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Hermenêutica e aplicação do Direito.

Breves apontamentos sobre a interpretação jurídica no paradigma contemporâneo

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24/02/2011 às 10:21
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SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Hermenêutica clássica e positivismo - 3. Direito, Moral e pós-positivismo - 4. Nova dogmática de interpretação jurídica - 5. Conclusão - 6. Bibliografia


1. Introdução

No presente estudo objetivamos analisar a questão da interpretação jurídica em face dos paradigmas que se erigiram ao longo do tempo, especialmente o positivista e o chamado pós-positivista. A reconstrução dos sistemas de Direito é possível, exatamente, a partir da noção de paradigma, sobre o que CARVALHO NETO traz importante lição acerca de seu papel na construção científica, fazendo-o nos seguintes termos:

"O conceito de paradigma vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn (A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 128 a 232). Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação dos aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados, no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são validas à medida que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemrminônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados." (CARVALHO NETO, 1986, p. 127)

Não podemos fincar nossa compreensão de mundo em um modelo que somente reproduz o que foi dito, numa constante reinvenção da roda, repousado em uma razão preguiçosa que se nega a pensar ou evoluir, contentando-nos com uma repetição sem fim. Por outro lado, é, sim, importante e útil termos um suporte em ideias alheias já consolidadas, posto que somente nos concebemos enquanto incluídos num contexto social, cultural, ético, científico etc., contudo, isto não pode implicar na castração a inovações e ousadias positivas, que permitam, talvez, um progresso no modo de viver e de enxergar a sociedade. Neste sentido, a transição paradigmática abre grande espaço para a inovação, a criatividade e a opção moral, o que permite um novo conhecimento que, como nos diz Souza Santos (2001, p. 186) se "assenta num des-pensar do velho conhecimento ainda hegemônico, do conhecimento que não admite a existência de uma crise paradigmática porque se recusa a ver que todas as soluções progressistas e auspiciosas por ele pensadas foram rejeitadas ou tornaram-se inexequíveis."

No ordenamento jurídico brasileiro e na cultura jurídica nacional existe um forte apego à ideias de um passado já superado, talvez, fruto da praxis jurídica ou da tímida maturação das ideias contemporâneas entre os profissionais do Direito. Dentre esses "fantasmas" do passado destacamos apenas um: a hermenêutica e aplicação do Direito. Certamente esses são temas centrais de todo o pensamento jurídico, influenciando a própria maneira de conceber e operar o Direito. Tais assuntos encontram, por vezes, disciplina legal incompatível com o paradigma jurídico contemporâneo, existindo verdadeiras peças de museu em nossa legislação que tratam do tema como se vivêssemos no século passado, o que tem sido obstáculo para que fossem assentadas novas premissas que por vezes passam despercebidas aos mais incautos.

Visando trazer à luz esse tema que nos instiga permanentemente, procedemos ao seu estudo em face do paradigma positivista e do atual paradigma chamado pós-positivista, valendo-nos de uma revisão bibliográfica sobre o tema em relação a aspectos que consideramos essenciais, sem ignorar que outras nuances são tão imprescindíveis e merecedoras de igual atenção. Todavia, não é nosso intento uma abordagem exaustiva nem definitiva, cujo transcurso excederia em muito o modesto alcance desse trabalho, mas apenas trazer uma de tantas soluções para a questão, com alguns dos argumentos que sirvam para deixar em foco esse assunto e que permitam, essencialmente, que seja suscitada a problemática que cerca o tema. Sabedores de nossas limitações e de que ainda resta muito a pesquisar sobre hermenêutica e aplicação do Direito, segue nossa humilde contribuição.


2) Hermenêutica clássica e positivismo

O positivismo jurídico abebera-se no positivismo filosófico que, segundo nos ensina Barroso:

"foi fruto de uma idealização do conhecimento científico, uma crença romântica e onipotente de que os múltiplos domínios da indagação e da atividade intelectual pudessem ser regidos por leis naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. O homem chegara à sua maioridade racional e tudo passara a ser ciência: o único conhecimento válido, a única moral, até mesmo a única religião. O universo, conforme divulgado por Galileu, teria uma linguagem matemática, integrando-se a um sistema de leis a serem descobertas, e os métodos válidos nas ciências da natureza deviam ser estendidos às ciência sociais."(BARROSO, p. 239)

O positivismo filosófico tem como principais expoentes Comte (1798-1857) e Lithé (1801-1881), em cuja doutrina encontraramos a chamada lei dos três estados, pela qual se explica a evolução do conhecimento filosófico. Partindo de uma visão causualística da vida social e influenciado pelas teorias da evolução orgânica de Lamark e Darwin, Comte entendeu que existiria uma lei fundamental da evolução, pela qual a sociedade caminharia por uma linha progressiva do conhecimento. O autor afirmava que o progresso humano seria permanente, indo sempre de um estágio inferior para outro superior e que, então, a humanidade alcançaria a sua etapa mais elevada, qual seja, a positiva.

De acordo com a lei de Comte, a evolução da humanidade teria passado por três estágios: a) teológico, no qual os fenômenos possuem uma explicação sobrenatural e divina; b) metafísica, em que o pensamento recorre a princípios que são considerados como existentes além da superfície das coisas e como constitutivos das forças reais que atuam na evolução da humanidade; c) o positivo, que seria o estágio mais avançado dessa evolução, pelo qual não são admitidas suposições hipotéticas não demonstráveis, mas somente observações empíricas e relativas à conexão de fatos, seguindo métodos utilizados nas ciências da natureza.

Neste contexto, os postulados do positivismo filosófico são: a) a ciência é o único conhecimento verdadeiro, depurado de indagações teológicas ou metafísicas, que especulam acerca de causas e princípios abstratos, insuscetíveis de demonstração; b) o conhecimento científico é objetivo, fundando-se na distinção entre sujeito e objeto e no método descritivo, com o que objetiva ser preservado de opiniões, preferências ou preconceitos; c) o método científico empregado nas ciências naturais, baseado na observação e experimentação, deve ser estendido a todos os campos de conhecimento, inclusive às ciências sociais.

Na migração do jusnaturalismo para o positivismo jurídico, estava-se trocando o ideal racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza jurídica e da cientificidade que se esperava de uma ciência jurídica. Com a ascensão do positivismo jurídico o Direito alcança sua perspectiva clássica, alicerçada nas seguintes características: a) caráter científico; b) emprego da lógica formal; c) pretensão de completude; d) pureza científica; e) racionalidade da lei e neutralidade do intérprete. A aplicação do Direito consistiria em um processo lógico-dedutivo de submissão à lei (premissa maior) da relação de fato (premissa menor), produzindo uma conclusão natural e óbvia, meramente declarada pelo intérprete, que não desempenharia qualquer papel criativo, mas apenas cognoscivo. Nessa perspectiva, a decisão judicial era jungida aos termos legais, exatamente porque todo o Direito se encontrava nas previsões do direito positivo, e, por outro lado, era inadmissível qualquer subjetividade judicial, sendo o julgamento concebido como ato politicamente neutro. A metáfora da justiça pela mulher vendada ilustra bem o quadro, pois a justiça deveria ser cega/neutra, ou seja, sem vontade própria.

A hermenêutica jurídica também se encontrava envolta nessa mesma perspectiva científico-cartesiana de correção, certeza e demonstração matemática. Assim, foram concebidos critério/regras/métodos objetivos para compreensão do Direito, forjados primordialmente pela Escola Exegética, pelo historicismo de Savigny, pela "Jurisprudência de Conceitos" de Puchta e pela "Jurisprudência de Interesses" de Ihering e Heck.

A Escola da Exegese surgiu na França no início do século XIX, logo após a publicação do Código Civil Napoleônico, em 1804. Tal escola propunha uma hermenêutica que garantisse objetividade na interpretação e permitisse uma leitura racional dos textos normativos para que o julgamento fosse realizado sem interferências da subjetividade do magistrado, ou seja, sem que o julgamento fosse afetado por valores e interesses pessoais do julgador. Sobre esse assunto, as palavras de Álvaro Ricardo de Souza Cruz são elucidativas:

"a hermenêutica exegética deveria limitar-se ao exame dogmático dos textos normativos, priorizando sensivelmente a interpretação literal dos mesmos. Estava presente o "otimismo" cartesiano de se encontrar na lei a resposta para todos os conflitos.

Por conseguinte, a Escola da Exegese lançou as bases de uma hermenêutica absolutamente cognoscitiva, lastreada exclusivamente no exame dos textos legislativos.

A aplicação do Direito se daria por um formalismo silogístico, no qual a premissa maior seria o texto normativo e a premissa menor o fato material. Logo, fundava-se numa concepção dedutiva de incidência do elementos abstrato ao elemento concreto. O estudo das regras de pontuação, da estrutura de orações, ou seja, os elementos sintáticos ou semânticos da língua seriam o centro de suas preocupações." (CRUZ, 2004, p. 75)

Portanto, para a Escola da Exegese, Direito e Política estavam separados como que por uma incisão com precisão cirúrgica, por conseguinte, o ato legislativo, que teria natureza volitiva, tinha campo completamente demarcado do ato judicial de feição cognitiva.

Por sua vez, a Escola Histórica do Direito (Friedrich Carl Von Savigny), ao contrário da Escola da Exegese que tinha uma concepção de razão sem considerações históricas, preceituava que as legislações eram fruto da história de cada nação, sendo imprescindível a visão dos costumes e tradições de um povo (wolksgeist) na compreensão do Direito. Por esse motivo, o intérprete deveria deixar-se inspirar pelo "espírito de seu povo" no momento da aplicação do Direito. Contudo, o historicismo de Savigny é celibatário daquela concepção de racionalismo cartesiano apontada acima, em que se busca uma precisão científica do Direito, com correção e certeza compatíveis com a matemática. Sua proposta de hermenêutica concebe um sistema jurídico fechado a valorações éticas e morais, enxergando o Direito como um sistema coerente de regras jurídicas de aplicação dedutiva através da subsunção do fato ao texto da norma. Para alcançar seu objetivo, a interpretação jurídica deveria se valer de técnicas próprias, correspondentes ao elemento gramatical, lógico, histórico e sistemático, pois, justamente por meio delas, o intérprete poderia alcançar a "verdadeira interpretação", ou seja, atingir o ideal da precisão/correção das ciências naturais. A tudo isso agregue-se o fato de que a Escola Histórica concebia que somente os doutores em Direito seriam capazes de percebê-lo, mesmo sendo produto da cultura e tradição do povo, o que fecha o campo dos intérpretes à um círculo erudito restrito, formando o que se chamou de "direito dos professores".

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A denominada "Jurisprudência de Conceitos", de Georg Friedrich Puchta, também acreditava que a interpretação jurídica seria exclusiva de juristas. Por meio de um método dedutivo objetivava desenvolver conceitos puros, unívocos, unisignificativos, dos signos/expressões dos textos jurídicos, de modo a permitir uma interpretação clara e exata dos textos normativos. Estes conceitos eram hierarquizados de um plano mais amplo até chegar-se a obtenção de normas jurídicas particulares nas decisões judiciais, o que gera uma verdadeira pirâmide conceitual.

A "Jurisprudência de interesses" (Rudolph Von Ihering, Philipp Heck), se somaria, já no final do séc. XIX e início do séc. XX, a toda plêiade sustentatória do formalismo jurídico. Segundo seus postulados, o Direito deveria ser concebido como forma de vivência, devendo haver uma preocupação com os interesses subjacentes à normatização jurídica, cuja concretização se buscaria através dela. Tal doutrina, embora tivesse propiciado uma certa abertura, permaneceu adstrita à uma visão positivista do fenômeno jurídico, uma vez que continuava supondo a existência de valores comuns próprios de uma comunidade e que estariam inscritos em lei, de modo que o juiz continuaria adstrito a obedecê-la sem espaço para valorações subjetivas (CRUZ, 2004, p. 105).

Ora, fácil perceber que cada uma destas concepções hermenêuticas geraram uma variável do positivismo. De fato, pelo positivismo legalista, positivo era apenas a lei, ao passo que para o positivismo histórico, positivo era o direito plasmado na vida, nas instituições ou num espírito do povo. Já para o positivismo conceitual, positivos eram os conceitos jurídicos genéricos e abstratos, rigorosamente construídos e concatenados, válidos independentemente de variabilidade da legislação positiva e, por fim, o positivismo sociológico, para o qual positivo era o estudo consentâneo com as regras das novas ciências da sociedade, surgidas na segunda metade do séc. XIX (HESPANHA, 1998, p. 174-175).

Todas essas concepções são correspondentes à uma hermenêutica clássica, com a sua pretensão de precisão de cientificidade e certeza cartesianas, juntamente com a repulsa à metafísica, o que as tornam compatíveis com a premissa da decisão judicial neutra e silogística. A autonomia do Direito cingia-o à suas estruturas, sendo apartado das esferas social, política e moral da sociedade, do mesmo modo que havia uma separação intransponível entre Estado e sociedade, com conseqüente distanciamento entre Direito e realidade. Assim, podemos concluir, da mesma forma que Cruz (2004, p. 96), que "A visão hermenêutica do positivismo implica exame exclusivo do texto normativo empregando-se, de modo geral, os métodos de Savigny (1949), acrescidos da interpretação teleológica da "Jurisprudência de Interesses".


2) Hermenêutica contemporânea

2.1) Direito, moral e pós-positivismo

A análise histórica do Direito nos mostra que em um primeiro momento da evolução da sociedade havia um amálgama incindível entre moral, Direito e religião. Na modernidade essa coalizão viria a desaparecer diante das novas concepções científicas de índole cartesiana e próprias do iluminismo. Podemos apontar o trabalho de Descartes e Kant na superação deste amálgama, como exposto por Cruz:

"Kant terminaria o trabalho de Descartes. O mundo antigo concebia um amálgama entre Direito, Moral e Religião. Descartes começou a apartação da religião. Kant distinguiu o Direito da Moral e concebeu uma sociedade pautada por princípios universais."(CRUZ, 2004, p. 62)

Contudo, Kant não concebia o Direito como um sistema fechado em si próprio. Ao contrário, enxergava um contacto subordinativo dos discursos morais em relação ao Direito Positivo. Assim, a legitimidade do Direito se daria pela permeabilidade do mesmo com a dimensão moral. Essa dimensão moral só poderia ser deduzida pela razão, pois somente ela poderia impor regras à conduta humana, através de um critério de universalização denominado por Kant como "imperativos categóricos". Para o filósofo, o Direito justificava-se como mecanismo social de garantia do livre arbítrio humano com liberdade, definida a partir de uma lei universal, o que plasmava o caráter ético da correção do Direito. Harmonizava as liberdades individuais e viabilizava a vida na sociedade civil, enquanto sua falta privava o homem de sua liberdade. [01] Portanto, embora reconhecendo autonomia ao Direito, havia condicionantes, uma ponte entre Direito e Moral.

Como dito acima, esta ligação entre Direito e Moral veio a desaparecer quando houve a assunção do positivismo e de sua ideia de autoreferência e autopoiética, que lhe conferiu um perfil completamente dissociado da Moral e da Religião, com o que buscava o status de ciência exatamente no sentido trilhado pelo positivismo filosófico. No entanto, esse divórcio substantivo entre Direito e Moral desmoronaria ante a constatação de que o ordenamento pode assumir contornos cruéis totalmente contrários à ideia de Justiça que se espera da regulação jurídica das condutas, idéia essa que se compreende, enfim, ser a função precípua do Direito: Justiça.

A tragédia humanitária e a imagem ignóbil do holocausto tiveram impacto avassalador no pensamento jurídico hegemônico da época. É uma imagem que fala por si mesma, que arrebata e dispensa qualquer arrazoado. Tornou-se fator de propulsão para uma nova demanda ética sobre o direito. O fato de Hitler ter alcançado o poder por meios democráticos e reformado a Constituição de Weimar sem violação formal do ordenamento jurídico positivo é, para constitucionalistas, chocante e constrangedor, pois difícil admitir que essa construção institucional pensada para limitar o poder e resguardar a liberdade tenha sido tão facilmente fraudada para fins opostos.

Assim foi que, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ética e os valores começam a retornar ao Direito, eis que o formalismo e a teoria positivista se mostraram insuficientes para construção de uma ordem jurídica aceitável, porquanto serviram como uma luva para a roupagem legal de regimes autoritários e bárbaros, justificando juridicamente a barbárie empreendida legalmente [02]. Com essas premissas, passou a ser defendido uma aproximação entre Direito e Moral, estreitando-se os vínculos entre política e Direito. Nesse aspecto, o neoconstitucionalismo se identifica com o moralismo jurídico (leitura moral da Constituição), exatamente como ressaltado por Ronald Dworkin, quando diz que a própria estrutura das normas constitucionais, frequentemente vazadas em linguagem altamente abstrata, que contém apelo direito a ideais políticos e filosóficos, convida o intérprete a proceder uma "leitura moral" do texto Magno (DWORKIN, 1996, p. 1-39).

O retorno aos valores é circunstância que representa o rompimento com o positivismo jurídico, através do que se convencionou denominar "virada kantiana", isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, que justifica a reaproximação entre ética e Direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e com a busca da justiça fundada no imperativo categórico. O livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certidão de renascimento dessas ideias.

Luís Roberto Barroso (2009, p. 250), em lição magistral, ensina que os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, migram para o mundo jurídico materializando-se mediante princípios jurídicos, que passam a estar abrigados pela constituição de forma expressa ou implícita. Daniel Sarmento reconhece esta abertura constitucional ao mundo dos valores, atribuindo aos princípios um papel primordial, exatamente na esteira do pós-positivismo, consoante as seguintes palavras:

"Sendo os princípios constitucionais a sede normativa dos valores morais, a adoção de uma perspectiva principialista da Constituição conduz, necessariamente, a uma abertura da argumentação constitucional para a dimensão moral." (SARMENTO, 2003, p. 275)

Com efeito, a invasão dos princípios maca o horizonte de mudanças do Direito, que se abre à moral, à política, à filosofia, os quais, antes, habitavam a terra do extrajurídico. Neste sentido, os princípios são porta de entrada dos valores, que passam do plano ético para o mundo jurídico. A seu turno, a dignidade da pessoa humana passa a ser o núcleo axiológico da tutela jurídica, localizada na posição central da compreensão neoconstitucionalista como epicentro de todo o ordenamento jurídico.

O pós-positivismo surge como marco filosófico desse novo paradigma, exigindo que além da validade formal e eficácia social, também esteja presente a correção substancial do Direito, trazendo a preocupação com valores, com o conteúdo ético do Direito. Como ensina Luiz Roberto Barroso:

"A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a filosofia."(BARROSO, 2005)

Destarte, toda essa guinada acerca da compreensão jurídica traz mais do que apenas ruídos ao que se deva entender por interpretação, aplicação e hermenêutica jurídica, colocando em xeque a sua visão positivista, mecanicista e de precisão científica já delineada acima, exigindo, por outro lado, que sejam redimensionadas as concepções sobre criação, aplicação e interpretação do Direito.

2.2) Nova dogmática de interpretação jurídica

A origem mais conhecida da palavra hermenêutica dá-se pela conexão semântica com o deus da mitologia grega chamado Hermes, que é compreendido como o deus responsável pela publicidade/tradução das mensagens divinas aos mortais, ao passo que a função da hermenêutica seria trazer à luz as mensagens legisladas, traduzindo os comandos jurídicos, as mensagens por traz do texto legislado. Numa concepção clássica, hermenêutica jurídica é a ciência que trata da sistematização dos processos de interpretação do Direito, que estuda as principais técnicas de interpretação e elabora regras para a compreensão de textos jurídicos, de modo a ordenar e sistematizar as técnicas e métodos interpretativos.

Os novos marcos do constitucionalismo, mormente a expansão da jurisdição constitucional e a adoção do pós-positivismo, causam uma transfiguração da hermenêutica. Há uma guinada acerca de como o direito constitucional deve ser pensado e praticado, o que atinge as premissas teóricas, filosóficas e ideológicas até então adotadas. Álvaro Ricardo de Souza Cruz ressalta que, no contexto de um novo quadro teórico, e clássica visão de hermenêutica deve ser superada, dizendo que ela "não se limita ao exame de um catálogo de técnicas interpretativas" (2004, p. 30) aptas a revelar o significado/conteúdo de uma norma jurídica. Desta forma, devemos ter em mente que, com o neoconstitucionalismo, o papel da norma geral e abstrata e do juiz evoluiu, juntamente com a superação do positivismo e da concepção de atividade de aplicação do Direito como um mero silogismo solipsista que toma por base a lei e o caso concreto através de um processo de mera subsunção automática.

O entendimento de que o juiz seria mera boca da lei (la bouche de la loi), detentor de um poder nulo, para usar as palavra de Montesquieu (2008), incumbido de revelar verdades constantes da legislação e resolver o caso trazido à apreciação do Judiciário através de um silogismo automático, sem qualquer papel criativo, ficou superado. A sentença que devia se subsumir direta e automaticamente à lei, sem quaisquer considerações constitucionais, passa a ser instrumento de controle de constitucionalidade, de filtragem constitucional, de realização da vontade constitucional, de aplicação dos direitos fundamentais, trazendo à tona um papel criativo do aplicador do Direito.

Norma e preceito normativo não se confundem. Para a regulação do caso concreto exige-se uma interpretação que construa o sentido da imposição jurídica, interpretação esta criativa, que exige que sejam observados os vetores do ordenamento jurídico, nos quais se inserem os princípios constitucionais, que ora vão negar validade à lei (controle de constitucionalidade), compor o espírito da própria lei, ou mesmo serem aplicados diretamente. Ao juiz não cabe apenas uma função de conhecimento técnico, ele possui coparticipação no processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis. O percurso da normas geral e abstrata, com sua compatibilização constitucional, até o caso concreto a ser solucionado, indubitavelmente necessita desta criação. Vejamos as palavras de Eduardo Cambi:

"Como última barreira à atuação do Poder Judiciário, impõe-se o mito do legislador positivo, pelo qual o juiz pode, nos moldes do pensamento iluminista, apenas declarar a vontade concreta da lei ou, no máximo, atuar como legislador negativo declarando a inconstitucionalidade de uma lei contrária à Constituição, não tendo ampla liberdade para a concretização de direitos. Tal compreensão se dirigia ao Estado Liberal, quando se impunha ao agente estatal apenas deveres negativos (de não-fazer), não se compatibilizando com o modelo de Estado previsto na Constituição Brasileira de 1988, que requer, além das prestações negativas para a garantia dos direitos de liberdade, também prestações positivas inerentes à implementação de direitos fundamentais à subsistência, à alimentação, ao trabalho, à educação, à saúde e à moradia." (CAMBI apud DIDIER, 2009, p. 215)

Com isto, os métodos clássicos de hermenêutica jurídica desenvolvidos por Savigny (literal, lógico, histórico e sistemático), conquanto não devam ser abandonados, revelam-se insuficientes sob a perspectiva pós-positivista, não sendo bastantes para propiciar a concretização dos comandos jurídicos aos casos sob apreciação do aplicador do Direito. Nesta nova fase paradigmática aparecem métodos de interpretação que ressaltam o papel criativo do intérprete, como os princípios da unidade, efeito integrador, máxima efetividade, conformidade funcional, harmonização força normativa, além de postulados normativos em resposta à complexa e imprescindível aplicação da constituição, a exemplo do método tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, científico-espiritual etc. A doutrina passa a problematizar todo o panorama de interpretação e aplicação do Direito. A justificação da aplicação do Direito, ao invés de pautar-se em uma subsunção automática de conceitos em um processo meramente cognoscivo procedido por um aplicador neutro, passa a ter a alternativa de fundamentar-se em uma argumentação racional em um quadro que admite juízo de valor do próprio hermeneuta. Alexy (2001) inicia sua obra Teoria da Argumentação Jurídica com a constatação de que osilogismo não esgota toda a operação inerente ao raciocínio jurídico, de forma que nem toda decisão jurídica é uma questão de mera subsunção do caso particular a uma norma geral. Segundo o autor:

""Ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das leis nada mais envolva do que uma inclusão lógica sob conceitos superiores abstratamente formulados."

Essa constatação de Karl Larez caracteriza um dos poucos pontos em que há unanimidade dos juristas na discussão da metodologia contemporânea. Em um grande número de casos, a afirmação normativa singular que expressa um julgamento envolvendo uma questão legal não é uma conclusão lógica derivada de formulações de normas pressupostamente válidas, tomadas junto com afirmações de fatos comprovada ou pressupostamente verdadeiros.

...

Há casos em que a decisão de um caso isolado não segue logicamente quer de afirmações empíricas tomadas junto com normas pressupostas ou proposições estritamente fundamentadas de algum sistema de raciocínio (juntamente com proposições empíricas), nem pode essa decisão ser totalmente justificada com a ajuda das regras de metodologia jurídica; nesses casos deve-se concluir que quem decide tem de ser discreto, na medida emque o caso não seja completamente regido por normas jurídicas, regras do método jurídico e doutrinas de dogmática jurídica. Então ele pode escolher entre várias soluções" (ALEXY, 2001, p. 17-19)

Aliás, nem precisávamos chegar à este ponto para reconhecer a atividade criativa do intérprete. Kelsen, sempre apontado como doutrinador central do positivismo já reconhecia que todo ato de aplicação do Direito é também um ato de criação. Kelsen via o Direito em seu aspecto dinâmico como um conjunto de autorizações aptas a conferir competências a pessoas investidas em cargos públicos ligados à aplicação/criação normativa (CRUZ, 2004, p. 117). As normas jurídicas não teriam completude necessária para regrar o surgimento de toda e qualquer norma jurídica, geral ou individual, havendo uma atividade volitiva no ato decisional, enxergando, assim, uma liberdade concedida ao aplicador do Direito. Para ele, a ciência do Direito teria seu objeto limitado ao fornecimento das molduras das possíveis interpretações, contudo, existiriam situações nas quais somente a discricionariedade poderia solucionar a questão. Logo, em determinadas questões não haveria uma única solução, mas sim uma das soluções possíveis para o caso.

Para Dworkin (DWORKIN, 1999, apud CRUZ, 2003, p. 29) as formas de interpretação podem ser classificadas em três espécies: a conversacional, a científica e a criativa. De acordo com a primeira, para se descobrir o significado do que outra pessoa disse, é indispensável a análise dos sons ou de signos gráficos que ela faz. Tal espécie é intencional, no sentido de que o intérprete se esforça para desvendar os motivos e as intenções do orador. A segunda se voltaria para a descrição do princípio da causalidade nos eventos naturais. Já a interpretação criativa se propõe à análise de um objeto, não sendo adstrita à elucidação da vontade do autor do objeto interpretado, mas deve ela mesma pôr em prática uma intenção, qual seja, a do intérprete [03]. Cruz (2003, p. 30) nos diz que a interpretação criativa de Dworkin se aproximaria do conceito de fusão de horizontes de Hans-Georg Gadamer. Segundo Gadamer, o significado de um texto resulta de uma experiência dialógica que ocorre quando o horizonte de significados e suposições históricas no intérprete se funde com o horizonte dentro do qual o próprio texto está situado, chegando a uma compreensão do texto situado na compreensão do intérprete. Isso quer dizer que, no redespertar do sentido do texto já se encontram sempre implicados os pensamentos próprios do intérprete, de modo que o próprio horizonte do intérprete é determinante na compreensão do texto. Compreender é um processo onde o intérprete se inclui e onde ocorre essa fusão de horizontes, sendo esse compreender e interpretar um processo produtivo.

Ademais, as circunstâncias de fato realmente possuem implicações nas prescrições jurídicas, motivo pelo qual Hesse (2001) reconheceu influência recíproca entre a Constituição jurídica e a Constituição real de Ferdinand Lassale, não separando-as em compartimentos estanques como fez esse último ao chamar a primeira de mera folha de papel, mas, pelo contrário, concebendo interferências recíprocas, sem desconectar as normas da realidade e, ao mesmo tempo, sem que os fatos ignorem a regulamentação jurídica [04]. Barroso (2009, p. 270-287) aponta que na dogmática contemporânea não há cisão entre interpretação e aplicação , pois a atribuição de sentidos se faz em conexão com os fatos relevantes e a realidade subjacente, de modo que a norma jurídica não é o objeto da interpretação, mas seu produto final. Tratando da interpretação constitucional, o autor expõe que o intérprete desempenha uma atuação criativa, que o intérprete, em alguns casos (hard cases), tem papel de destaque, pois sua pré-compreensão do mundo, do Direito e da realidade imediata irá afetar o modo como ele irá apreender os valores da comunidade e solucionar o caso. Suas palavras merecem transcrição:

"A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma constatação que, além de singela, nem sequer era original: não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incida."(BARROSO, 2009, p. 307)

Realmente, na atualidade, mudaram o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do intérprete. A norma jurídica não se confunde com o texto legislativo (enunciado normativo), sendo a conclusão construída diante dos fatos, pelo intérprete, para resolução do caso sob sua apreciação, sendo, pois, resultado da aplicação da norma, o que substitui a visão mecanicista e cartesiana erigida pelo positivismo pela concepção que compreende que a atividade de aplicação do direito comporta escolhas valorativas com espeque no eixo axiológico constitucionalmente previsto.

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Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Ex-Procurador do Estado de Minas Gerais. Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS JÚNIOR, Ari Timóteo. Hermenêutica e aplicação do Direito.: Breves apontamentos sobre a interpretação jurídica no paradigma contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2794, 24 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18553. Acesso em: 19 abr. 2024.

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