Sumário: 1. Introdução: Da tradicional à Moderna Hermenêutica Constitucional 2. Os princípios da Moderna Hermenêutica Constitucional 2.1 O princípio da Unidade da Constituição 2.2 O princípio da Concordância Prática (Harmonização) 2.3 O princípio da Exatidão Funcional (Justeza/Conformidade Funcional) 2.4 O princípio do Efeito Integrador (Eficácia Integradora) 2.5 O princípio da Força Normativa da Constituição 2.6 O princípio da Máxima Efetividade da Constituição 2.7 O princípio da Interpretação Conforme a Constituição 3. Os métodos da Moderna Hermenêutica Constitucional 3.1 O método Tópico-Problemático 3.2 O método Hermenêutico-Concretizador 3.3 O método Científico-Espiritual 3.4 O método Normativo-Estruturante 4 Conclusão: Uma nova forma de interpretar a Constituição 5. Referências Bibliográficas
1. Introdução: Da Tradicional à Moderna Hermenêutica Constitucional
Escrever sobre métodos de interpretação e hermenêutica é caminhar por um terreno pleno de incertezas e discussões. Uma análise de cada um dos métodos e correntes hermenêuticas renderia ensejo a um trabalho isolado, razão pela qual não se fará um estudo aprofundado do assunto. O que se objetiva aqui é tão somente demonstrar, brevemente, a evolução pela qual vem passando a hermenêutica constitucional e os mais importantes métodos e princípios que vêm sendo utilizados na moderna hermenêutica constitucional.
Tradicionalmente, não só no ramo da hermenêutica constitucional, como em todos os demais ramos do direito, fez-se uso dos métodos da hermenêutica tradicional, quais sejam o gramatical (filológico), o histórico, o sociológico, o sistemático e o teleológico. A aplicação isolada de tais métodos, contudo, já sofria duras críticas desde a época de seu cultor. Alertava Savigny que tais métodos não eram excludentes, devendo ser aplicados de forma integrada para que se pudesse encontrar o verdadeiro sentido das normas constitucionais.
De toda forma, a aplicação do método hermenêutico-clássico, propugnado por Savigny, e que sofreu forte influência da ideologia liberal da separação absoluta dos poderes (onde o juiz exercia o papel de boca da lei), não foi abandonada por completo, sendo ainda utilizada nos dias atuais. Ocorre que os adeptos desse método acreditam que a norma possui um sentido inerente, seja ele desejado pelo legislador (mens legislatoris) ou emanado do próprio texto, enquanto objeto de interpretação (mens legis) que pode ser alcançado, revelado pelo intérprete. Afirmam, assim, que o aplicador do direito é capaz, por meio da utilização dos métodos clássicos, de descobrir o verdadeiro significado das normas. Essa pretensão de encontrar o real significado da norma, que obstaculiza a evolução do direito e desconsidera a dinâmica normativa da Constituição e das leis, demonstrou a insuficiência do método hermenêutico clássico e contribuiu para o surgimento de novas teorias da interpretação constitucional, muitas delas baseadas na ideia de concretização, contrária ao padrão hermenêutico clássico.
Importante é relembrar, também, que já se encontra absolutamente superado o velho brocardo in claris cessat interpretatio, que, conforme nos lembra Carlos Maximiliano (2008, p. 27), era disposição especial encontrada no Digesto, relativa tão somente aos testamentos, que foi indevidamente generalizada ao longo dos séculos. Disso decorre que todo texto, e especialmente a Constituição, merece ser interpretado, ainda que, à primeira vista, se mostre claro. É lembrar a lição de Maximiliano (2008, p. 31):
Demais, se às vezes à primeira vista se acha translúcido um dispositivo, é pura impressão contingente, sem base sólida. Basta recordar que o texto da regra geral quase nunca deixa de pressentir a existência de exceções; logo, o alcance de um artigo de lei se avalia confrontando-o com outros, isto é, com aplicar o processo sistemático de interpretação. (grifos no original)
Essa lição, ainda lastreada no método jurídico ou hermenêutico-clássico, já demonstra a importância de se considerar o conjunto da lei (ou, no caso, da Constituição), ao invés de desenvolverem-se interpretações com base em dispositivos isolados do texto. Como se verá adiante, essa é a ideia condutora de alguns dos princípios da moderna hermenêutica Constitucional.
Retornando ao tema da evolução da hermenêutica constitucional, tem-se que o movimento da modernidade, conforme relata Rodolfo Viana Pereira (2007, p. 84), também teve seus reflexos no constitucionalismo. Aquela nova experiência de vida, fundada no racionalismo que se opunha ao Antigo Regime, provocou uma elevação da Constituição a verdadeiro "objeto de libertação geral da humanidade" (PEREIRA, 2007, p. 89), cujo conteúdo era a declaração de direitos e garantias e a limitação do poder político. Em face destas peculiaridades do texto constitucional, não demorou a aflorar o princípio da supremacia da constituição e os mecanismos de controle de constitucionalidade, e a surgirem discussões sobre as diferenças entre os métodos de interpretação da Constituição e da legislação infraconstitucional.
Com relação a este último ponto, três correntes doutrinárias surgiram, buscando estabelecer o status epistemológico da Hermenêutica Constitucional frente à Hermenêutica Clássica:
1) a tese da diferença intrínseca, que pregava serem aquelas duas disciplinas autônomas, de modo que a Hermenêutica Constitucional enfrentava problemas específicos de interpretação, pelas peculiaridades do texto constitucional;
2) a tese da igualdade total, que afirmava inexistir diferença entre a interpretação da Constituição e a das demais leis ordinárias, pois os problemas de interpretação em um ou outro caso eram jurídicos; e
3) a tese da igualdade com particularidades, que defende a existência de uma única disciplina Hermenêutica, geral, mas que abarca como espécie a Hermenêutica Constitucional, esta apta ao estudo de princípios interpretativos próprios para a compreensão do texto constitucional e suas peculiaridades.
Tais peculiaridades da norma constitucional foram enumeradas por Luís Roberto Barroso como sendo
1) sua superioridade hierárquica, confirmada pelos mecanismos de controle de constitucionalidade;
2) a natureza de sua linguagem, que é mais principiológica e abstrata;
3) o seu conteúdo específico, que abarca normas programáticas, além de simples normas de conduta;
4) o seu caráter político, já que representam a juridicização dos valores políticos essenciais da sociedade.
Uma pequena observação se faz necessária quanto a uma das peculiaridades enumeradas acima, que diz conter a Constituição normas de cunho programático. É que, na atualidade, encontra-se sem força a tese de que a Constituição se dividiria em normas auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis. Reconhece-se eficácia a todas as normas constitucionais, ainda que tão somente a eficácia negativa. Esse assunto será mais bem abordado adiante.
Apesar das críticas que são direcionadas tanto à teoria da Interpretação Tradicional quanto às teorias da Moderna Interpretação Constitucional, no sentido de que nenhum esforço hermenêutico será capaz de chegar a uma "verdade absoluta" sobre o conteúdo das normas, fato é que a tese da igualdade com particularidades, capitaneada por Konrad Hesse, vem ganhando cada vez mais força e adeptos, inclusive no Brasil, de forma que seus princípios são sempre relembrados pela doutrina e jurisprudência pátrias que tratam de temas constitucionais. É justamente nesta corrente que se deitam as raízes do que muitos chamam de moderna hermenêutica constitucional, sobre os quais se discorrerá a seguir.
2. Os princípios da Moderna Hermenêutica Constitucional
Os princípios de interpretação constitucional defendidos pela corrente que vê a Hermenêutica Constitucional como espécie da Hermenêutica Geral, originalmente expostos por Hesse e sobre os quais discorrem, dentre outros, Alexandre de Moraes, J. J. Gomes Canotilho e Inocêncio Mártires Coelho, são: 1) a Unidade da Constituição; 2) a Concordância prática (ou Harmonização); 3) a Exatidão Funcional (ou Justeza, ou Correção Funcional, ou Conformidade Funcional); 4) o Efeito Integrador (ou Eficácia Integradora); 5) a Força Normativa da Constituição; 6) a Máxima Efetividade e 7) a Interpretação Conforme.
Cabe tecer breves considerações sobre cada um destes princípios, lembrando sempre que a aplicação dos mesmos não deve, jamais, ser feita de forma isolada, pois eles se completam, permitindo que o intérprete tenha uma melhor compreensão do texto constitucional.
2.1 O princípio da Unidade da Constituição
Este é talvez o mais relevante dos princípios da moderna hermenêutica constitucional. Isso porque esse princípio decorre diretamente do postulado do legislador racional, que proclama que a obra do legislador – e, portanto, do legislador constituinte – é uma obra perfeita, coerente, sem lacunas. Esse postulado – e porque não dizer ficção, já que os legisladores são homens, e, portanto, falíveis – cria a figura de um legislador ideal: singular, justo, consciente, coerente, preciso e operativo. Sua obra, assim como ele, não comporta lacunas, contradições ou redundâncias, e é capaz de, ela mesma, oferecer soluções para os problemas decorrentes de sua interpretação, soluções aquelas advindas do interior do próprio sistema.
Assim, a Constituição é capaz de estender seus preceitos a todas as relações sociais, regulando-as de forma coerente (já que não há conflitos reais em suas normas). Da mesma forma, não há normas sobrando na Constituição, devendo o intérprete delimitar o âmbito de incidência de cada uma, harmonizando-as, ao invés de desconsiderar qualquer uma delas.
O que se expôs acima é exatamente o conteúdo do princípio da unidade da constituição. Esse princípio predica que a Lei Magna deve ser interpretada como um todo interconectado, preservando-se os valores e decisões fundamentais nela expressos. Dentre estes valores pode-se apontar, principalmente, aqueles elencados nos seus artigos 1º a 4º, que enunciam os fundamentos e os objetivos da República, no âmbito interno, bem como os princípios norteadores de sua atuação no âmbito internacional.
Não permite este princípio, por exemplo, que se faça uma interpretação do Capítulo constitucional relativo ao Sistema Tributário Nacional de forma desvinculada dos Títulos relativos aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais ou à ordem econômica e financeira ou social, por exemplo. Todas as normas contidas nesses Títulos têm a mesma importância e se completam para revelar ao intérprete o que pretenderam os representantes do povo, reunidos em Assembléia Constituinte, ao fundarem a Republica Federativa do Brasil. Reafirma-se, assim, a lição do jusfilósofo alemão Rudolf Stammler, que, há décadas, já afirmava que quem aplica um artigo do Código, aplica o Código todo.
2.2 O princípio da Concordância Prática (Harmonização)
Nas palavras de Alexandre de Moraes (2009), esse princípio exige "a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros".
Como se vê, a aplicação deste princípio pressupõe um conflito entre bens protegidos pela Constituição, de modo que, por terem todos a mesma dignidade constitucional (decorrente da unidade da Constituição), devem receber o mesmo grau de proteção, sem que um aniquile ou prevaleça sobre os demais.
Contudo, como nos lembra o professor Inocêncio Mártires Coelho, deve-se alertar a conciliação proposta por este princípio é puramente formal ou principiológica, pois numa demanda real um só dos contendores terá acolhida, total ou parcial, de seu pedido. Se, por exemplo, estiver em jogo, de um lado, o direito da Fazenda cobrar uma determinada exação de imediato, por uma situação de necessidade, e de outro o direito do contribuinte ser tributado conforme sua capacidade contributiva, ausente naquele momento, e o juiz considerar indevida a tributação naquela circunstância, a Fazenda sucumbirá em sua pretensão, naquele caso concreto. Porém, o direito da Fazenda de tributar não restará aniquilado, haja vista que ela poderá exercê-lo normalmente numa outra ocasião, ou na mesma ocasião, em face de contribuintes diversos que demonstrem possuir capacidade contributiva. Em suma, o direito afastado no caso concreto continuará encontrando proteção no texto constitucional.
2.3 O princípio da Exatidão Funcional (Justeza/Conformidade Funcional)
Esse princípio determina que a interpretação da Constituição não pode ser feita de modo a subverter, alterar ou mesmo perturbar o esquema de organização e repartição das funções/competências entre os poderes constituídos. Decorre diretamente do princípio da unidade da Constituição (pois as normas da Constituição se interligam para indicar ao intérprete qual a função/competência de cada ente/instituição/poder) e do próprio princípio da separação dos poderes, enunciado no artigo 2º da Carta Magna.
Embora não seja de aplicação obrigatória (como, aliás, nenhum dos outros princípios interpretativos o é, por não possuírem força normativa), a observância deste princípio demonstra, por parte dos agentes políticos, nítido respeito às decisões políticas tomadas pela Assembléia Constituinte, em nome do povo, e sacramentadas na Constituição. A observância deste princípio preserva, em suma, a própria Constituição, a República e o Estado Democrático de Direito.
No campo tributário, adquire tal princípio especial relevância, pois não é raro observarmos o Legislativo, com suas emendas, o Executivo, com seus decretos e o Judiciário com suas súmulas tentando subverter a organização tributária posta pelo constituinte originário no texto constitucional, como que chamando para si o papel de intérprete oficial da Carta Magna. Ao assim procederem, tais poderes também extrapolam as funções que lhe foram atribuídas, pois é comum o Legislativo se atribuir o papel de constituinte; o Executivo se atribuir o papel de legislador; e o Judiciário assumir ambos os papéis, numa Babel de funções que só será eliminada quando cada um dos poderes reconhecer que a decisão fundamental popular não pode, sob justificativa alguma e em nenhuma circunstância, ser desrespeitada ou amesquinhada.
2.4 O princípio do Efeito Integrador (Eficácia Integradora)
Enuncia este princípio que toda interpretação constitucional deve procurar solucionar os problemas jurídico-constitucionais com base em critérios que favoreçam a integração social e a unidade política, pois o sistema jurídico só se torna viável num Estado em que prevaleça a coesão sociopolítica, e a Constituição busca justamente promover essa coesão.
Mais uma vez buscam-se subsídios na lição do professor Inocêncio Mártires Coelho (2010, p. 178) que, ancorado na doutrina de Konrad Hesse, pondera:
Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade constitucional, nem por isso é dado aos intérpretes/aplicadores da Constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar, a qualquer custo, esse objetivo, até porque, à partida, a Lei Fundamental se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados superiores – como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo –, que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua realização.
Trazendo a aplicação do princípio para o campo tributário, pode-se dizer que a interpretação constitucional da repartição das competências tributárias deve ser feita de forma cautelosa e restritiva, respeitando-se a decisão tomada pelo constituinte originário ao distribuir o poder de tributar entre os entes federados, evitando-se interpretações que favoreçam disputas arrecadatórias e ameacem a harmonia sociopolítica que deve existir num Estado Federado. Da mesma forma, devem ser priorizadas interpretações que tornem efetivos (ou no mínimo possíveis) os objetivos elencados no artigo 3º da Constituição, e que permitam garantir, através da arrecadação e distribuição dos tributos, o desenvolvimento nacional, a construção de uma sociedade justa, a promoção do bem coletivo, a (sic) erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. Só então se poderá falar, com um mínimo de coerência e substância, em integração social e unidade política de nosso país.
2.5 O princípio da Força Normativa da Constituição
Este princípio, embora estudado, por parte da doutrina, separadamente do princípio da máxima efetividade, com este se encontra intimamente ligado. Ambos têm seu fundamento na ideia de que as normas constitucionais, como qualquer outra espécie de norma jurídica, precisam de um mínimo de eficácia, sob pena de não adquirirem vigência.
Importante ressaltar, aqui, que cada vez mais perde força a corrente que, tendo por base a doutrina americana, dividia as normas constitucionais, quanto à aplicabilidade, em normas auto-aplicáveis (dotadas de plena eficácia jurídica) e normas não auto-aplicáveis, cuja aplicabilidade dependeria de regulamentação por lei ordinária.
Na atualidade, a doutrina, capitaneada por José Afonso da Silva, e a jurisprudência majoritárias entendem que todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia, ainda que de eficácia negativa, que impede o Poder Público de dispor contrariamente ao que elas enunciam, sob pena de inconstitucionalidade. Com isso, resta cada vez menos espaço para a tese que sustenta que as normas ditas programáticas não são de observância obrigatória enquanto não houver a atuação do legislador infraconstitucional. É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação de Gomes Canotilho1, ao dizer que "... marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da morte das normas constitucionais programáticas.".
No campo tributário, inegável a importância desse princípio hermenêutico, principalmente no que diz respeito à interpretação do chamado "Estatuto do Contribuinte" e das limitações constitucionais do poder de tributar. Muito embora estas sejam consideradas garantias individuais e, portanto, tenham aplicação imediata por expresso mandamento constitucional (art. 5º, § 1º da Carta Magna), a aplicação desse princípio espanca qualquer discussão a respeito.
2.6 O princípio da Máxima Efetividade da Constituição
Como restou explicitado acima, esse princípio está diretamente interligado ao princípio da força normativa. Isso porque buscar efetividade nas normas constitucionais pressupõe admiti-las como sendo dotadas de força normativa (como, aliás, todas as normas jurídicas). Esse princípio funcionaria, assim, como um "potencializador" do anterior. Uma vez reconhecido que as normas constitucionais são dotadas de normatividade (ainda que mínima), cumpre ao intérprete expandir e densificar ao máximo essa normatividade, especialmente se a norma interpretada disser respeito a direitos e garantias fundamentais.
Num caso concreto, contudo, a potencialização de uma garantia do contribuinte pode acarretar, na mesma medida, na constrição de um direito da Fazenda, por exemplo. Ocorre que, como a Constituição foi erigida, principalmente, como instrumento orientador e limitador da atuação do Estado (tanto que o poder pertence ao povo – artigo 1º, parágrafo único da Lei Maior) e de promoção dos indivíduos (v.g. artigos 1º a 4º da Constituição, que enunciam os fundamentos e objetivos da República, e que em sua quase integralidade estabelecem normas que favorecem as pessoas naturais), inegável que interpretação constitucional deve sempre priorizar os cidadãos (e o contribuinte). Afinal, interpretações constitucionais que desconsideram direitos e garantias individuais sob a justificativa do "interesse público" nada mais fazem que lesar o próprio interesse público, já que este, em sua essência, nada mais é do que o conjunto dos interesses que os indivíduos têm quando considerados na qualidade de membros da sociedade.
Afinal, o Judiciário ainda é tido como a última esperança de milhares de cidadãos que vêem seus direitos constitucionais serem lesados diariamente, não raro pelo próprio legislativo que deveria agir, ao menos em teoria, em nome destes mesmos cidadãos. Mas seria alguém capaz de negar que, na atualidade, especialmente quando são discutidos assuntos técnicos e complexos (como boa parte dos assuntos tributários), a "maioria parlamentar" que aprova as leis é, na verdade, uma minoria intelectual com forte influência e poder políticos, capaz de persuadir os demais parlamentares leigos? Esse fenômeno foi percebido por Donald P. Kommers2, quando afirmou que "a democracia não é mais representativa, pois a maioria parlamentar pode legislar de forma tão arbitrária quanto a minoria. Ela se tornou uma democracia constitucional, na qual a atuação das cortes constitucionais é de suma relevância para garantir as minorias" (KOMMERS apud BALEEIRO, 2005, p. 37). Na mesma linha, Ronald Dworkin3 leciona:
A teoria constitucional na qual nosso governo se apoia não é uma simples teoria majoritária. A Constituição e, particularmente, os direitos fundamentais são feitos para proteger cidadãos individuais e grupos contra certas decisões que a maioria dos cidadãos pode querer tomar, mesmo quando essa maioria age em nome daquilo que é considerado o geral ou o interesse comum (DWORKIN apud BALEEIRO, 2005, p. 37).
2.7 O princípio da Interpretação Conforme a Constituição
Mais do que um princípio, cuida-se aqui, nas palavras de Inocêncio Mártires Coelho (2010, p. 179-180), de "instrumento situado no âmbito do controle de constitucionalidade e não apenas uma simples regra de interpretação", e "uma diretriz de prudência política ou, se quisermos, de política constitucional".
Esse princípio/instrumento deve ser utilizado quando uma norma apresentar um "espaço de decisão", comportando diversas interpretações, umas compatíveis com a Constituição e outras não. Frente a esta situação, o intérprete deve escolher o sentido da norma que melhor se compatibilize com o padrão constitucional, com seus princípios e objetivos e com os direitos e garantias fundamentais.
De toda forma, esse princípio/instrumento hermenêutico não deve ser utilizado a fim de gerar interpretação contrária a texto expresso de lei, ou quando da norma não puder ser extraída nenhuma interpretação em conformidade com a Constituição. Isso significaria permitir que o Judiciário atuasse como legislador positivo, o que é vedado, como visto, por outro princípio hermenêutico, qual seja, o da Exatidão Funcional, que deve ser aplicado simultaneamente ao da Interpretação Conforme.
Esse princípio tem ampla aplicabilidade em inúmeras situações que envolvem matéria tributária, especialmente quando o intérprete e o legislador, desavisados, buscam dar a lei interpretação que não se compadece com a Constituição. Algumas dessas situações serão analisadas ao longo desse trabalho, logo após a exposição dos principais métodos de interpretação apresentados pela moderna hermenêutica constitucional.