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Teoria do adimplemento substancial relacionada à boa-fé objetiva e à função social dos contratos

30/05/2011 às 10:14
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RESUMO:

A teoria do adimplemento substancial foi elaborada a partir de estudos doutrinários e análises de casos concretos pelos órgãos jurisdicionais. A verificação do mero inadimplemento contratual não justifica a extinção do negócio jurídico sempre que se referir a obrigações de pouca monta e se o devedor tiver pautado sua conduta pela boa-fé. Também se requer que o contrato tenha atingido seu fim maior. Evita a rescisão por motivo ínfimo, dando mais estabilidade às relações contratuais e, portanto, mais garantias à sociedade de um julgamento justo quando a demanda versar sobre este tema. Sua importância reside no fato de que assegura os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, dispostos de maneira vaga no Código Civil de 2002. Na prática a aplicação da teoria se mostra eficaz e disseminada. A metodologia consiste em pesquisa jurisprudencial, doutrinária, em artigos científicos e pela internet.

Palavras-chave: adimplemento substancial, boa-fé objetiva, função social.


1. INTRODUÇÃO

O ramo do direito civil que trata dos negócios jurídicos sofreu profundas modificações com o advento do Código Civil de 2002. Antes imperava uma visão patrimonial e individualista dos contratos, sobretudo em relação ao seu descumprimento. O prejuízo neste caso legitimava por fim ao acordo de vontades, não excluindo eventual pedido de indenização.

Ao trazer vários princípios novos para nortearem a interpretação do direito dos contratos (entre eles os da boa-fé objetiva e função social), o novo Código abriu a possibilidade de que a regra acima não precisasse ser seguida de maneira taxativa. A teoria do adimplemento substancial veda a extinção do negócio jurídico pelo simples fato do descumprimento, se este restringir-se a obrigações de pequena importância dentro do contrato a ser analisado.

Além disto, exige-se que a parte devedora tenha agido até o instante do inadimplemento com boa-fé, passível de ser auferida através do seu comportamento de zelo para com suas obrigações. Com esta teoria se permite que o contrato ainja sua função social: conservando-se, estará atendendo não só aos interesses dos particulares envolvidos, mas também o de toda a coletividade, pois assegura maior estabilidade nas relações sociais.

O presente trabalho consiste na exposição desta teoria à luz da doutrina e da jurisprudência, bem como traz uma breve explicação acerca do significado dos princípios da boa-fé e da função social, e de como se relacionam com a nova teoria. A pesquisa realizada consistiu em consultas a obras doutrinárias, artigos científicos da internet, e à jurisprudência.


2 - A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.

O inadimplemento contratual caracteriza-se pelo total descumprimento ou pelo cumprimento de obrigação diversa daquela que foi acertada. Em ambos os casos, havendo culpa (em sentido amplo) por parte do inadimplente o credor poderá pleitear em juízo a execução do contrato ou sua resolução. Em determinados casos, dada a natureza da obrigação devida, a única saída é pedir a extinção do contrato. Indenização é cabível, provados o dano emergente ou o lucro cessante.

A jurisprudência e a doutrina, contudo, preconizam uma nova alternativa, que por enquanto, não se acha regulada legalmente. Com a Teoria do Adimplemento Substancial, nem todos os casos de descumprimento contratual poderão levar automaticamente à resolução do negócio jurídico.

Por essa teoria, não se admite a extinção do negócio caso o inadimplemento se refira a parcela de menos importância do conjunto de obrigações do devedor. O descumprimento deve ser insignificante em relação à parte que já foi cumprida. Esta última deve configurar como essencial, servindo para "salvar" o contrato não totalmente adimplido; percebe-se que é crucial o exame cuidadoso do caso concreto.

AGRAVO REGIMENTAL. VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO. BUSCA E APREENSÃO. INDEFERIMENTO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO. COMPROVAÇÃO. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7/STJ. 1. Tendo o decisum do Tribunal de origem reconhecido o não cabimento da busca e apreensão em razão do adimplemento substancial do contrato, a apreciação da controvérsia importa em reexame do conjunto probatório dos autos, razão por que não pode ser conhecida em sede de recurso especial, ut súmula 07/STJ. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag 607.406/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 09/11/2004, -fé DJ 29/11/2004 p. 346).

O devedor que procurou agir até o momento do descumprimento com boa-fé poderá argumentar adimplemento substancial; caso tenha cumprido grande parte do contrato, nas formas e prazos que este determina, será injusto ter o seu esforço ignorado por uma falta que se configura exceção à sua regra de bom pagador, conforme se verifica na jurisprudência transcrita do STJ:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BUSCA E APREENSÃO - FALTA DA ÚLTIMA PRESTAÇÃO - ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL - O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido. (REsp 272.739/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 01.03.2001, DJ 02.04.2001 p. 299).

Por outro lado, deve-se analisar também o interesse do credor. Não basta a prova da boa-fé objetiva se, com o inadimplemento, deixou de ser atingida a finalidade principal ou única do negócio (no julgado acima, o relator ressalva: "salvo se demonstrada a perda do interesse na execução"). Deve-se analisar o quão foram atingidos os fins sociais e econômicos do contrato; se este, mesmo tendo sido em grande parte cumprido, acabou resultando inútil para o credor, não caberá aplicar a nova teoria.

"Em casos tais, antes de se recorrer à interpretação literal de dispositivos legais ou contratuais, é preciso aquilatar o contrato em toda sua extensão; o comportamento das partes no decurso do vínculo; os efetivos e reais prejuízos, de parte a parte; a natureza e a finalidade do negócio; o número das prestações pagas etc. Somente desta forma, poder-se-á avaliar se, de fato, houve descumprimento real, e não meramente formal, do contrato. A não ser assim, corre-se o risco de se chancelar, por via oblíqua, interpretações que ofendam ao bom senso e conduzam ao absurdo, o que colide com preceitos de hermenêutica." (Vianna, 2008).


3 - OS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS.

O Enunciado nº 361 da IV Jornada de Direito Civil declara que a teoria do adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, preponderando entre eles os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, citando os arts. 421, 422 e 475 do Código Civil de 2002-CC/02.

O art. 421 diz que: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato." Significa que desde a sua gênese, o contrato deverá guardar este princípio, que no antigo Código não era previsto. Antes prevalecia o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, que o concebia como um negócio jurídico que surtia efeitos tão somente entre as partes. Só alcançaria terceiros, portanto, se tal situação estivesse expressa no contrato (ex: estipulação em favor de terceiro).

Modernamente, contudo, os juristas não concebem mais esta idéia que restringe o alcance dos efeitos contratuais, pois se reconheceu que a sociedade (não apenas o indivíduo) goza de prerrogativas fundamentais, que se contrapõem ao secular direito de contratar livremente. Os chamados interesses sociais (preservação do meio ambiente, proteção à infância e à juventude, defesa da dignidade humana, entre outros) devem prevalecer em relação ao interesse meramente individual.

Entende-se hoje em dia que interessa à toda coletividade a conservação dos contratos, sempre que for possível, a fim de evitar insegurança nas relações travadas entre pessoas físicas e/ou jurídicas. No caso do adimplemento substancial do contrato a manutenção do acordo se mostra logicamente mais proveitosa para as partes do que a sua extinção, tendo em vista o tempo e os recursos que gastaram para cumprirem continuamente o pacto; contribui-se, assim, para a estabilidade das relações sociais travadas através deste negócio jurídico. Pode-se concluir que a aplicação da teoria do adimplemento substancial concretiza o princípio da função social dos contratos.

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Já o princípio da boa-fé objetiva se configura em requisito para a alegação desta teoria, e está consagrado no art. 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé". Este princípio é cláusula aberta de todo negócio jurídico: impõe um dever de conduta, mas não especifica quais as atitudes exigidas. Isto fica a critério do juiz. Conforme Sílvio de Salvo Venosa, "Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, o momento histórico e econômico." (2006, pg. 374).

A boa-fé se infere através do comportamento dos contratantes durante a execução do contrato. Significa agir de acordo com um padrão de conduta aceitado socialmente como ético, no âmbito do cumprimento contratual; é a constatação (objetivamente falando) de que a parte inadimplente vinha se comportando como merecedora de confiança por parte do credor. Logo, seu desejo não é o de por fim ao contrato, se não provavelmente o inadimplemento seria de parte considerável das obrigações contratuais.

O art. 475 do CC/02 dispõe que, em qualquer caso, a parte que se sentir lesada pelo inadimplemento poderá pleitear indenização por perdas e danos. A doutrina se manifesta favorável, não excluindo esta hipótese, mesmo que haja a aplicação da teoria do adimplemento substancial.


4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Através do exposto no presente trabalho percebe-se a importância da jurisprudência e da doutrina para a efetiva aplicação dos princípios que estão dispostos na lei de maneira tão vaga. A teoria do adimplemento substancial possibilita a concretização do princípio da função social dos contratos, na medida em que permite a sua conservação. Se o inadimplemento não é significativo, nem a finalidade da avença desapareceu na prática, a medida mais benéfica vai de encontro à antiga regra que dizia: se não for cumprido, será extinto.

Pelo senso de justiça comum esta teoria é plenamente aceita, tendo em vista que prestigia o comportamento daquele que vinha se mantendo de acordo com a boa-fé objetiva, mas que, por algum motivo, deixou de cumprir deveres de menor vulto. Geralmente o "bom pagador" atrasa o cumprimento das obrigações por questões alheias a mero descuido ou dolo. Cabe ao juiz analisar inclusive o cenário econômico que se impunha no momento do inadimplemento, para não prejudicar a parte que sempre demonstrou a intenção clara de quitar sua dívida. Conclui-se que a teoria deve ser aplicada sempre que a extinção do contrato causar na prática mais danos do que a permanência da sua execução.


5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGER, Anne Joyce (Org.). Código Civil. In: Vade mecum universitário de direito. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2008.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Órgão Julgador: 4ª Turma. REsp 272.739/MG, Relator: Ruy Rosado de Aguiar. Data do julgamento: 01.03.2001. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON>. Acesso em: 23 out. 2009

_______. Superior Tribunal de Justiça. Órgão Julgador: 4ª Turma. AgRg no Ag 607.406/RS, Relator: Fernando Gonçalves. Data do julgamento: 09.11.2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON>. Acesso em: 23 out. 2009

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Contratos e atos unilateraisSão Paulo: Saraiva, 2004. v. 3.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos.6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 2.

VIANNA, José Ricardo Alvarez. Adimplemento substancial . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1897, 10 set. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11703>. Acesso em: 22 out. 2009.

REZENDE, Fernando Augusto Chacha de. Teoria do adimplemento substancial e boa-fé objetiva - necessária exegese conjunta dos institutos. Disponível em <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 22 out. 2009.

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Sobre a autora
Aniêgela Sampaio Clarindo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Pós-graduanda em Direito de Família pela Universidade Regional do Cariri.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARINDO, Aniêgela Sampaio. Teoria do adimplemento substancial relacionada à boa-fé objetiva e à função social dos contratos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2889, 30 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19210. Acesso em: 28 mar. 2024.

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