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Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado).

Repensando o modelo de processo

17/02/2011 às 15:13
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Deve haver um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência.

Na perspectiva do constitucionalismo moderno não há dúvida de que a missão do Poder Judiciário, através de seus juízes, é atuar de modo a evitar lesão ou ameaça a direitos (CR, art. 5º, XXXV). Através do sistema de checks and balances (freios e contrapesos) consagrado – e não criado, vale lembrar – a partir da idéias de Montesquieu, sabe-se que atuação do Judiciário deverá estar legitimada na autorização que lhe concede o Legislador, e tudo na perspectiva constitucional.

Eis aí ponto de reflexão onde está radicada a "tese" que aqui será defendida.

Projetado o controle do Poder através da dinâmica da tripartição para o ambiente do processo jurisdicional, tenho para mim que o sistema de enjuizamento [01] constitucionalmente mais legítimo será aquele em que, para a formação do pronunciamento definitivo do Poder Judiciário, o procedimento se desenvolva perante juízes (pessoas físicas) distintos. É dizer: deve haver um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência. Este sistema de enjuizamento – que em sua essência deve prevalecer tanto no processo civil, quanto no penal – creio possa ser denominado de sistema de enjuizamento escalonado ou procedimento judicial funcionalmente escalonado.

Através de um sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado) o resultado da atividade jurisdicional (sentença) seria precedida por etapas nas quais seria possível um maior grau de imparcialidade funcional do juiz – já que impossível alcançar a imparcialidade subjetiva –, legitimando a jurisdição (Poder) diante do devido processo legal (Garantia).

Nos sistemas de enjuizamento que conhecemos, o desenvolvimento do processo rumo à formação do pronunciamento de mérito fica a cargo e sob o "governo" de um único juiz – pessoa física – que exerce sozinho toda a magnitude do Poder que a Constituição confere ao Judiciário. É claro que o sistema recursal, em certa medida, acaba viabilizando um procedimento escalonado, já que o trânsito em julgado ocorrerá, via de regra, após o curso do processo por dois graus de jurisdição. Mas o fato é que a etapa mais importante do procedimento voltado à formação da sentença ocorre perante o mesmo e único juiz, cujo sistema processual lhe outorga o enorme Poder de deferir a tutela de urgência, de dirigir o procedimento probatório – inclusive com amplos poderes inquisitivos – e ao final, e após natural e inegável abalo subjetivo de sua imparcialidade, ainda terá o Poder de sentenciar sobre o mérito.

Note-se que o sistema de freios e contrapesos surge na teoria política exatamente como técnica de limitação do poder até então concentrado nas mãos daquele que, grosso modo, executava, legislava e julgava, à guisa de um ser político onipotente cujo "governo" necessariamente arbitrário – para o bem ou para o mal, mas indiscutivelmente arbitrário – regia a vida dos demais.

Nós os processualista não nos demos conta de que um sistema no qual é permitido ao mesmo juiz (pessoa física) i) conceder tutela de urgência, ii) dirigir o procedimento probatório inquisitivamente e ao final iii) pronuncia-se sobre o mérito, evidentemente é um sistema perverso que viabiliza a figura de um super juiz autorizado a decretar um ato de poder (sentença) na exata medida de seu arbítrio. Em outras palavras, o juiz "governa" o cenário processual absolutamente sozinho, e ainda que seus atos sejam impugnáveis através de recurso, a verdade é que a sentença decretada resultará de sua exclusiva "presidência" do processo. [02]

Importante destacar que na seara do processo penal o anseio da doutrina é que cada vez mais se formem sistemas processuais fundados no modelo acusatório, mesclando (modelo misto), ou mesmo deixando de lado, o modelo inquisitivo que por séculos vigorou e ainda dele se tem registros em alguns países da América Latina.

Recentemente, Ada Pellegrini Grinover foi categórica em reconhecer que no processo penal "a manutenção do juiz nas diversas fases do processo pode contaminar sua imparcialidade", tal como acontece, por exemplo, no Brasil, Honduras, México, Paraguai, Uruguai e Venezuela, pois nesses países "o juiz das investigações preliminares e do recebimento da acusação é o mesmo que julga a causa". E por isso, prossegue afirmando que "é forçoso reconhecer que nem sempre a estrutura do processo penal é consentânea com a imparcialidade." [03]

E se no processo penal a doutrina reconhece essa distorção, não há qualquer razão de ordem constitucional, jurídica ou política para que essa mesma lógica de raciocínio seja afastada do processo civil. Afinal, o procedimento probatório nada mais é do que uma etapa procedimental de incidência no processo jurisdicional.

Nesse panorama torna-se imperioso que o sistema de enjuizamento seja estruturado a partir de dois valores constitucionais fundamentais: a jurisdição (Poder) e o devido processo (Garantia). A prevalência de um desses valores sobre o outro acarreta desequilíbrio democrático e faz com que o produto da atividade desenvolvida pelo Poder Judiciário careça de legitimidade constitucional.

É possível sintetizar a idéia aqui exposta dessa maneira: o juiz da urgência não pode ser o mesmo da sentença; ou, ainda, o juiz da instrução e/ou da prova de ofício não poderá ser o mesmo da resolução do mérito.

Essa dinâmica é necessária para que não se viole a imparcialidade decorrente da garantia do devido processo legal. Não se nega que é constitucionalmente importante a atuação do juiz de modo a fazer valer o seu poder, viabilizando que o Poder Judiciário julgue "bem" e adequadamente, de modo a operar a exata resolução do litígio. É imperioso, todavia, que se alcance esse resultado garantindo ao jurisdicionado todas as derivações do devido processo legal, tal como previsto constitucionalmente. E a imparcialidade é um desses imperativos.

Se nossa cultura processual deixa a sentença a cargo do mesmo juiz que dirigiu o procedimento probatório, e essa dinâmica passou para a história como correta, é mister que se tenha presente que as Constituições da atualidade garantem ao individuo e à sociedade o direito fundamental à observância do due process of law em toda a sua dimensão.

Dessa maneira, é legítimo sustentar que o sistema de enjuizamento mais adequado ao modelo constitucional de processo da atualidade deva ser aquele onde as funções relevantes do juiz no curso do procedimento sejam compartilhadas entre mais de um juiz pessoa física. A missão de bem julgar é do Poder Judiciário e se faz concreta através de seus juízes. Mas não há qualquer regra constitucional que imponha deva ser o mesmo juiz a autuar em todas as etapas do procedimento. Ao contrário, se as constituições e os pactos internacionais estabelecem como valor fundamental a garantia do devido processo, onde o julgamento deva ser proferido por um juiz (pessoa física) imparcial, não há nada que impeça que a providência de urgência, a direção do procedimento probatório e, por fim, a prolação da sentença definitiva seja gerida por juízes diferentes, de modo a que se garanta que Poder Judiciário atinja seu objetivo principal (sentença de mérito) da maneira mais adequada às garantias constitucionais estabelecidas para o processo.

Em síntese, é o transporte do checks and balances para o ambiente do processo jurisdicional, para que o poder dos representantes do Poder Judiciário seja diluído no curso do procedimento. Evita-se, como isso, a figura do juiz onipotente e dos riscos que invariavelmente o respectivo acúmulo de poder possa trazer ao jurisdicionado. Relativiza-se, portanto, o arbítrio judicial.

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Creio seja possível nomear um sistema processual dessa natureza de sistema de enjuizamento escalonado ou, ainda, procedimento judicial funcionalmente escalonado. Aliás, o nome que se queira dar ao fenômeno processual assim concebido é pouco relevante. Sugiro essas denominações apenas como ponto de partida para reflexões mais precisas e aprofundadas.

E como seria seu funcionamento?

Simples. Divide-se o procedimento judicial voltado à formação da sentença de mérito de modo a que as funções do juiz (pessoa física) sejam diluídas no respectivo desenvolvimento.

Haveria a atuação de juízes diferentes para cada uma das mais relevantes etapas procedimentais, ou seja, um juiz para a urgência, um juiz para o procedimento probatório, e, finalmente, um juiz para o decreto da sentença definitiva. Nesse modelo, os juízes das etapas precedentes ao momento do julgamento de mérito poderiam exercer na plenitude toda a dimensão de seu poder (jurisdição) sem que lhes fosse imputado o vício da imparcialidade. E isso já que outro seria o juiz responsável pela sentença de mérito, estando com seu espírito livre das impressões subjetivas que as fases anteriores de urgência ou de instrução acarretam à condição humana.

Raciocinemos a partir de um exemplo.

Iniciado o processo onde o demandante pede uma medida de urgência, com base nas regras prévias de competência a causa ficaria afeta ao um determinado juiz da urgência e também ao juiz responsável para a prolação da sentença de mérito. O juiz da urgência examinaria esta pretensão deferindo-a ou indeferindo-a e, na seqüência, remeteria os autos ao juiz da sentença. Havendo necessidade de ser iniciado o procedimento probatório para a confirmação de fatos controvertidos, então o juiz da sentença remeteria os autos ao juiz da instrução, que conduziria a etapa instrutória com imediação e, se necessário, ainda poderia determinar a prova de ofício. Encerrado o procedimento probatório, os autos retornariam ao juiz da sentença da sentença que, de forma absolutamente imparcial, pois não presidiu as etapas anteriores, julgaria o mérito da causa resolvendo o litígio, aí sim, da forma mais justa possível. Tenho para mim que esse modelo inauguraria o verdadeiro processo justo reclamado pela doutrina. Todas essas etapas, obviamente, também controladas através de recurso.

Creio, ainda, que haveria um aumento da produtividade dos juízes e isso conduziria também a concretização do princípio da razoável duração do processo e da celeridade, pois cada um dos juízes responsáveis pelas respectivas etapas ficaria encarregado de concentrar suas energias na conclusão da fase que lhe compete.

Penso, por fim, que não seria o caso de se objetar que "a escassez do número de juízes inviabilizaria esse modelo de processo". Basta reorganizar suas competências estabelecendo-as na perspectiva de um procedimento funcionalmente escalonado, aproveitando-se os juízes que já se dispõem.

E, em definitivo, essa reengenharia no modelo processual organizado com base num procedimento funcionalmente escalonado seria possível através do redimensionamento das competências dos órgãos judiciais. No caso do Brasil, isso seria permitido, inclusive através da competência que a Constituição da República confere ao Estado-federado para legislar sobre procedimento e organização judiciária (CR, art. 24, XI).


Notas

  1. Enjuizamento e não ajuizamento, que em português tem significado distinto do pretendido no texto. Ajuizamento para nós tem significado de propositura da ação; enjuizamento, por sua vez, aqui é utilizado em referência à dinâmica de desenvolvimento do processo até sua conclusão. Será inquisitivo, o processo que se desenvolve sob a direção inflexível do juiz. Dispositivo, quando em seu desenvolvimento há destaque para a atuação e iniciativa dispositiva da parte, ou seja, a parte arca com o ônus de sua eventual falta de diligência.
  2. O resultado do que se propõem pode ser assim sintetizado: o juiz da urgência NÃO pode ser o mesmo da sentença; ou, ainda, o juiz da instrução NÃO pode ser o mesmo da resolução. Admitir-se o contrário é ultra valorizar a jurisdição (poder) em detrimento do devido processo (garantia) de modo a tratar a imparcialidade judicial como mera garantia formal ao invés de realidade a ser concretizada. E, isso, ainda que estejamos acostumados com o sistema de enjuizamento no qual todas essas inegáveis representações de poder (urgência, instrução e resolução) estejam concentradas nas mãos de um mesmo juiz até a prolação da sentença de mérito.
  3. Todos os trechos citados entre aspas podem ser conferidos em: ADA PELLEGRINI GRINOVER, "Os poderes do juiz penal na América Latina", na obra coletiva Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – Estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier (coord. JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA e outros), São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2008, em especial p. 177.
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Sobre o autor
Glauco Gumerato Ramos

Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado).: Repensando o modelo de processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2787, 17 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18514. Acesso em: 22 nov. 2024.

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