Artigo Destaque dos editores

Introdução ao Direito Arbitral no Brasil

Exibindo página 1 de 3
21/06/2011 às 11:53
Leia nesta página:

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo a análise do instituto da Arbitragem no Brasil, em conformidade com a Lei federal 9.307/96 (Lei de Arbitragem). Pretende-se demonstrar que, apesar dos pontos fortes encontrados na Lei de Arbitragem no Brasil, o instituto ainda precisa ser aperfeiçoado, visando alcançar aos objetivos traçados pela "terceira onda renovatória do direito processual civil" e, principalmente, deve haver uma mudança cultural na sociedade, que se baseia, atualmente, na crença da onipotência do juiz sábio e salvador.

Palavras-chave: Arbitragem, Lei 9.307/96, onda renovatória, juiz.


INTRODUÇÃO

Os particulares resolviam, na antiguidade, seus conflitos com as próprias mãos, onde a parte mais forte ou mais astuta submetia o interesse do mais fraco ou menos astuto ao seu interesse (autotutela). Nesse caso, o interesse do vencedor era imposto pela força e não pelo direito. Pode-se dizer que, nesse período, as pessoas viviam em constante guerra de todos contra todos, dependendo, única e exclusivamente da sua força física ou intelectual. Com o surgimento do Estado, o poder, que era fundamentado na força, passou a ser legitimado em regras mais ou menos uniformes, que regularam parte considerável das relações entre as pessoas.

Nesse diapasão, o Estado, detentor do poder soberano, precisou criar órgãos que exercessem as funções que lhe foram conferidas. Por isso, dividiu-se o exercício do poder soberano entre o legislativo, o executivo e o jurisdicional.

O órgão legislativo tem a incumbência de criar leis [01]. O órgão executivo tem a função de executar as leis, implementando políticas públicas para a consecução dos diversos objetivos do Estado, tais como: saúde, educação, moradia, segurança etc. E, por fim, o órgão jurisdicional tem por escopo a resolução dos conflitos entre as pessoas, interpretando a lei, e sua decisão não sofre controle externo de outro órgão.

Entretanto, o Estado moderno, inclusive o Brasil, por meio do poder judicial, não consegue prestar a tutela jurídica, resolvendo os conflitos, de forma célere e com qualidade. A principais causas da má qualidade dos serviços prestados pelo poder judiciário decorrem de três fatores: I) a inacessibilidade do processo judicial aos economicamente menos favorecidos, devido aos altos custos; II) falta de estrutura administrativa nas secretarias das varas e, principalmente, falta de preparo dos magistrados e serventuários da justiça em lidarem com os novos direitos decorrentes do aumento da complexidade das relações jurídicas e; III) a demora na resolução dos conflitos.

Nesse diapasão, em estudo realizado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, concluiu-se que, para amenizar os efeitos nefastos dos problemas detectados, os países deveriam implementar políticas públicas para melhorar o exercício da função jurisdicional.

A primeira onda renovatória objetivou diminuir as dificuldades encontradas pelas pessoas economicamente menos favorecidas em buscarem soluções justas para seus conflitos. Portanto, o primeiro obstáculo ao acesso à justiça decorre da impossibilidade das pessoas defenderem, adequadamente, seus direitos em juízo, consequência dos custos elevados do processo judicial. Para os autores: Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais concentraram-se, muito adequadamente, em proporcionar serviço jurídico para os pobres. [02]

Ademais, Mauro Cappelletti e Bryant Garth informam que, in verbis:

Medidas muito importantes foram adotadas nos últimos anos para melhorar os sistemas de assistência judiciária. Como consequência, as barreiras ao acesso à justiça começaram a ceder. Os pobres estão obtendo assistência judiciária em números cada vez maiores, não apenas para causa de família ou defesa criminal, mas também para reivindicar seus direitos novos, não tradicionais, seja como autores ou como réus. É de esperar que as atuais experiências sirvam para eliminar essas barreiras. [03]

A "segunda onda renovatória" enfrenta o problema referente à representação dos novos direitos, denominados de direitos coletivos "lato sensu". Diferentemente do primeiro enfoque, que objetivou, primordialmente, ampliar o acesso à justiça, alcançando pessoas desprovidas de recursos financeiros para suportar os custos do processo, esse segundo enfoque visa qualificar os profissionais de direito (juízes, advogados, promotores e serventuários da justiça) para lidarem com conflitos que envolvem interesses de grupos determinados ou indeterminados. Essa nova onda de reformas objetivou, também, a adequar o procedimento à características dos novos direitos .

Em apertada síntese, Mauro Cappelletti e Bryant Garth situaram o problema: O segundo grande movimento no esforço de melhorar o acesso à justiça enfrentou o problema da representação dos interesses difusos, assim chamados os interesses coletivos ou grupais, diverso daqueles dos pobres [04].

A terceira onda renovatória amplia, como se verá, a percepção do conceito de acesso à justiça. As "duas primeiras ondas de reforma" visaram, principalmente, o aperfeiçoamento do processo judicial e dos profissionais do direito envolvidos.

O novo enfoque não apresenta propostas para a solução dos problemas detectados no processo judicial, mas busca alternativas para ele. Nesse caso, "a terceira onda renovatória de acesso à justiça" não busca o aperfeiçoamento do processo judicial visando à solução mais célere e com o menor custo, ou a adaptabilidade do procedimento judicial aos novos direitos, mas cria alternativas para a resolução dos conflitos fora do seu âmbito.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth afirmam que:

O novo enfoque de acesso à justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia judicial e extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos ‘o enfoque do acesso à justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso. [05]

Portanto, a "terceira onda" de reforma constata as deficiências do processo judicial e, em decorrência, busca alternativas em novas instituições e pessoas, para a solução dos conflitos, sem perder de vista, contudo, as conquistas alcançadas com as duas primeiras ondas renovatórias.

É nessa última "onda renovatória" que se enquadra o instituto da arbitragem, meio não-estatal de resolução de conflitos, objeto do presente trabalho.

Nesse diapasão, o presente trabalho analisará, de forma didática, mas sem perder a profundidade característica de um trabalho científico, a arbitragem conforme modelado pela Lei 9.307/96.

O presente trabalho tratará, primeiramente, do conceito e natureza jurídica da arbitragem no Brasil.

Após, analisar-se-ão seus antecedentes históricos na civilização antiga, principalmente, em fase imediatamente anterior ao surgimento de Roma e, também, durante o seu domínio, com breve referência à arbitragem no Direito italiano atual.

Far-se-á, também, breve síntese dos antecedentes históricos da arbitragem no Brasil, desde as ordenações portuguesas até a promulgação da Lei 9.307/96, lei que inovou e sistematizou a arbitragem no Direito brasileiro.

Far-se-á, ainda, uma breve distinção entre a arbitragem e institutos correlatos.

Por fim, o trabalho abordará algumas particularidades do procedimento arbitral, tais como: questões prejudiciais, sentença arbitral, recursos, nulidades e execução, em conformidade com as regras insculpidas na Lei nº 9.307/96.


1 – CONCEITO

Ao se conceituar um determinado instituto jurídico, deve-se, antes de tudo, apreender seus elementos, que decorrem, inexoravelmente, de sua disciplina legal. No ordenamento jurídico brasileiro, a arbitragem foi disciplinada, como visto, pela Lei federal nº 9.307/96.

Primeiramente, cumpre salientar que a arbitragem é um meio heterocompositivo de resolução de conflitos. Entende-se por heterocomposição a solução do litígio por um terceiro, estranho ao conflito, ou seja, a solução do conflito é obra de alguém que não é titular de nenhum dos interesses conflitantes [06].

Ao lado da arbitragem, como meio heterocompositivo de conflitos, encontram-se, também, o poder judiciário e os tribunais administrativos.

Diferentemente da heterocomposição, a autocomposição é o meio pelo qual as próprias partes envolvidas resolvem o conflito. Nesse caso, a solução é encontrada pelos litigantes, independentemente da participação de terceiro, estranho à lide. Citem-se como espécies de autocomposição, a autotutela, a mediação e a conciliação. O tema será tratado adiante.

Por seu turno, não se devem confundir a arbitragem com o processo judicial, espécies heterocompositivas. O processo judicial é irresistível, pois, ao surgir um conflito de interesses, esse deve ser submetido, necessariamente, à apreciação do poder judicial, por expressa disposição constitucional (art. 5º, inc. XXXV).

A arbitragem, por seu turno, é instituída mediante contrato entre as partes para dirimir determinados conflitos. Nesse caso, constata-se que a arbitragem é alternativa ao poder judicial para a solução de conflitos que envolvem direitos patrimoniais disponíveis.

Nesse caso, surge a primeira diferença entre processo judicial e arbitragem. O processo judicial decorre diretamente do comando constitucional, e tem competência para dirimir qualquer conflito que envolva ameaça ou lesão a direito. Enquanto que a arbitragem é instituída mediante acordo entre as partes e tem competência para resolver conflitos que envolvem, somente, direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º, da Lei de Arbitragem).

Entretanto, o que se deve entender por direitos patrimoniais disponíveis?

Primeiramente, cumpre esclarecer que "direito patrimonial disponível" é espécie da categoria mais ampla "direito patrimonial". Existem, ainda os "direitos não-patrimoniais" que se subdividem em "direitos não-patrimoniais disponíveis" e "direitos não-patrimoniais indisponíveis", também denominados de "direitos da personalidade".

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Os "direitos não-patrimoniais" são aqueles que não podem ser mensurados economicamente, pois são insuscetíveis de converter-se em pecúnia. Tais direitos não possuem, por conseguinte, conteúdo econômico direto e imediato [07].

Os direitos não-patrimoniais indisponíveis também são denominados de "direitos da personalidade" [08]. Os direitos da personalidade têm, por conseguinte, as seguintes características: 1) São inatos; 2) são vitalícios; 3) são inalienáveis e 4) são absolutos. Os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade da pessoa humana [09]. Cite-se, por exemplo, modernamente, os direitos fundamentais inseridos na Constituição Federal de 1988, tais como: o direito à vida, à saúde, à liberdade etc.

Esses direitos são insuscetíveis de mensuração econômica e de transação por parte de seu titular.

Por outro lado, existem "direitos não-patrimoniais" que admitem transação, somente, na seara judicial – direitos não-patrimoniais disponíveis. Tais direitos são, em princípio, insuscetíveis de transação, contudo, a lei, excepcionalmente, admite a conciliação. Cite-se, por exemplo: a transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, em que o jus puniendi do Estado, por um lado, e o direito de liberdade do cidadão, por outro, podem ser transacionados, desde que preenchidos determinados requisitos estabelecidos na lei de regência [10].

Por seu turno, os "direitos patrimoniais" são aqueles que podem ser mensurados economicamente, pois são, geralmente, convertidos em pecúnia. Enquadram-se nessa categoria, os direitos pessoais (obrigacionais) e os direitos reais.

Os "direitos patrimoniais indisponíveis" são aqueles que por algum impedimento legal, são insuscetíveis de transação. Na maioria dos casos, a indisponibilidade dos direitos patrimoniais decorre da incapacidade da pessoa em praticar atos de disposição do patrimônio, seja em decorrência do não atingimento da maioridade legal, seja porque a pessoa não possua o grau de discernimento para gerir seus próprios negócios, em decorrência de alguma enfermidade mental. Nesse caso, a causa que gerou a incapacidade pode ser transitória ou permanente.

E, por fim, os "direitos patrimoniais disponíveis" são aqueles que, possuindo caráter econômico direto ou indireto (dano moral), são suscetíveis de livre disposição pelo seu titular.

Portanto, a Lei da Arbitragem, ao determinar que o árbitro aprecie somente os litígios que envolvam direitos patrimoniais disponíveis, objetivou resguardar à apreciação do poder judiciário, os demais direitos que não possam ser mensurados economicamente, ou que são mensurados economicamente, mas tem por titular pessoa incapaz de gerir, por si só, seu patrimônio. Nesse caso, a lesão ou ameaça a direito deve ser apreciada, necessariamente, pelo poder judiciário (art. 5º, XXXV, CF).

Por isso, em decorrência da possibilidade do órgão judiciário poder apreciar toda lesão ou ameaça a direito, toda a pessoa, seja capaz ou incapaz, pode comparecer em juízo, diretamente ou por meio de representante legal. Na arbitragem, diferentemente, por se tratar de um negócio jurídico, somente as pessoas capazes de praticar todos os atos da vida civil podem levar ao árbitro lesão ou ameaça a direito patrimonial disponível.

A incapacidade está disciplinada no Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002) [11]. Contudo, como a Lei da Arbitragem não distinguiu os absolutamente incapazes dos relativamente incapazes, tem-se que a proibição de instituir a arbitragem deve estender-se a ambos.

Entretanto, deve-se deixar consignado que a convenção de arbitragem celebrada por pessoa maior de 16 (dezesseis) e menor de 18 (dezoito) anos de idade, que se enquadre numa das hipóteses do parágrafo único, do art. 5º do Código Civil, é válida, pois, nesse caso, houve uma antecipação da maioridade civil, em decorrência de emancipação consensual ou legal.

Após essa breve análise dos elementos constitutivos da arbitragem no Brasil e suas diferenças com o poder judiciário, passa-se a analisar as definições formuladas pela doutrina brasileira.

Por seu turno, Fredie Didier Júnior conceitua a arbitragem como:

...técnica de solução de conflitos mediante a qual os conflitantes buscam em uma terceira pessoa, de sua confiança, a solução amigável e "imparcial" (porque não feita pelas partes diretamente) do litígio [12].

Em que pese o posicionamento do referido autor, tal definição, além de não vislumbrar todos os elementos que constituem a arbitragem no direito brasileiro, trata como essencial elemento considerado acidental no conceito de arbitragem.

Apesar da busca pela solução do litígio de forma consensual, tal elemento não é essencial para a constituição da arbitragem no Brasil, pois, ao se instituir a arbitragem para a solução do litígio, as partes, psicologicamente, estão predispostas a resolver o conflito mediante a imposição da decisão proferida pelo árbitro à parte vencida. Diga-se de passagem, que a solução amigável é estimulada no processo arbitral, entretanto, não é elemento essencial da arbitragem.

Por outro lado, José Augusto Rodrigues Pinto conceitua a arbitragem como: um processo de solução de conflitos jurídicos pelo o qual o terceiro, estranho aos interesses das partes, tenta conciliar e, sucessivamente, decide a controvérsia [13].

Apesar dessa definição sucinta, o autor inseriu elemento estranho à caracterização da arbitragem. O autor, ao se referir à tentativa de conciliação por parte do árbitro, não descreveu um elemento constitutivo, mas, um dever inerente à função de árbitro. Ademais, o referido autor não apreendeu, em sua definição, alguns elementos sem os quais a arbitragem não existiria juridicamente no direito brasileiro, tal como visto acima.

Como se disse alhures, para se conceituar um instituto jurídico, deve-se apreender todos os elementos de sua disciplina legal. No caso da arbitragem, os elementos constitutivos são encontrados na Lei nº 9.307/96.

Por isso, a arbitragem pode ser conceituada como um meio heterocompositivo de conflitos, decorrente da "Terceira onda renovatória do Direito Processual", instituído por um contrato entre pessoas capazes (denominado de convenção de arbitragem), onde será submetido um litígio, atual ou futuro, que versa sobre direitos patrimoniais disponíveis, a pessoa estranha aos interesses das partes, subtraindo tal litígio à apreciação do Poder Judiciário, sendo que respeitados os princípios basilares do moderno direito processual – contraditório, ampla defesa, isonomia – a decisão de mérito proferida tornar-se-á imutável.


2 – NATUREZA JURÍDICA

De acordo com as palavras de Maurício Godinho Delgado:

Encontrar a natureza jurídica de um instituto do direito consiste em se apreender os elementos fundamentais que integram sua composição específica, contrapondo-os, em seguida, ao conjunto mais próximo de figuras jurídicas, de modo a classificar o instituto enfocado no universo de figuras existentes no Direito. [14]

Como ficou definido, a arbitragem é um meio heterocompositivo de resolução de conflitos assim como o processo judicial. O juiz, no processo judicial, exerce, indubitavelmente, a função jurisdicional. Nesse caso, resta saber se o árbitro, ao resolver determinado conflito, exerce, também, a função jurisdicional. Em suma, a arbitragem tem a mesma natureza jurídica do processo judicial?

No direito brasileiro, há, basicamente, dois posicionamentos sobre natureza jurídica da arbitragem.

A primeira corrente entende ter a arbitragem natureza privatista, pois, no caso, o poder de decidir do árbitro é inerente a convenção de arbitragem celebrada entre as partes. Por isso, a arbitragem seria o objeto de um contrato celebrado dentro dos limites da autonomia da vontade das partes. Nesse caso, o árbitro não exerceria função jurisdicional, pois o monopólio de exercício da jurisdição estaria na posse do Estado. Monopólio que decorreria da forma de investidura do julgador.

Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni afirma que a jurisdição poderá ser exercida somente por pessoa devidamente investida de autoridade de juiz, sendo indispensável para isso que tenha sido aprovada em concurso público, nos termos do art. 93, I, da Constituição Federal de 1988. E a pessoa investida na função de juiz não poderia delegar seus poderes a outra pessoa. Ademais, a arbitragem é manifestação da autonomia da vontade e a opção por árbitro implica renúncia à jurisdição, pois a escolha só pode ser feita por pessoas capazes e para a tutela de direitos patrimoniais disponíveis [15].

Outro argumento que milita a contra a natureza jurisdicional da arbitragem é dado por Daniel Francisco Mitidiero que entende, in verbis:

...que a atividade do árbitro carece de definitividade, daquela irreversibilidade externa que se mostra inerente a ato jurisdicional. Com efeito, existem hipóteses em que se oferece possível a revisão, pelo Poder Judiciário, do laudo arbitral (arts. 32/33, Lei nº 9.307, de 1996), o que evidentemente retira da arbitragem seu caráter jurisdicional, por admitir revisão por outra estrutura que não aquela que lhe deu origem. [16]

Em suma, a corrente que nega a natureza jurisdicional da arbitragem sustenta seu entendimento na forma de investidura do julgador e no controle externo feito pelos órgãos judiciários à decisão arbitral. No primeiro caso, é investido da função jurisdicional quem foi aprovado em concurso público. No segundo, as decisões dos árbitros não são definitivas, porque o poder judiciário poderá exercer controle sobre elas.

Por outro lado, existe a corrente que afirma ter a arbitragem natureza jurisdicional, sustentando o entendimento nas seguintes argumentações, in verbis:

A decisão arbitral fica imutável pela coisa julgada material. Poderá ser invalidada a decisão, mas, ultrapassado o prazo nonagesimal, a coisa julgada torna-se soberana. É por conta dessa circunstância que se pode afirmar que a arbitragem no Brasil, não é equivalente jurisdicional: é propriamente jurisdição, exercida por particulares, com autorização do Estado e como consequência do exercício do direito fundamental de auto-regramento (autonomia privada). [17]

Como se percebe, tal corrente de pensamento sustenta a natureza jurisdicional da arbitragem afirmando que a decisão arbitral, após o decurso do prazo de 90 (noventa) dias sem impugnação, de acordo com a Lei 9.307/96, tornar-se imutável. Nesse sentido, fala-se em imutabilidade da decisão por incidência da coisa julgada material.

Acrescente-se a tal argumento, o fato do árbitro, na condução do processo, agir de forma imparcial [18].

O prof. Alexandre Freitas Câmara adota posição peculiar quanto à natureza jurídica da arbitragem. O autor afirma que a função desenvolvida pelos árbitros é pública, pois tem por escopo a pacificação de conflitos, colaborando com o Estado na busca desse objetivo, negando, no entanto, a natureza jurisdicional dessa função. A arbitragem, ao iniciar-se por contrato entre as partes, não poderia ser equiparada às funções desenvolvidas pelo juiz, no processo judicial. Ademais, a função jurisdicional é monopólio estatal, proibindo-se seu exercício pelo árbitro, um particular, pois o poder de império, necessário para o desempenho da jurisdição, é exclusividade do Estado. [19]

O posicionamento que nega a natureza jurisdicional da arbitragem apóia-se em duas premissas: a forma de investidura do julgador e a possibilidade de controle das decisões arbitrais pelos órgãos judiciários.

Primeiramente, cumpre salientar que a forma de investidura do julgador não é fator determinante para afirmar ou negar a natureza jurisdicional da arbitragem.

O art. 93, inc. I, da Constituição Federal de 1988, determina que o ingresso na magistratura dar-se-á por meio de concurso público de provas e títulos. Nesse caso, o candidato aprovado ingressará na estrutura do Poder Judiciário, na condição de juiz substituto. Entretanto, a Constituição Federal não determina que a função jurisdicional deve ser exercida, exclusivamente, por membros dos órgãos judiciários. Não existe sequer um artigo da Carta Magna que, implicitamente, induza o intérprete a concluir nesse sentido.

A exclusividade de exercício da função jurisdicional pelo Poder Judiciário decorre da concepção que sobreleva a importância do juiz no processo. Nessa concepção, o juiz é o único capaz de captar os sentimentos que dominam a sociedade em determinado período histórico e com condições de julgar os conflitos de forma solitária, com exclusão das partes no processo decisório (ativismo judicial).

Essa concepção é veementemente combatida pelo prof. Dierle José Coelho Nunes, in verbis:

A defesa atual de que, para uma melhora do sistema jurídico, deve haver a procura de uma formação plural (humanística, jurídica, social e econômica) tão-somente dos juízes, e não de todos os sujeitos processuais, parte do equívoco do protagonismo judicial que impede a compreensão da interdependência e do policentrismo processual, que imporia uma comparticipação e um reforço da importância e do papel de todos que se apresentam no processo.

Ao adotar a concepção de que o juiz deve ser o protagonista do processo, seus adeptos ignoram a importância da participação de todos os sujeitos envolvidos no processo. Por isso, de acordo com essa concepção, o juiz, investido por meio de concurso público, exerce com exclusividade a função jurisdicional, transformando as partes em meros espectadores da onipotência judicial. Em decorrência da forma investidura do juiz e de seu suposto protagonismo no processo, o árbitro não poderia exercer função jurisdicional.

Entretanto, como se entrevê das palavras do prof. Dierle Nunes, a função jurisdicional não decorre da forma de investidura do julgador com seu protagonismo ou de um suposto monopólio Estatal na aplicação do direito, mas surge da participação de todos os envolvidos no conflito, de forma isonômica, com a divisão da responsabilidade de todos os sujeitos participantes.

Em outros termos, a função jurisdicional somente é exercida em procedimento que respeite a participação das partes em contraditório, de forma isonômica, com divisão de responsabilidade do resultado final, por todos os participantes. Nesse diapasão, ao procedimento desenvolvido dessa maneira, denomina-se processo.

Nesse sentido, a Lei de Arbitragem, ao garantir a participação das partes em contraditório, de forma isonômica, declarou que a função exercida pelo árbitro, no bojo do processo arbitral, é jurisdicional.

De acordo com o mesmo raciocínio, o argumento segundo o qual o árbitro não exerce função jurisdicional, pois a decisão proferida carece de definitividade, pois há possibilidade do órgão judiciário exercer controle sobre a sentença arbitral, carece de fundamento plausível.

A Lei da Arbitragem declara no art. 18 que a sentença proferida pelo árbitro não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. E caso, após o decurso do prazo noventa dias, sem que as partes impugnem a sentença arbitral, o comando decisório tornar-se-á imutável (art. 33, parágrafo 1º, da Lei 9.307/96).

Nesse caso, o suposto controle exercido pelo Poder Judiciário sobre a sentença arbitral limita-se, somente, a verificar a regularidade formal do processo e da sentença. Não há possibilidade do órgão judiciário analisar o conflito que foi objeto de processo arbitral. Caso o juiz aprecie o mérito de uma sentença arbitral, sua decisão deve ser declarada nula de pleno direito, por invadir a competência outorgada, por meio da convenção de arbitragem, ao árbitro.

A imutabilidade da sentença arbitral decorre da possibilidade de exercício do contraditório no procedimento arbitral. Ou seja, pode-se afirmar que somente existe processo onde há possibilidade de participação da partes, em simétrica paridade, culminando na imutabilidade da sentença arbitral.

A imutabilidade do julgado é a garantia indiscutibilidade do julgado que fora proferido em procedimento que oportunizou as partes o direito de comparticipar em igualdade de condições na construção do ato final denominado sentença que gerará efeitos sobre elas [20].

Diante dessas considerações, conclui-se que a Constituição Federal de 1988 não proibiu o exercício da função jurisdicional pelo árbitro. Em decorrência, o legislador ordinário, ao promulgar a Lei e Arbitragem, investiu o árbitro da função jurisdicional para apreciar causas que envolvam direitos patrimoniais disponíveis e garantiu, caso os princípios processuais-constitucionais fossem observados no procedimento (contraditório, isonomia), a imutabilidade da sentença arbitral, após o decurso do prazo de noventa dias sem impugnação.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
João Paulo Chelotti

Advogado atuante em SP. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista UNIP. Pós-graduado lato sensu em direito processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMINAS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHELOTTI, João Paulo. Introdução ao Direito Arbitral no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2911, 21 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19381. Acesso em: 24 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos