"1. Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses."
(Declaração Universal dos Direitos do Homem, Artigo XXIII)
RESUMO
A arbitragem, enquanto mecanismo extrajudicial de resolução de controvérsias, situa-se dentro de um movimento amplo em defesa do acesso à justiça, que objetiva, em última análise, ajudar o Estado na difícil tarefa de pacificar os conflitos sociais. A arbitragem voluntária é uma forma amplamente democrática de solução dos conflitos coletivos de trabalho, tendo sido recomendada pela Organização Internacional do Trabalho e prevista em nossa Carta Constitucional. A edição da Lei n. 9.307/96, que sistematizou e deu uma roupagem mais moderna ao processo arbitral, proporcionou uma releitura ou redescoberta do instituto, havendo, entretanto, fundado receio por parte da doutrina de que sua aplicação nos conflitos individuais venha a desvirtuar os princípios que protegem o trabalhador. O presente trabalho oferece uma sugestão para viabilizar a utilização da arbitragem nos conflitos individuais, ressaltando a importância de uma regulamentação legislativa que respeite os princípios fundamentais do Direito do Trabalho e associe a solução arbitral à autonomia privada coletiva. Há boas perspectivas se o legislador promover a adequação da legislação trabalhista ao sistema democrático instituído pela Constituição Federal de 1988, sendo o primeiro passo uma ampla reforma sindical que possibilite o fortalecimento e a efetiva representatividade das entidades sindicais.
INTRODUÇÃO
O instituto da arbitragem, embora antiqüíssimo na história dos povos, nunca teve espaço para sua plena utilização no Brasil. Razões de ordem histórica e cultural justificam a impopularidade do instituto, na maior parte das vezes voltado para questões comerciais e internacionais. A edição da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, proporcionou uma releitura ou redescoberta da solução arbitral, mas o sentido de sua aplicação deve ser buscado dentro do movimento amplo em defesa do acesso efetivo à justiça.
O Direito das relações de trabalho, por outro lado, é hoje um dos ramos jurídicos de maior importância na Ciência do Direito, não apenas em função da peculiaridade de seus princípios e características, mas fundamentalmente em virtude dos contornos políticos e econômicos que vem adquirindo nas últimas décadas. Com efeito, a complexidade das relações humanas exige continuamente uma maior racionalidade e eficiência do ordenamento e do sistema de solução dos conflitos laborais, despertando uma controvertida discussão sobre o escopo do princípio protetivo na relação de emprego.
Calcadas em uma experiência histórica de resistência e luta por condições dignas de trabalho, as normas trabalhistas têm como espinha dorsal uma diferenciação jurídica que tenta fazer valer, em última análise, o princípio da igualdade. Sabemos que a construção da isonomia passa em grande parte das vezes pelo tratamento desigual de pessoas desiguais, na medida de sua desigualdade. O princípio jurídico da proteção, situado dentro do direito laboral, revela-se, sob certo sentido, como a projeção do princípio da igualdade no plano das relações de trabalho.
O presente trabalho se propõe a verificar a adequação e a aplicabilidade da arbitragem enquanto instrumento destinado a pacificar os conflitos laborais. Busca-se, em última análise, questionar a viabilidade prática e jurídica de se adotar a solução arbitral no âmbito das relações entre capital e trabalho. Para isso, dedicaremos inicialmente espaços singularizados às características da arbitragem e do Direito do Trabalho, para, ao final, fazer a junção das duas partes integrantes do tema ora em análise.
Nesse sentido, o primeiro capítulo abordará a crise do processo e o acesso à justiça, apresentando a importância dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos e sua estreita ligação com a efetividade da pacificação social. Demonstrar-se-á, ainda, que o instituto da arbitragem também está incluído dentro desse amplo movimento em defesa do acesso pleno e efetivo à prestação jurisdicional.
O segundo capítulo tratará dos aspectos estruturais da arbitragem, contemplando, dentre outros pontos, seu conceito, história, características, espécies e sua disciplina normativa. Reservar-se-á um espaço considerável desta exposição às referências legislativas presentes na legislação trabalhista.
O capítulo seguinte delineará as origens e a estrutura da Justiça do Trabalho, examinando os motivos que levaram à adoção de um modelo corporativista no Brasil. Evidenciar-se-á que a Constituição Federal de 1988 deu um grande passo para a ruptura desse modelo, tendo estimulado o desenvolvimento do Direito Coletivo do Trabalho, apesar de ainda conter resquícios intervencionistas que elidem o fortalecimento dos entes sindicais.
O quarto capítulo constituirá o marco teórico do trabalho, na medida em que objetiva, a partir da análise dos princípios que regem o Direito Individual e o Direito Coletivo do Trabalho, trilhar o caminho por onde a arbitragem deve adentrar nas relações laborais. Utilizar-se-á, para isso, a visão de Maurício Godinho Delgado, que distingue claramente os princípios desses dois segmentos que compõe o ramo jurídico trabalhista.
O quinto capítulo discorrerá sobre a arbitragem nos conflitos coletivos de trabalho, contemplando a orientação da Organização Internacional do Trabalho e o alcance da norma constitucional contida no artigo 114, § 1º. Discutir-se-á a harmonia da Lei n. 9.307/96 com os princípios que regem o Direito Coletivo do Trabalho.
O penúltimo capítulo enfrentará a espinhosa discussão sobre a aplicabilidade da Lei n. 9.307/96 nos conflitos individuais do trabalho, trazendo os posicionamentos doutrinários sobre a matéria. Demonstrar-se-á o importante papel que os princípios trabalhistas devem ter na análise do parâmetro de arbitrabilidade contido no artigo 1º da Lei de Arbitragem.
O último capítulo tratará das vantagens que a arbitragem pode conferir na solução do conflito trabalhista, discutindo os pontos positivos e negativos de sua adoção. Encerrar-se-á com uma reflexão sobre os limites e as perspectivas do instituto nas relações trabalhistas, evidenciando sua estreita ligação com a política legislativa que norteará o desenvolvimento do Direito Coletivo do Trabalho. Sugerir-se-á qual é o melhor caminho para a efetiva adoção desse importante mecanismo de pacificação social.
1.A CRISE DO PROCESSO E O ACESSO À JUSTIÇA
O instituto processual depara-se atualmente com três principais questionamentos ou campos de discussão, intimamente ligados ao seu próprio sentido de existência, quais sejam: o pleno acesso a uma ordem jurídica justa, a efetividade do processo e a pacificação dos conflitos. Tais questionamentos nascem, fundamentalmente, da crise vivida pelo paradigma processual dominante, calcado na pureza técnica e no formalismo excessivo, que não responde mais aos anseios e às novas demandas surgidas no seio da sociedade contemporânea.
O conceito teórico de acesso à justiça mudou significativamente ao longo dos últimos séculos. Com efeito, nos estados liberais burgueses dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9) Prevalecia a idéia de que o acesso à justiça, embora visto como um direito natural do indivíduo, não necessitava de uma ação do Estado para a sua proteção.
Isto significa dizer que o sistema laissez-faire determinava uma postura passiva do Estado. Sua única função seria a de zelar para que o direito natural de acesso à justiça de um indivíduo não fosse infringido por outro semelhante. Se porventura uma pessoa, por qualquer motivo, não tivesse condições de arcar com os custos da prestação jurisdicional, era simplesmente considerada a única responsável pela sua incompetência ou incapacidade. A filosofia liberal revelava, em síntese, uma preocupação com o acesso formal à Justiça, mas não com o acesso efetivo à Justiça. Resumia-se, nesse aspecto, ao direito formal do indivíduo de propor ou contestar uma ação. Correspondia, em linhas gerais, à idéia de igualdade predominante na época, dentro de uma perspectiva exclusivamente individualista e burguesa.
A evolução do significado de direitos humanos ao longo dos dois últimos séculos mudou radicalmente o enfoque do acesso à justiça. A visão individualista foi superada paulatinamente por uma preocupação constante com a efetividade dos direitos, tendo como marco inicial as reformas providas pelo welfare state. A atuação positiva do Estado passou a ser vista como necessária para assegurar o gozo de todos os direitos sociais básicos, dentre eles o de ter acesso efetivo à Justiça.
A mudança fundamental consistiu na percepção de que a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça passou a ser encarado como o requisito fundamental, o mais básico dos direitos humanos, de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12) O sistema jurídico, nessa concepção, tem como finalidades ser igualmente acessível a todos e produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8)
Por outro lado, discute-se na sociedade contemporânea, especialmente a partir da consagração do Estado Democrático de Direito, de que forma os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana podem ser concretizados. Essa discussão, como não poderia deixar de ser, tem como um de seus escopos principais a reforma do ordenamento processual, buscando-se instrumentos que proporcionem a realização plena do direito material, sob uma perspectiva de valorização do caráter instrumental do processo. Persegue-se, em essência, o que se convencionou chamar de efetividade do processo, em detrimento de um sistema extremamente rígido e técnico.
Outro fenômeno de grande importância no contexto de evolução do instituto processual foi o fortalecimento das atribuições do Estado na pacificação dos conflitos. Como bem observa Ada Pelegrini Grinover,
O objetivo-síntese do Estado contemporâneo é o bem-comum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é licito dizer que a projeção particularizada do bem comum nessa área é a pacificação com justiça. O extraordinário fortalecimento do Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, conduziu, a partir da já mencionada evolução do direito romano e ao longo dos séculos, à afirmação da quase absoluta exclusividade estatal no exercício dela. (GRINOVER et al., 1993, p. 25)
A afirmação continuada do monopólio estatal da jurisdição, ocorrida com grande vigor nos países com sistemas jurídicos originários da escola romano-germânica, teve como conseqüência lógica o enfraquecimento do instituto da jurisdição privada. As formas de autocomposição dos conflitos também não mereceram estímulo para o seu desenvolvimento. Observou-se que o fortalecimento do Estado na sua função de pacificador dos conflitos acabou por praticamente excluir o cidadão, desacompanhado do auxílio de instrumentos estatais, do processo de resolução de suas próprias controvérsias. (GRINOVER et al. apud AZEVEDO, 2001, p. 14)
A exclusividade estatal na pacificação dos conflitos vem sofrendo, entretanto, questionamentos de ordem teórica e prática muito contundentes. Nos dizeres de Ada Pelegrini Grinover,
Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficientes. Por outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o exercício da jurisdição e através das formas do processo civil, penal ou trabalhista. (GRINOVER et al., 1993, p. 26)
A crise das instituições públicas no Estado contemporâneo é um fenômeno que envolve múltiplos fatores. Dentre eles, sem dúvida, dificuldades de natureza fiscal e burocrática, herdadas do espírito de providência do Estado Social. No âmbito do Poder Judiciário, contribuem fundamentalmente para esse estado de coisas questões amplamente conhecidas pelos operadores do Direito, como: a) o tempo de duração dos litígios; b) o número elevado de feitos em tramitação; c) a falta de estrutura dos tribunais; d) o número insuficiente de juízes e funcionários; e) os custos do processo e da máquina judiciária; f) os problemas econômicos e sociais da sociedade brasileira.
Não há dúvidas realmente de que os reflexos da demora no deslinde dos feitos são extremamente negativos e perversos. Aumentam-se os custos para ambas as partes, especialmente para a parte economicamente mais fraca, que se vê obrigada a abandonar a causa ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teria direito. Por outro lado, observa-se que a parte que tem possibilidade de suportar a delonga do litígio por mais tempo leva incontrastável vantagem, podendo apresentar seus argumentos de forma mais eficiente do que a outra. É cediço o fato de que a Justiça não cumpre suas funções dentro de um prazo razoável.
A demora na solução dos litígios tem infelizmente causado o enfraquecimento do sistema jurídico, ou melhor, da instituição jurídica de uma maneira mais ampla. O fator tempo é inimigo crucial da função pacificadora do Estado, comprometendo a efetividade do processo e gerando a descrença das pessoas na instituição. A permanência de situações indefinidas constitui fator de angústia e infelicidade pessoal para os jurisdicionados. Além disso, compromete a própria subsistência das pessoas que dependem de verbas de natureza alimentar, como ocorre, por exemplo, em relação àquelas provenientes de direitos trabalhistas.
No âmbito dos conflitos de trabalho, inclusive, a morosidade é uma questão gravíssima. Destacam-se, nesse sentido, as palavras do emérito Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula:
Como já salientado, a morosidade há de ser vista, em última análise, não apenas como uma manifestação de ineficiência do aparelho jurisdicional incumbido de encontrar a solução para os conflitos, mas um sinal da inacessibilidade da justiça. Para o empregado, que normalmente se encontra na completa dependência do fruto de seu trabalho, a demora na entrega da prestação jurisdicional tem ressonâncias graves, exatamente por ter menor capacidade de resistência. Aliás, essa realidade é que leva, com freqüência, os empregados a aceitarem um acordo em que ‘abrem mão’ de parte significativa de seus direitos, na fase de conciliação, pois que não teriam condições de esperar o longo trâmite do processo trabalhista. (VIANA, 1997, p. 19)
Por outro lado, percebe-se que o custo da máquina judiciária é altíssimo, constituindo um grande ônus para a sociedade, especialmente em países como o Brasil, onde há uma necessidade preeminente de se investir em políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e a inclusão social. Isso faz com que o Poder Judiciário seja reiteradamente alvo de severas críticas da opinião pública.
Nesse contexto de crise do processo e das instituições jurídicas, vislumbram-se algumas das reformas mencionadas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, incluídas no que chamam de terceira onda de acesso à justiça, que contemplam, dentre outras: a) alterações nas formas de procedimento; b) mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais; c) o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores; d) modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução; e) a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71)
Percebe-se, realmente, a necessidade de criação e implementação de mecanismos judiciais e extrajudiciais, alternativos, de composição de litígios e pacificação social, que possam atender aos anseios da sociedade com maior rapidez e eficácia. (MORGADO, 1998, p. 43) Joel Dias Figueira Júnior, a esse respeito, assevera:
Os métodos alternativos de solução de conflitos são melhor compreendidos quando enquadrados no movimento universal de acesso à justiça, à medida que aparecem como novos caminhos a serem trilhados facultativamente pelos jurisdicionados que necessitam resolver seus litígios, de forma diferenciada dos moldes tradicionais da prestação de tutela oferecida pelo Estado-Juiz. (FIGUEIRA JÚNIOR, 1999, p. 114)
Dessa forma, pode-se dizer que a arbitragem, assim como os outros mecanismos extrajudiciais de resolução de controvérsias, situa-se dentro de um movimento amplo em defesa do acesso à justiça. Tais mecanismos apresentam-se como alternativas à Jurisdição Estatal, sob o signo da celeridade, economia, objetividade, flexibilidade, informalidade, discrição e preservação de relacionamentos. Consubstanciam-se como formas mais eficientes de solução de conflitos do que o processo judicial, na medida em que podem ser adequados com maior facilidade à natureza do litígio. Nesse universo, a arbitragem se destaca por ser a única forma extrajudicial de solução de conflitos dotada de força vinculante, constituindo, assim, o caminho alternativo à Jurisdição Estatal no caso de fracasso das formas autocompositivas.
Cumpre frisar, entretanto, que os métodos alternativos de solução de controvérsias buscam, em essência, ajudar o Estado na sua missão constitucional de pacificação de conflitos, e não substituí-lo, como costumam pregar algumas pessoas mais desavisadas. Joel Dias Figueira Júnior, nesse sentido, destaca:
Assim como não existe no processo civil comum procedimento melhor ou pior, mas sim tutelas diferenciadas mais ou menos adequadas aos respectivos ritos diversificados, escolhidos pelo autor de acordo com o sistema posto no ordenamento jurídico positivado, não há que falar também de maneira absoluta em melhor ou pior forma de prestação da tutela jurisdicional para a solução dos nossos inúmeros conflitos qualificados por pretensões resistidas, isto é, se estatal ou paraestatal. (FIGUEIRA JÚNIOR, 1999, p. 102)
A pedra de toque dessa questão reside, portanto, em saber objetivamente qual a ferramenta mais adequada para a solução do litígio. Essa opção deve ser feita a partir da análise da natureza do litígio e da qualidade e interesse das partes envolvidas. O enfoque da discussão deve ser sempre a efetividade da pacificação social, e não a prevalência de uma opção sobre a outra.