo, com direito de usar os animais, vegetais, e tudo o mais, a seu serviço. Contudo, os dados recentes mostram que uso da natureza tem seus limites e o ser humano é parte da natureza, não temos outro Planeta alternativo, para viver. Passa-se a admitir, contemporaneamente, uma visão Cosmocêntrica.

De fato, o Cosmos é o centro de tudo, o ser humano pertence ao Cosmos, ao reino animal, embora seja animal racional, como ensinou Aristóteles. Hoje o homem não parece tão racional assim, pois a destruição do Planeta parece ser prova de uma irracionalidade total da civilização humana.

O Cosmocentrismo é uma visão mais abrangente, possibilita o autorreconhecimento do homem, parte de um todo e não como uma parte diferenciada e superior do universo. Não há duas naturezas no nosso Planeta.

Temos de admitir que:

"O fenômeno humano não é para ser compreendido como a emergência de toda uma outra natureza, como ruptura qualitativa em relação aquela meio ambiente onde ele existe. A emergência do humano estabelece uma descontinuidade, mas ao nível do funcionamento, não da natureza" (Benasayag, 2007, 116).

Não existe outra natureza animal, somos todos pertencentes ao mesmo meio ambiente, há uma continuidade na natureza, embora o ser humano seja dotado de uma consciência diferenciada no nível operacional. O Cosmocentrismo abrange o Antropocentrismo e recoloca o homem dentro do Cosmos e não ao contrário, como acontece atualmente.

A diferença que se estabelece, artificialmente, entre o ser humano na sociedade, dentro do Estado de Direito e o ser humano na natureza, no Cosmos, cria uma ilusão de que é possível sobrepujar as dificuldades e os conflitos naturais com a cultura, com a tecnologia, e, sobretudo com o desenvolvimento da Ciência e do Direito.

Nesse sentido, o Direito e a Ciência já foram apontados, por um conhecido sociólogo do direito, como os dois pilares da modernidade:

"Entre os muitos espelhos das sociedades modernas, dois deles, pela importância que adquiriam, parecem ter passado de espelho a estátuas: a Ciência e o Direito" (Boaventura, 2000, 48). Acrescentamos, estátuas que estão virando ídolos para adoração dos povos, como se fossem saberes irrefutáveis.

Assim, tudo parece girar em torno do que a Ciência declara ser verdadeiro, e do que o Direito consagra também como aceitável, válido e eficaz para normatizar a vida das pessoas.

Contudo, a complexidade global, social, política, econômica, ecológica e afins, permanece como um desafio que nem o Direito, nem a Ciência, conseguem resolver.

Frente a tantas inseguranças da vida contemporânea, a função do nosso Direito Positivo, e do ordenamento jurídico como um todo, tem sido procurar estabelecer certezas, baseando-se em pressupostos e premissas inquestionáveis colocados pelas normas jurídicas, em nome da solução dos conflitos e da preservação da ordem política e social.

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O Direito Positivo estabelece Dogmas, para estabilizar a sociedade, ainda que contrafaticamente, colocando fora de discussão certos princípios, como os direitos e garantias individuais, como a Declaração de Direitos Humanos da ONU, como o direito de defesa, a liberdade de opinião e de imprensa, o direito de associação e assim por diante.

Contudo, o conflito entre as pessoas, entre as sociedades e entre as Nações, vem permanecendo, e até aumentando, apesar de todo o esforço dos Estados para terminar os conflitos pelos meios jurídicos do poder oficial.

Nesse contexto, é preciso analisar o que é esse fenômeno do Conflito que tanta ameaça traz para a pretendida estabilidade jurídica do Estado contemporâneo.


3 - O Conflito: Sua Permanência e Modos de Abordagem.

Para entender e praticar a Conciliação ou a Mediação é preciso ter uma noção mínima do que é o Conflito, pois em última análise estaremos sempre lidando, de uma forma ou de outra, com a possibilidade de resolver, ou não, conflitos.

Trata-se de elaborar uma Teoria Geral de Conflito, de estudar a Conflitologia um conhecimento recente que se preocupa em analisar a formação e estrutura dos conflitos e assim viabilizar possíveis modos de lidar com os conflitos da maneira mais pedagógica.

O Conflito, como contraposição de interesses, desejos e posições entre as pessoas e as organizações, faz parte da vida humana. O Conflito é ontológico. O conflito é necessário, não pode ser resolvido, deve ser compreendido na medida do possível.

O Conflito existe e existirá sempre, seja na dimensão individual da consciência humana, que é uma interface entre o dentro e o fora da pessoa, seja nas relações sociais e coletivas.

Pode-se afirmar que: "O conflito é o princípio material de produção dos seres. Produzindo forma, ele produz corpos, no sentido de organismos como a física. Os corpos são forma de conflito". (Benasayag, 2007, 119)

Nesse sentido, o Conflito não pode ser definido nem como bom, nem como ruim, pois isso é uma avaliação subjetiva e moral.

O Conflito precisa ser encarado como inevitável, como expressão da própria existência humana e mais ainda, como inerente aos organismos vivos do nosso planeta terra.

Assim, o conflito na nossa vida terrena representa um conjunto complexo, abrangendo os aspectos sociais, psicológicos, econômicos e afins. Cabe então pensar, contemporaneamente, na permanência dos conflitos, o que tem sido evitado pelo pensamento científico e jurídico.

De fato: "... herdeiros de uma época que há muito tempo acredita na possibilidade de terminar um dia com o conflito, nós somos atualmente, por essa mesma razão, assustados em face de tudo o que ameaça nossas vidas e nossas sociedades (Benasayag, 2007,7).

A questão contemporânea fundamental seria, não mais, como resolver conflitos, mas sim esta: "Como pensar a permanência do Conflito?"

Para a tradição jurídica ocidental, no entanto, em nome da estabilidade social e das razões do Estado, o conflito é, e continua sendo, visto pelo Direito como uma ameaça a ordem estabelecida.

Se o conflito é ameaça deve ser objeto de uma decisão de algum Poder do Estado que possa terminá-lo e assim a ameaça terminará. Essa ilusão precisa acabar. O conflito precisa ser valorizado como algo que faz parte da sociedade. Se de um lado o conflito é um sintoma de que algo não vai bem, de outro lado é uma oportunidade para fazer mudanças necessárias para resolver o problema.

No entanto, o Poder Judiciário transforma o conflito em controvérsia, em litígio, separando uma parte do todo conflitivo, para que possa ser negociada uma solução específica. Trata-se de uma simplificação binária da complexidade do conflito, estabelecendo-se classificações entre autor/réu, entre o licito/ilícito, o permitido/proibido e assim por diante. Simplificando, dividindo o todo em partes, passa a ser possível obter uma decisão específica para a controvérsia.

Os problemas que originam os conflitos não são abordados pelos órgãos do Estado que julgam os litígios, mas apenas suas consequências.

Nesse contexto existem quatro formas principais de solução de controvérsias:

1 - O Processo Judicial: o Estado escolhe um Juiz com poderes para decidir a controvérsia e dará a Sentença, a ser obedecida, compulsoriamente;

2 - A Arbitragem, onde as partes escolhem um Árbitro privado para dirimir a controvérsia, através da Sentença Privada, com força de Sentença Judicial;

3 - A Conciliação onde o Conciliador procura mostrar as vantagens de obter um acordo para terminar a controvérsia, ao invés de litigar no Processo Judicial;

4 - A Mediação, onde as partes, por si próprias, decidem a controvérsia, auxiliadas por um terceiro Mediador que não sugere soluções, nem decide nada.

Como demonstraremos nesta reflexão, dentre esses modelos só a Mediação admite a complexidade, a permanência do Conflito, bem como a criatividade das partes na busca da autocomposição e na transformação das controvérsias.

A Mediação supera os limites da Dogmática Jurídica.

Os demais modelos podem ser encarados como variações do modelo da Dogmática Jurídica de solução de conflitos, adotado pelo Direito Positivo do Estado de Direito.

Vejamos, assim, como funciona, genericamente, a Dogmática Jurídica.


4 - A Função da Dogmática Jurídica

Dogma significa algo que não se coloca em dúvida.

Se o conteúdo do dogma é verdadeiro, ou não, isso é uma questão secundária. A função do dogma é pacificar uma questão, dar estabilidade a um sistema de pensamento, de crença, a fim de viabilizar certos comportamentos e conceitos. Existem, assim, vários tipos de dogmas: dogmas religiosos, científicos, políticos, familiares, sociais, jurídicos, econômicos e outros.

Dogma, etimologicamente, tem sua raiz no grego dokéo, "julgar, aparentar", e do latim "docere", ensinar, significando "ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa, e por extensão de qualquer doutrina ou sistema" (cf. Antonio Geraldo da Cunha, no Dicionário, Etimológico, Nova Fronteira). Ou seja, dogma é algo que não mais se questiona, que está aceito como verdadeiro.

A Dogmática Jurídica é justamente a parte do Direito que lida com as certezas, com os pressupostos e premissas inquestionáveis colocados pelas normas jurídicas positivadas.

A Dogmática Jurídica é um modo de viabilizar decisões, simplificando a complexidade, diminuindo o questionamento social, e estabilizando a sociedade. O princípio da maioria, por exemplo, quando estabelecido por lei acaba com a discussão: o que a maioria decide é válido, isto é um dogma. A decisão neutraliza o dissenso, ou seja, os que têm opinião contrária devem se conformar com a decisão da maioria. Só que esse dogma da maioria é expressão de uma racionalidade formal que não convence a minoria. A maioria, por si só, não tem força de eliminar o ressentimento dos dissidentes.

A racionalidade do dogma cria insatisfações nos contrários, pois não respeita as diferenças de cada um, impõe soluções coletivas a contragosto, contrafaticamente. Produz é certo, o efeito de estabilização do sistema, mas à custa de um artifício, de uma solução racional.

Quando há muito descontentamento são feitas novas leis, são estabelecidos novos dogmas, sem os quais não há possibilidade do sistema operar.

Assim: "O Direito positivo institucionaliza a mudança, que passa a ser entendida como superior à permanência, e as penadas do legislador começam a produzir códigos e regulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo restabelecidos, num processo sem fim". (Ferraz, 1980, 200).

Num mundo moderno, leigo, sem valores religiosos, morais e éticos estáveis, dominado pela organização constitucional do Estado, sem fundamentos filosóficos permanentes, sem ideologia definida, a preocupação com a existência de possíveis verdades, passa a ser secundária e a verossimilhança passa a ser essencial. Não mais interessa ao Direito a legitimidade histórica, tradicional, carismática, mas sim, basicamente, a legitimidade racional das decisões.

Dessa forma "a Dogmática põe a verdade entre parênteses e se preocupa mais com o verossimilhante, isto é, não exclui a verdade, mas ressalta como fundamental a versão da verdade (e da falsidade)." (Ferraz, 1980, 183).

O que interessa mais é o conjunto das provas que são trazidas para o mundo jurídico, para o devido processo legal, pois o "que não está nos autos não está no mundo". O verdadeiro corresponderá, juridicamente, à prova dos autos, reduzindo-se, assim, a questão controversa ao que for decidido.

O conflito pode não desaparecer entre as partes, mas, juridicamente, termina. "A verdade é que a decisão jurídica, a lei, a norma consuetudinária, a decisão do Juiz etc. impede a continuação de um conflito. Ela não o termina através de uma solução, mas o soluciona pondo-lhe um fim. Pôr um fim não quer dizer eliminar a incompatibilidade primitiva, mas trazê-la para uma situação onde ela não pode mais ser retornada ou levada adiante". (Ferraz, 1980, 167).

Tudo isso é feito de um modo persuasivo, para que se acredite nas decisões adotadas pelos Juízes, tornando aceitável, em nome do ordenamento jurídico, as decisões que colocam um fim ao litígio, sem que o litígio, de fato, tenha terminado na perspectiva das partes envolvidas. Há uma aparente racionalidade que encobre as insatisfações das pessoas diante das decisões tomadas.

Sobre a insatisfação provocada pelas incoerências do ordenamento jurídico, já foi observado que:

".... não podemos olvidar que o que chamamos, ao nível vulgar, de Direito, numa sociedade, é mais um conjunto de símbolos e ideias não coerentes, que revelam sua incoerência ao homem comum quando este se envolve, por exemplo, num processo judicial. Nestes casos, como faz notar a Sociologia Jurídica, o homem comum sente o peso da insegurança ao ser confrontado com os direitos dos outros que, embora não lhe pareçam legítimos, não deixam de lhe trazer certa angústia. É claro que seria impensável que o Direito admitisse, oficialmente, que ele se move em múltiplas e incoerentes direções para satisfazer os valores emocionais em conflito, da população a que serve. O êxito do Direito como força unificadora depende, pois de se dar um significado efetivo á ideia de um governo do Direito como algo unificado e racional. Este êxito depende, em parte, da Dogmática Jurídica. "(Ferraz, 1980; 179,180)

Assim, as pessoas precisam aceitar como razoáveis, formalmente, as decisões emanadas dos poderes estatais para poderem obedecer, sem se desiludir com a decisão, pois isso traria descrença ao sistema jurídico. A Dogmática colocando fora de dúvida certas premissas procura dar essa segurança para as partes, ou seja, o decidido de acordo com as regras jurídicas estabelecidas deve ser obedecido, formalmente.

Contudo a descrença da população, com o sentido e o mérito das decisões do Poder Judiciário, pelo processo judicial, vem acontecendo, há bastante tempo.

O Processo Judicial viabiliza as decisões, simplifica a complexidade, diminui o questionamento social e assim tenta estabilizar as relações sociais. O que importa é a decisão, uma decisão, que se impõe para terminar o litígio

O Estado parte do pressuposto que resolver a controvérsia, mesmo de forma insatisfatória, é melhor do que não resolver o conflito.

Quanto ao mérito, o Processo Judicial funciona protegido pelo axioma: "O que não está nos autos não está no mundo". Importa julgar de acordo com as provas existentes, constantes dos autos, e assim o que não foi trazido ao processo, o que foi ocultado ou, ainda, o que não se conseguiu provar não pode ser considerado no processo.

A segurança, a certeza, e a objetividade da decisão baseada, exclusivamente, em provas feitas no processo, são mais importantes do que a realidade dos fatos.

O Processo Judicial simplifica e delimita a discussão para poder dar uma solução objetiva e fundamentada em provas. Visa a segurança jurídica, funciona basicamente de forma binária (autor/réu, licito/ilícito, permitido/proibido, válido/inválido, relevante/irrelevante, eficaz/ineficaz, culpado/inocente...).

Tudo é devidamente classificado em compartimentos bem definidos para que as regras processuais sejam claras e objetivas. O processo visa dar segurança para as partes, independentemente, da eventual e sempre esperada justiça das decisões.

Assim o Estado Moderno monopoliza o poder de julgar, mas não o tem o monopólio de fazer a Justiça, esse sentimento, essa virtude intuitiva e desejada, indecifrável, desde tempos remotos, pela civilização humana.

O indefinível sentimento de Justiça das pessoas é mais amplo e complexo do que o sentimento de segurança processual. Em consequência, as decisões do Processo Judicial são sempre limitadas e insatisfatórias, num jogo de perder e ganhar, sem fim.

A Dogmática Jurídica trabalha para neutralizar o dissenso das partes, e não para formar o consenso entre elas, ou seja, quem perde tem de se conformar porque a decisão é fruto de uma autoridade legitimada pelo Estado, pela Constituição, pela ordem jurídica.

Porém, o próprio Estado, diante do volume excessivo de processos judiciais e da insatisfação provocada pelas decisões, acaba reconhecendo, no Brasil e no mundo, que o processo judicial não é capaz de realizar a Justiça, não instaura a Paz entre os homens, nem torna mais pacífica a coletividade.

É dentro desse contexto de insatisfação com o Poder Judiciário que deve ser entendido o surgimento e a evolução dos já citados MESCs (Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos).

O Estado não pretende deixar de lado o Processo Judicial, mas apenas aceita que o Processo Judicial conviva com outros modos de solução de litígios que façam parte de uma cesta de opções (Arbitragem, Negociação, Conciliação e Mediação) para os litigantes escolherem o melhor caminho para solução de seus problemas.

Isto posto, comecemos por examinar a Conciliação e depois a Mediação, estabelecendo as diferenças básicas entre os dois procedimentos, que é o objetivo desta reflexão.

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Sobre o autor
Ademir Buitoni

advogado e mediador em São Paulo, doutor em Direito Econômico pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUITONI, Ademir. Mediar e conciliar: as diferenças básicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2707, 29 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17963. Acesso em: 29 mar. 2024.

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