INTRODUÇÃO
Durante a década de 90, por enfrentar uma séria crise econômica, o Poder Público se viu obrigado a encontrar meios para reduzir os gastos públicos, sem, contudo, deixar a população à mercê dos serviços sociais fundamentais que lhes são constitucionalmente assegurados, como saúde, educação e assistência social.
Nessa feita, com o escopo de se desincumbir da obrigação constitucional de prestar diretamente tais serviços à população, e diminuir o dispêndio de receitas, o Poder Público, a partir da reforma constitucional operada pela Emenda Constitucional n°19/98, e pela regulamentação por intermédio de leis ordinárias, engendrou meios para transmitir sua incumbência às entidades privadas sem fins lucrativos, denominadas genericamente de órgãos do "terceiro setor". Deste modo, legitimou-se a delegação para referidas entidades, da obrigação estatal de prestar serviços sociais, mediante o recebimento de uma série de benefícios e incentivos por parte do Poder Público.
Uma das principais medidas utilizadas pelo Poder Público para transferir a execução de serviços públicos a entidades privadas é o contrato de gestão, instituído pela Lei n°9.637/98, que visa a "instituir parceria entre o poder público e uma organização não governamental qualificada pelo poder público, sob certas condições, para prestar atividade de interesse público mediante variadas formas de fomento pelo Estado", conforme ensina Maria Sylvia Zanella DI PIETRO. [01]
O contrato de gestão, ora em comento, é celebrado entre o Poder Público e as organizações sociais, entidades privadas sem fins lucrativos cuja qualificação lhes é atribuída por ato estatal, nos termos do disposto na referida Lei.
Uma vez celebrado o contrato de gestão, as organizações sociais assumem a incumbência de prestar serviços de interesse social nas áreas do ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde [02], em substituição à atuação estatal. Além disso, referidas entidades possuem ilimitada autonomia gerencial, administrativa e financeira na gestão dos recursos e bens públicos recebidos para a execução do contrato, não obstante a Lei estabeleça o dever de prestação de contas e sujeição ao poder de fiscalização estatal.
Por conta dos benefícios considerados excessivos e atípicos concedidos às organizações sociais por intermédio do contrato de gestão, tem-se discutido a constitucionalidade de diversas disposições da Lei n°9.637/98, isso porque, conforme defende grande número de juristas, as vantagens auferidas pelas entidades privadas através do mencionado contrato e a liberalidade na utilização dos recursos auferidos contrariam frontalmente princípios da Administração Pública como a impessoalidade, moralidade e eficiência, princípios esses cuja observância não pode ser afastada, haja vista, principalmente, a utilização de receitas e bens públicos na consecução dos serviços.
Afora a discussão doutrinária sobre o tema, tramita perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade onde se busca o reconhecimento da inaplicabilidade de vários dispositivos da Lei em análise.
Em face disso, em complemento aos estudos já desenvolvidos sobre o assunto ora exposto, a presente pesquisa analisa a constitucionalidade da autonomia gerencial, administrativa e financeira e demais benefícios concedidos às organizações sociais pelo Poder Público, por meio do contrato de gestão estabelecido pela lei n°9.637/98, à luz dos princípios da Administração Pública, a fim de se estabelecer novos apontamentos sobre a matéria, bem como corroborar as alegações aduzidas por juristas da área do Direito Administrativo.
Partindo-se de tais premissas, a presente pesquisa disserta acerca da crise de Estado vivenciada pelo país na década de 90, com especial destaque aos fundamentos que embasaram a promulgação da Lei n°9.637/98. Também aborda de forma mais detalhada as organizações sociais e o contrato de gestão, e a divergência doutrinária com relação ao regime jurídico que lhes sejam aplicáveis.
Adentrando com mais profundidade no problema proposto, o trabalho aborda as teses dos principais juristas a respeito da legalidade (ou ilegalidade) da delegação dos serviços sociais às organizações sociais por intermédio do contrato de gestão, da exigibilidade de prévio processo licitatório para a qualificação de entidades como organizações sociais, para a celebração de contratos de gestão e para a contratação com particulares, na execução do contrato de gestão pelas organizações sociais, bem como o controle exercido pelo Poder Público sobre a execução dos contratos de gestão.
Na sequência, a pesquisa trata de temas referentes à execução do contrato de gestão, especialmente a discussão a respeito da legalidade ou não da cessão de pessoal do quadro de servidores estatais para a prestação de serviços junto às organizações sociais, a alegada inefetividade e altos custos dos contratos de gestão, e a transformação de fundações públicas em organizações sociais. Por fim, a pesquisa apresenta um breve resumo das ponderações engendradas na Ação Direta de Inconstitucionalidade n°1.923, na qual se busca o reconhecimento da inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei n°9.637/98.
Em suma, a presente pesquisa objetiva a confrontação de pensamentos da doutrina especializada, a fim de traçar o entendimento que possa ser considerado de maior razoabilidade sobre o assunto em cotejo, para assim servir de parâmetro para a legislação que vem sendo produzida sobre a matéria nas esferas estadual e municipal.
1 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E CONTRATO DE GESTÃO – FUNDAMENTOS LEGAIS E DEFINIÇÃO
1.1 O TERCEIRO SETOR
A partir da década de 90, a sociedade tomou uma nova dimensão, redefinindo os limites dos setores da economia. Aos dois setores tradicionalmente existentes (setor público e setor privado), acresceu-se uma nova esfera econômica, o denominado "terceiro setor".
A partir dessa nova divisão, ocupam o primeiro setor as entidades regidas pelo regime jurídico de direito público, a saber, o Governo, nos âmbitos municipal, estadual e federal, e as entidades de administração públicas indiretas. O segundo setor, por seu turno, compreende as pessoas jurídicas de direito privado, que atuam no mercado com finalidade de obtenção de lucro. Já o terceiro setor "é visto como conjugação entre as finalidades do Primeiro Setor (Estado) e organização do Segundo Setor (mercado), ou seja, composto por entidades de natureza privada que objetivam interesses públicos e coletivos, a despeito de não integrarem a Administração Pública". [03]
Complementando a definição supra, FERRARI esclarece que o terceiro setor "é formado por fundações, associações e organizações (sociais e de interesse público), que não pertencem nem a administração direta, nem a administração indireta". [04]
Mister anotar que a Constituição Federal não se refere em nenhum momento ao terceiro setor, e, de acordo com VIOLIN, "nossa Constituição da República de 1988 utiliza vários termos ao se referir às entidades do "terceiro setor", como instituições sem fins lucrativos, instituições assistenciais, entidades beneficentes de assistência social, entidades filantrópicas, entidades sem fins lucrativos, entidades beneficentes, entidades de assistência social, escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, com finalidade não-lucrativa". [05]
Conforme estabelece Tarso Cabral VIOLIN, o terceiro setor ocupa o "espaço público não-estatal", [06] e engloba diversas espécies de entidades com finalidades públicas e sem fins lucrativos, as quais se individualizam, sobretudo, pela forma de constituição e área de atuação, sendo as espécies de maior destaque as organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs e as organizações sociais – OSs.
A presente pesquisa enfoca seus estudos nas organizações sociais, entidades cuja regulamentação encontra-se prevista na Lei n°9.637/98, e que, conforme explicitado na presente pesquisa, possuem uma série de características e prerrogativas inéditas no Ordenamento Jurídico Pátrio, o que, para alguns autores, contraria os princípios administrativos estabelecidos na Constituição Federal.
A fim de se compreender os motivos que deram suporte à promulgação da referida lei e à abertura da atuação do terceiro setor na prestação de serviços sociais, cumpre primeiramente analisar o momento de crise enfrentado pelo Brasil na época de sua elaboração, e, principalmente, tecer alguns comentários sobre a reforma empreendida pelo Poder Público.
1.2 A CRISE E REFORMA DO ESTADO NA DÉCADA DE 90
A partir de meados da década de 30, durante o governo do Presidente Getúlio Vargas, o Brasil adotou o sistema do Estado de Bem-Estar Social, marcado pela atuação notadamente paternalista do Poder Público. No referido sistema de governo, o Estado assumiu um "compromisso com os direitos sociais, a justiça distributiva e a cidadania", [07] cabendo-lhe garantir a prestação de serviços públicos e proteção à população de forma direta.
O Estado de Bem-Estar Social substituiu o anterior modelo de Estado mínimo liberal, no qual o Poder Público era caracterizado pela abstenção, de modo que exercia uma função meramente subsidiária com relação ao atendimento dos serviços sociais essenciais, definidos como aqueles "cuja realização gera utilidades ou comodidades que os particulares fruem direta e individualmente". [08]
No Estado Liberal, conforme menciona BAZILLI e MONTENEGRO, "não se falava na iniciativa estatal, salvo a relacionada exclusivamente com a manutenção de ordem e segurança", o que justifica sua denominação como "Estado mínimo". [09]
Desse modo, tendo-se em vista a função assumida pelo Poder Público em substituição à postura liberal, "o Estado de Bem-Estar traduziu o compromisso com os direitos sociais, a justiça distributiva e a cidadania". [10]
Conforme explica Tarso Cabral VIOLIN,
Com o aumento cada vez mais expressivo de uma classe proletária, consciente de que ‘não é livre quem não detém auto-suficiência material’, verificou-se a necessidade de uma reestruturação estatal, com uma atuação mais positiva do Estado, para proporcionar condições mínimas como educação, saúde, cultura e moradia, surgindo os direitos fundamentais sociais. [11]
Como consequência, o Poder Público "alargou fortemente a atuação da máquina pública, ao tomar para si todo o encargo de sustentar e impulsionar o País -, abrindo um processo de dependência da população ao Estado provedor de prestações que não estariam no rol de sua atuação exclusiva". [12]
Em outras palavras, contrariando as premissas do Estado Liberal, o Poder Público passou a assumir o encargo de oferecer os serviços sociais essenciais diretamente à população, fazendo-o por meio das receitas arrecadadas pelo Estado. Como aponta VIOLIN, o Estado passa a ser "obrigado constitucionalmente a intervir na ordem econômica social; prestador de serviços públicos para todos, e não apenas para os que tinham recursos materiais". [13]
A Constituição Federal de 1988 manteve essa postura paternalista do Estado, impondo-lhe o dever de prestar, diretamente, por meio de políticas sociais e econômicas, serviços essenciais à coletividade como educação, saúde, assistência social e cultura.
Contudo, com o passar do tempo, esse modelo de política adotado pelo Brasil acabou por tornar-se insustentável, tendo-se em vista a impraticabilidade do ônus assumido, sem que houvesse uma fonte de receita que garantisse o equilíbrio das finanças do Poder Público. Conforme assevera Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, "a Constituição Federal atribuiu competências ao poder público que ele não tem condições de cumprir a contento; faltam verbas nas áreas de saúde, educação, previdência social, moradia, transporte, segurança". [14]
Dessa forma, segundo José Anacleto Abduch SANTOS, "a manutenção deste sistema de prestação de serviços públicos esbarrou em um fator de ordem material e objetiva, qual seja, a capacidade contributiva dos particulares para sustentar o aparato estatal pelo regime de tributação". [15]
Consequentemente, os serviços sociais prestados pelo Poder Público não possuíam a qualidade e eficiência necessárias, o que vinha deixando a população ao desamparo de suas necessidades fundamentais. Além disso, a demanda era cada vez maior devido ao aumento do número da população, o que contribuía ainda mais para o problema da prestação deficiente dos serviços sociais.
Em face disso, o Governo passou a idealizar meios para reorganizar a Administração Pública, e para tanto, se fazia imprescindível a realização de uma reforma no modelo estatal vigente.
Assim, como esclarece Emerson GABARDO "no Brasil, assim como em vários outros países caracteristicamente interventores, observou-se nas duas últimas décadas do século XX um processo de reforma do Estado, com claro viés liberalizante, desestatizante e flexibilizador". [16]
Feita uma breve análise a respeito da crise de Estado em que se encontrava o Brasil em meados dos anos 90, passa-se a discorrer sobre a reforma empreendida pelo Estado a fim de sanar a situação, a qual, como será demonstrado, trará novos contornos à Administração Pública e abrirá vasto campo de atuação às entidades do terceiro setor.
1.3 PROGRAMA NACIONAL DE PUBLICIZAÇÃO – FUNDAMENTO POLÍTICO DA LEI N° 9.637/98
Em face da mencionada situação problemática enfrentada pelo Brasil nos anos 90, com o objetivo de garantir a prestação dos serviços fundamentais à sociedade, de forma eficiente e com qualidade, no ano de 1995, o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso idealizou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo extinto Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, sob o comando do Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira.
A reforma visava a implantar na Administração Federal "modelos e técnicas de gestão da Administração Gerencial" [17], combatendo o modelo de administração pública burocrática, hierarquizada e centralizada, despreocupada com resultados e objetivos. Conforme se extrai do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o que se buscava era "reorganizar as estruturas da administração com ênfase na qualidade e na produtividade do serviço público, para proporcionar ao cidadão a condição de cliente privilegiado dos serviços prestados pelo Estado". [18]
Dessa forma, "o ideal passa a residir na transformação do que se denomina de administração burocrática, considerada rígida e ineficiente, para uma administração pública gerencial tida como mais flexível e mais eficiente para a prestação dos serviços públicos". [19]
Ao dissertar sobre a reforma gerencial do Estado, Arnoldo WALD esclarece que "o Estado onipresente, que se desenvolveu no Brasil entre 1930 e 1990, deve ser substituído pelo Estado regulamentador, executor e fiscalizador dos serviços públicos essenciais, catalisador da produção e reformador das instituições". [20]
Conforme ensina FRANÇA, com a reforma do modelo de Estado "ocorreu a mudança da faceta estatal caracterizada pela prestação direta e universal das atividades consideradas essenciais para seu povo – em que se colocava como provedor e suporte de toda a sociedade – para o particular". [21]
Segundo opinião de Emerson GABARDO, "este padrão emergente de intervenção social, apoiado na ascensão da mentalidade pós-moderna, apresentou-se como um salto qualitativo em termos de estrutura e gestão, em comparação à proclamada ‘rigidez obsoleta’ do regime administrativo característico da burocracia". [22]
Dessa forma, o Governo idealizava a implantação de uma administração aberta, com a participação direta da sociedade, no lugar do modelo de administração burocrática, que, além de moroso, era responsável pelo dispêndio de altos custos, no mais das vezes desnecessários. Conforme esclarece Fernando Henrique CARDOSO, o Estado precisava abandonar seu papel assistencialista e paternalista, e transferir à sociedade a prestação dos serviços sociais, para assim garantir sua maior eficiência, com menor custo. [23]
Nessa esteira, VIOLIN esclarece que o modelo de política gerencial prega em seu discurso "a eficiência, o cidadão como ‘cliente’", bem como "o controle baseado no processo, com uma concentração nos resultados, o chamado controle a posteri". [24]
Com base em tais preceitos, pregava-se a implantação de uma política neoliberal, sob o fundamento de que "a crise do Estado sugere um ‘Estado mínimo’, contrário ao ‘Estado intervencionista’ ineficiente" [25]. Nas palavras de Eros Roberto GRAU, a reforma administrativa que então se introduzia no cenário nacional inspirava-se em uma "ideologia comprometida com o neoliberalismo e voltada à redução das dimensões do aparato estatal". [26]
Feitas essas breves ponderações sobre os fundamentos que embasaram a reforma administrativa, cumpre anotar que o plano de reforma do Estado deu azo ao processo denominado de publicização, que, segundo definição de Sílvio Luís Ferreira da ROCHA, consistia na transferência dos serviços não-exclusivos de atuação estatal, em especial os relacionados às áreas de saúde e educação, às entidades do terceiro setor. [27]
Essa transferência operou-se por meio de atividade de fomento do Poder Público em prol de entidades do terceiro setor, passando estas a prestar os serviços sociais anteriormente prestados pelo Estado. Segundo preleciona ROCHA, "o fomento teria a vantagem de não expandir a máquina estatal e, ao mesmo tempo, de revigorar o atuar dos particulares, incitando-os a desenvolver atividades em prol da coletividade". [28]
Com relação à publicização como prestação de serviços sociais por entidades do terceiro setor, mister esclarecer que tal preceito tem como base o princípio da subsidiariedade, o qual, segundo leciona VIOLIN, "quando aplicado no Direito Público, almeja que agrupamentos de ordem inferior exerçam funções que eles próprios podem desenvolver, ao invés da coletividade mais vasta e elevada, protegendo a autonomia da pessoa humana e limitando a intervenção de coletividades superiores (inclusive o Estado)". [29]
Destarte, em face dessa nova política adotada pelo Poder Público, ganha força a atuação do terceiro setor, que passa a receber recursos públicos para a prestação de serviços de interesse da coletividade, em substituição ao Estado.
Nesse passo, cumpre registrar que os serviços prestados pelas entidades do terceiro setor abrangidos pelo Programa Nacional de Publicização compreendem aqueles não privativos do Estado, de relevância pública, os quais, segundo entendimento de Sílvio Luís Ferreira da ROCHA, "correspondem ao grupo de atividades que o Estado exerce simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas, dada a relevância dessas atividades, via de regra relacionadas a direitos humanos fundamentais, como os de educação e da saúde". [30] Em complemento à definição supra, DI PIETRO anota que os serviços ora tratados são aqueles "que atendem a necessidades coletivas em áreas em que a atuação do Estado é essencial, mas que convivem com a iniciativa privada". [31]
Nesse mesmo sentido, Luiz Carlos Bresser PEREIRA esclarece que
Os serviços de relevância pública previstos na Constituição brasileira podem ser realizados tanto pelo Estado como pelo setor privado, não devem ser confundidos com os serviços públicos que só podem ser realizados pelo setor privado mediante concessão ou permissão, sempre através de licitação. [32]
Segundo FERRARI, o interesse público, a que se faz referência "é confundido com a ideia de bem comum, com a atuação voltada para diminuir as desigualdades sociais, com o consequente bem-estar da coletividade". [33]
De acordo com VIOLIN, os serviços não exclusivos, caracterizados como aqueles desempenhados pelas entidades do terceiro setor, "são os serviços que o Estado deve desempenhar, sob o regime de Direito público, sem impedir que a livre iniciativa também os exerça, independentemente de concessão ou permissão" [34]. De acordo com o referido autor, a Constituição Federal estabelece como serviços alheios à titularidade exclusiva do Estado os de saúde, educação, previdência social e assistência social [35].
Dessa forma, nota-se que o Poder Público passou a preconizar que o terceiro setor teria melhores condições de prestar os serviços públicos do que ele próprio, o que beneficiaria a população, usuária desses serviços. De acordo com VIOLIN, "o discurso de defesa deste novo setor público não-estatal ataca o Estado prestador de serviços, julgando-o como ineficiente, ‘burocrático’, e, enfim, um mal; e o ‘terceiro setor’ como o bem e a eficiência". [36]
Emerson GABARDO esclarece que segundo a ideia do princípio da subsidiariedade,
Se os indivíduos, nessa qualidade, podem prestar serviços de interesse coletivo, principalmente por meio de realizações mutualistas, não é eficiente que o Estado as mantenha sob sua responsabilidade. Assim é que o Estado passa a fomentar atividades de organismos não vinculados subjetivamente ao Estado. [37]
Nesse passo, cumpre anotar que um dos meios utilizados pelo Poder Público para operacionalizar seus objetivos com o Programa Nacional de Publicização foi a promulgação da Lei n°9.637/98 [38], a qual, conforme será aprofundado na presente pesquisa, prevê a qualificação de entidades privadas como organizações sociais, e a possibilidade de estas celebrarem contratos de gestão com o Estado.
Importante destacar que a Lei n°9.637/98 se restringe à atuação da Administração Pública no âmbito federal, e teve reduzida aplicabilidade até o momento, com a criação de poucas organizações sociais na esfera federal. No entanto, conforme anota PEREIRA, "além da lei federal, um grande número de estados e municípios definiu legalmente as organizações sociais", [39] sendo que o contrato de gestão entre organizações sociais e o Poder Público vem ganhando força nos estados e municípios do país, os quais têm criado leis nos moldes do modelo federal para a regulamentação de suas atividades.
Ocorre que, como bem ressalta DI PIETRO, o "ímpeto reformador" dos elaboradores da Lei n°9.637/98 acabou por fomentar "a idealização de institutos novos", bem como a "remodelação de institutos antigos". Além disso, o novo diploma legal acabou por acarretar "a falta de uniformidade de pensamento e orientação entre os próprios membros do governo". [40]
Ademais, a Lei n°9.637/98 possui inúmeras "brechas involuntárias", [41] trazendo em seu texto várias imprecisões, motivo pelo qual a doutrina especializada vem fomentando discussões e reflexões em torno de sua constitucionalidade, pois, alguns juristas, referida lei patenteia "inconstitucionalidades verdadeiramente aberrantes", como defende incisivamente Celso Antônio Bandeira de MELLO. [42]
Em face disso, incontroverso que a lei ora em comento carece de análises e discussões a respeito de suas possíveis incorreções, para assim se ajustar os erros existentes, bem como para se evitar a disseminação de eventuais equívocos nas legislações estaduais e municipais.
1.4 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
Como anteriormente mencionado, as organizações sociais são entidades regulamentadas pela Lei n°9.637/98, que assim estabelece em seu artigo 1°:
Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.
Em complemento à acepção legal, MODESTO define as organizações sociais como "pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, voltadas para atividades de relevante valor social, que independem de concessão ou permissão do Poder Público, criadas por iniciativa de particulares segundo modelo previsto em lei, reconhecidas, fiscalizadas e fomentadas pelo Estado". [43]
Segundo VIOLIN, "as organizações sociais não são, na verdade, um tipo de entidade pública não-estatal, mas uma qualidade dessas entidades, declarada pelo Estado". [44] Em complemento, ROCHA assevera que "o título de organização social é um atributo reconhecido pelo Poder Executivo, segundo um juízo discricionário da autoridade administrativa competente". [45]
Nessa mesma esteira, Celso Antônio Bandeira de MELLO conceitua organizações sociais como
Entidades privadas, qualificadas livremente pelo Ministro ou titular do órgão supervisor ou regulador da área da atividade correspondente ao seu objeto social e pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, desde que, não tendo fins lucrativos, suas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde (art. 1°) e a pessoa atenda a determinados requisitos formais óbvios e preencha alguns poucos requisitos substanciais, travando contrato de gestão com o Poder Público. [46]
Como bem acrescenta FERRARI, o escopo da Lei n°9.637/98, era de "instrumentalizar o movimento de publicização" objeto da Reforma do Aparelho do Estado, para assim resolver os problemas decorrentes do Estado Burocrático, que se pretendia extirpar. [47]
Cumpre acrescentar que é indispensável a ausência de finalidade lucrativa das entidades qualificadas como organizações sociais, "razão pela qual os seus excedentes terão de, forçosamente, ser reinvestidos em atividades sociais, vedada a distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido", [48] como estabelece expressamente a Lei n°9.637/98 (art. 2°, I, "b").
Com relação às atividades realizadas pelas organizações sociais, Marçal JUSTEN FILHO pondera que "sua atuação se destina a desempenhar funções que, em princípio, estão compreendidas no âmbito das atribuições administrativas", [49] sendo que, para o mesmo autor, as organizações sociais "são instrumentos de intervenção privada no domínio público, por assim dizer". [50]
A margem de atuação conferida pela Lei n°9.637/98 às entidades de direito privado gerou grande debate na doutrina especializada, afinal, referido diploma legal representa rompimento das regras que regulamentam a prestação de serviços sociais, em vários aspectos. A partir daí, os autores passaram a tecer grande número de críticas às organizações sociais, por entendê-las contrárias às normas constitucionais.
1.4.1 QUALIFICAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
Nos termos do disposto na Lei n°9.637/98, para a obtenção da qualificação de "organização social", as entidades privadas devem observar os requisitos estabelecidos no seu artigo 2°, a seguir transcrito:
Art. 2°. São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social:
I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:
a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;
b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;
c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;
d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;
e) composição e atribuições da diretoria;
f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;
g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto;
h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade;
i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados;
II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado
Afora os requisitos estabelecidos pelo inciso I do mencionado dispositivo legal, já abordados no item anterior, há de se registrar que um dos traços marcantes da constituição das organizações sociais é a discricionariedade do Poder Público na concessão do mencionado título às entidades que assim o requererem (art. 2°, II), sem exigir ao menos qualquer critério de demonstração de idoneidade para a área de atuação. A esse respeito, Juarez Freitas afirma que a Lei °9.637/98 proporciona uma "censurável abertura excessiva à discrição" [51] à concessão do título de organização social aos interessados.
Outrossim, em igual reprovação às regras de qualificação das organizações sociais, Eros Roberto GRAU assenta que
Atividades que vinham sendo desenvolvidas por entidades estatais nos setores do ensino, da pesquisa científica, do desenvolvimento tecnológico, da proteção e preservação do meio ambiente, da cultura e da saúde poderão ser transferidas graciosamente, com o pessoal e os bens móveis necessários ao seu desenvolvimento, a pessoas jurídicas da livre escolha das duas autoridades acima referidas (Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao objeto social da organização social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE). A inconstitucionalidade dessa escolha, independentemente de licitação, é flagrante. [52]
No entanto, não obstante a liberdade conferida pela Lei ao Poder Público na qualificação das entidades como organizações sociais, adverte MEIRELLES que como todo e qualquer ato administrativo, a concessão de qualificação de uma entidade como organização social imprescinde da devida motivação, a fim de que reste claramente demonstrado o interesse público que a fundamenta. [53]
Ademais, cumpre acrescentar que, conforme anota Sílvio Luís Ferreira da ROCHA, as atividades socialmente relevantes, enunciadas pelo artigo 1° da Lei n°9.637/98 representam rol exaustivo, de modo que mencionado diploma legal "proibiu a concessão do título de Organização Social a pessoa jurídica que exerça atividade socialmente relevante, mas não compreendida no rol descrito no art. 1°, caput, da Lei n°9.637/1998". [54]
Outro ponto que merece destaque é o disposto no art. 2°, I, "c" da Lei ora em comento, onde se estabelece que a organização social deve ser composta de um órgão de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria formados por membros representantes do Poder Público e de entidades da sociedade civil, além de membros eleitos, conforme disposição contida no artigo 3° da Lei das organizações sociais.
Tarso Cabral VIOLIN considera o modo de organização das organizações sociais como sendo um importante diferencial desta modalidade de entidade, haja vista que nenhuma outra espécie de entidade do terceiro setor, exige a presença de representantes do Poder Público em seu quadro constitutivo [55].
Ao discorrer acerca da justificativa da presença de membros representantes do Poder Público na composição do conselho de administração das organizações sociais, DI PIETRO, fazendo menção ao Plano Diretor da Reforma do Estado, esclarece que a intenção de tal medida é prevenir eventual privatização ou feudalização das organizações sociais. [56]
No que concerne às atribuições do Conselho de Administração, estabelece a comentada lei competir-lhe privativamente fixar o âmbito de atuação da entidade, aprovar sua proposta de contrato de gestão e a proposta de orçamento, bem como o seu regimento interno e regulamento próprio, designar e dispensar os membros da diretoria e fixar sua remuneração, aprovar e dispor sobre a alteração dos estatutos e a extinção da entidade, aprovar e encaminhar, ao órgão supervisor da execução do contrato de gestão, os relatórios gerenciais e de atividades da entidade, e fiscalizar o cumprimento das diretrizes e metas definidas. [57]
Traçadas as características principais das organizações sociais, há de se fazer breves apontamentos sobre o contrato de gestão, previsto pelos artigos 5° a 7° da Lei n°9.637/98, a partir do qual se fundamentam todas as atividades exercidas pelas organizações socais, bem como a sua vinculação ao Poder Público.
1.5 CONTRATOS DE GESTÃO
Antes de adentrar no assunto proposto, mister esclarecer que, além do contrato de gestão celebrado pelas organizações sociais com o Poder Público previsto na Lei n°9.637/98, a Constituição Federal passou a estabelecer, em seu artigo 37, parágrafo 8° (introduzido com a emenda constitucional n°19/98), o contrato de gestão celebrado entre a Administração Pública e seus respectivos órgãos [58].
A esse respeito, assevera FERRARI que
A expressão Contrato de Gestão é, no mínimo, infeliz, pois pode ser utilizada, em nosso sistema jurídico, para rotular instrumentos totalmente diferentes, ou seja: 1. para estabelecer parcerias entre órgãos e entidades da Administração direta e indireta e o próprio Poder Público; 2. para Administração Pública contratar com as chamadas Organizações Sociais, com vistas a realizar a gestão admitida de entidades privadas, em atividades de interesse público. [59]
Em que pese a interessante discussão acerca da adequação aos preceitos constitucionais do mencionado instrumento contratual, o qual permite a contratação do Poder Público com órgãos despersonalizados, bem como a "ampliação da esfera de liberdade de pessoas da Administração indireta por contrato", [60] dentre outras características contrárias ao ordenamento jurídico, há de se esclarecer que a presente pesquisa não abordará o tema, restringindo-se a tratar do contrato de gestão previsto pela Lei n°9.637/98.
Com relação aos contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as Organizações Sociais, VIOLIN leciona que
Qualificada a entidade como organização social, esta poderá firmar contrato de gestão com o Poder Público qualificador, de comum acordo, para a formação de parceria para fomento e execução de atividades de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde.
Para o cumprimento do contrato de gestão, poderão ser repassados à organização social recursos orçamentários e bens públicos. Estes bens públicos, segundo o art. 11, §3°, da Lei n°9.637/98, serão repassados à entidade qualificada por dispensa de licitação, mediante permissão de uso, conforme cláusula do contrato de gestão [61]
O autor acrescenta que além das prerrogativas enunciadas, "o Poder Executivo federal ainda poderá ceder servidores para as organizações sociais, com ônus para os cofres públicos". [62]
Mostrando-se contrário aos benefícios auferidos pelas organizações sociais no contrato de gestão, Celso Antônio Bandeira de MELLO observa que
Uma vez qualificada como ‘organização social’ e tendo travado contrato de gestão – que será ‘elaborado de comum acordo’ entre o Poder Público e a entidade privada e discriminará as respectivas atribuições, responsabilidades e obrigações (art. 6°) – a pessoa estará, nesta conformidade, apta a receber bens públicos em permissão de uso e sem licitação prévia (art. 12 §3°), não havendo restrição alguma a que se trate também de bens imóveis, ser beneficiária de recursos orçamentários (art. 12) e de servidores públicos que lhe serão cedidos a expensas do erário público (art. 14)! [63]
Como ressalta ROCHA, "o papel reservado ao contrato de gestão é o de substituir o sistema de controle baseado no princípio da legalidade e na supremacia do interesse público sobre o privado, pelo controle baseado no princípio da consensualidade, na cooperação, no qual as metas são negociadas e preestabelecidas pelas partes". [64]
Em outras palavras, o contrato de gestão estabelece metas a serem cumpridas pela entidade contratada, sendo, dessa forma, um instrumento baseado nos resultados propostos entre as partes contratantes.
Com relação à fiscalização do cumprimento dos termos do contrato de gestão, MELLO acrescenta que "caberá ao Poder Público fiscalizar o cumprimento do programa de trabalho proposto no contrato, com suas metas e prazos de execução, verificados segundo critérios objetivos de avaliação de desempenho, mediante indicadores de qualidade e produtividade (art. 16)". [65]
A Lei n°9.637/98 prevê em seu artigo 16 as medidas adotadas no caso de descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão, ocasião em que a entidade qualificada como organização social poderá ser desqualificada, após processo administrativo, com a responsabilização de seus dirigentes pelos danos ou prejuízos decorrentes de sua ação ou omissão. Além disso, conforme estabelece o parágrafo 2° do mencionado dispositivo legal, a desqualificação implicará também na reversão dos bens e valores concedidos pelo Estado à organização social.
Traçadas as linhas gerais sobre o contrato de gestão, é de se ressaltar que não obstante a estrita fiscalização e medidas punitivas previstas no diploma legal que o regulamenta, não se pode olvidar que a lei deixa grande margem de liberdade à atuação das organizações sociais, bem como lhes confere uma série de prerrogativas incomuns no ordenamento jurídico pátrio.
A esse respeito, ROCHA assinala que "o contrato de gestão atribui ao contratado grau maior de autonomia administrativa, financeira, bem como lhe assegura a regularidade das transferências financeiras previstas em contrapartida da obrigação, que o contratado assume, de cumprir metas expressivas de maior eficiência", [66] o que vem despertando indagações quanto à validade do diploma legal ora em debate.
1.6 REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE GESTÃO E DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
Ao se ponderar acerca do regime jurídico a que se submetem o contrato de gestão e as organizações sociais, observa-se que os juristas divergem substancialmente com relação ao tema, haja vista suas diversas peculiaridades, já apontadas, frente aos institutos jurídicos vigentes.
Destarte, conforme anteriormente exposto, as organizações sociais, muito embora sejam entidades de direito privado, têm por função a prestação de serviços públicos essenciais, e o fazem em substituição ao Poder Público, originariamente responsável por tais serviços. Além disso, há de se reiterar que o Conselho de Administração das organizações sociais é obrigatoriamente composto por membros da Administração Publica, o que certamente retira sua natureza eminentemente privada.
Outrossim, com relação aos contratos de gestão, não se pode olvidar que tais institutos possuem diversas características de grande peculiaridade, afinal, ao mesmo tempo em que concentram traços de natureza contratual, possuem atributos que lhe conferem a natureza de convênios ou outros institutos jurídicos, motivo pelo qual a doutrina vem atribuindo-lhes as mais diversas classificações, conforme se passará a expor.
1.6.1 REGIME JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
Traçando uma síntese das principais peculiaridades das organizações sociais, assim se pronuncia FREITAS:
Com efeito, o regime das organizações sociais desponta como atípico. Não atuam por delegação nos moldes de concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, tampouco podem almejar finalidade lucrativa. Logo, não executam serviços públicos nos moldes do art. 175 da Constituição Federal, mas recebem delegação (a "qualificação" do art. 2º da Lei 9.637/ 98). De outra parte, estão obrigadas a outorgar ampla publicidade de seus atos, comprometendo- se com o cidadão-cliente e podem receber recursos humanos públicos (com ônus para origem), assim como permissão de uso de bens públicos. Não integram a Administração Pública indireta e se prestam a absorver atividades desenvolvidas por entidades públicas extintas por lei específica. Ainda: representantes do Poder Público devem, sob pena de não-qualificação, participar do Conselho de Administração. [67]
Diante de tais apontamentos, o mesmo autor afirma, com ênfase na obrigatória participação de membros do Poder Público no seio das organizações sociais, que as mesmas ficam "manietadas", pois perdem a substância de direito público, e, ao mesmo tempo, não se veem aptas a operar sob as regras de direito privado. [68]
Em que pesem tais circunstâncias, MODESTO defende que as organizações sociais não possuem natureza jurídica de direito público, afinal,
As organizações sociais, no modelo proposto, não serão autarquias veladas, nem titularizarão qualquer espécie de prerrogativa de direito público. Não gozarão de prerrogativas processuais especiais ou prerrogativas de autoridade. Não estarão sujeitas a supervisão ou tutela da administração pública direta ou indireta, respondendo apenas pela execução e regular aplicação dos recursos e bens públicos vinculados ao acordo ou contrato de gestão que firmarem com o Poder Público. [69]
Dessa forma, inobstante as características peculiares de que se revestem as organizações sociais, na opinião do mencionado autor o que prepondera é o caráter contratual da relação havida entre estas e o Poder Público, e, por conta disso, as entidades não deixam de ter natureza jurídica de direito privado.
Já Juarez FREITAS, partindo de outro ponto de vista, defende que as organizações sociais "obedecem a um regime sui generis, não-estatal, porém certamente dominado por regras de direito privado e princípios de direito público". Segundo esclarece o mesmo autor, "há uma dominância de regras de direito privado e simultânea preponderância de princípios de direito público, uma vez que se encontram imantadas pelas suas próprias e inescapáveis finalidades de cogentes matizes sociais". [70]
Maria Sylvia Zanella DI PIETRO assevera que se referir às organizações sociais como entidades "públicas não estatais", "fica muito clara a intenção de tentar excluí-las da abrangência da Administração Indireta e, em conseqüência, excluí-las também da incidência das normas e princípios constitucionais que a ela se aplicam". [71] No entanto, segundo a mesma autora, as organizações sociais, na verdade, se submetem às normas de direito público, não obstante a natureza privada que se tente imprimir-lhes.
Seguindo esse mesmo raciocínio, José Anacleto Abduch SANTOS pontua que "estando presentes a atividade de natureza estatal e/ou a gestão de recursos públicos, se deve cogitar da incidência, ainda que parcial, do regime jurídico-administrativo". [72]
Com base nos posicionamentos expostos, observa-se que a doutrina divide-se entre os que defendem o regime jurídico de direito privado, de direito público ou um regime sui generis das organizações sociais, mediante fundamentos diversos.
Diante das divergências de opiniões expostas, Gustavo Justino de OLIVEIRA adverte que "talvez aqui resida a grande dificuldade do intérprete e do aplicador do Direito na assimilação do modelo das Organizações Sociais, em todos os seus aspectos e matizes, pois não é possível inseri-lo tranquilamente em todas as suas categorias clássicas do direito administrativo". [73]
No entanto, em que pesem as opiniões contraditórias a respeito do regime jurídico aplicável às organizações sociais, convém reproduzir o esclarecedor pensamento de Walter Claudius ROTHENBURG:
Informação, participação, impessoalidade, eficiência e controle são aspectos que caracterizam a organização e os procedimentos de realização do direito fundamental ao funcionamento adequado do Poder Público. Por isso, devem estar presentes mesmo quando a atividade de interesse público não seja realizada diretamente pelo Estado. [74]
Dessa forma, é de se ponderar que mesmo que não se admita a aplicação do regime jurídico de direito público às organizações sociais, certamente que as atividades desempenhadas pelas entidades (serviços sociais, de caráter essencial) devem ser levadas em consideração, sendo, desse modo, inafastável a aplicabilidade de princípios da Administração Pública à sua atuação.
A inadmissibilidade da aplicação dos princípios administrativistas às atividades desempenhadas pelas organizações sociais, por seu turno, leva a crer que tais entidades de fato são usadas como subterfúgios para a burla das normas legais, afinal, não se pode admitir a prestação de serviços sociais, de responsabilidade estatal, de forma temerária, despida de critérios indispensáveis.
1.6.2 REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS DE GESTÃO
Conforme já mencionado, o contrato de gestão possui características que destoam profundamente tanto dos convênios e parcerias celebrados pelo Poder Público, como dos contratos administrativos e demais contratos de natureza privada. Diante disso, existem diversos posicionamentos no que tange à sua natureza jurídica.
Em uma primeira acepção, Tarso Cabral VIOLIN, ao comparar os contratos de gestão aos convênios, defende que aqueles possuem natureza de contrato administrativo, ao asseverar que
Os contratos de gestão firmados entre a Administração Pública e as organizações sociais têm a mesma natureza jurídica dos contratos administrativos, e não convênios, pois neles há interesses contraditórios, onde a Administração pretende que determinado serviço seja realizado e pagará para que as organizações sociais o realize. Nos contratos de gestão também há as prerrogativas da Administração Pública existentes nos contratos administrativos. É claro que os contratos de gestão têm algumas peculiaridades, e às vezes até são semelhantes aos convênios, mas não há como, pela importância dos serviços realizados pelas organizações sociais, que estas tenham apenas vínculo de convênio com a Administração Pública, onde elas possam denunciar a qualquer momento, sem penalidades. [75]
Sílvio Luís Ferreira da ROCHA corrobora a ideia de que os contratos de gestão são espécies de contratos de direito público, e assenta seu entendimento na transcrição que segue:
O contrato de gestão celebrado entre a Administração e a Organização Social submete-se ao regime de direito público. O art. 37, caput, e o inciso XXI, da Constituição Federal, e o art. 7° da Lei 9.637 de 15.5.1998, determinam a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e economicidade na elaboração do contrato de gestão. A observância obrigatória desses princípios, e dos princípios subjacentes da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público, torna insustentável o argumento de que o contrato de gestão pode ser classificado como contrato da Administração, submetido ao regime jurídico privado, com ressalvas, e não como contrato administrativo. [76]
Já Hely Lopes MEIRELLES adota posicionamento diverso, ao sustentar que "embora a lei denomine este instrumento de contrato, na verdade trata-se de um acordo operacional entre a Administração e a entidade privada". [77]
Seguindo raciocínio similar, OLIVEIRA defende que
Tais contratos de gestão não são contratos administrativos e sim acordos administrativos colaborativos (contrato de gestão externo ou exógeno) pois (i) o ajuste em tela não tem por objeto adquirir bens e serviços junto à iniciativa privada ou a ela transferir a execução de atividades estatais qualificadas como serviços públicos; (ii) há a conjugação de vontades para a realização de um interesse que é comum a ambas as partes; (iii) o vínculo instaurado pelo ajuste ora enfocado institui uma parceria, não originando ( princípio) prestações equivalentes entre as partes, embora possa estabelecer compromissos recíprocos com efeitos vinculantes e (iv) o conteúdo do ajuste não é dotado de patrimonialidade (característica dos contratos administrativos), embora do vínculo formado decorram repercussões de ordem financeira. [78]
Do exposto, conclui-se que além de não haver uma classificação determinante sobre qual a natureza jurídica dos contratos de gestão, os entendimentos firmados pela doutrina se contrapõem radicalmente, e, por esse motivo, inevitáveis as divergências com relação à aplicação das normas previstas pela Lei n°9.637/98, bem como no que tange às discussões acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das mesmas.