Sumário:
Introdução. Da fungibilidade recursal. Requisitos da fungibilidade recursal. Conclusão. Referências bibliográficas.Introdução
A noção de recurso pode ser compreendida como um remédio processual colocado à disposição das partes para impugnar uma determinada decisão judicial. Tem sua gênese no inconformismo e no descontentamento humano, comportamento natural do vencido vencida no processo judicial. Pressupõe o recurso expressa previsão legal (princípio da taxatividade). Como todo recurso prolonga a solução da lide, a lei impõe uma série de requisitos para sua interposição. Assim, para que um recurso devolva o exame da matéria impugnada, é necessária a presença dos pressupostos de admissibilidade recursal.
O julgamento de um recurso pressupõe um juízo de admissibilidade e um juízo de mérito. Antes de adentrar ao mérito da matéria recursal (conteúdo da impugnação), há um prévio exame do conjunto das condições de admissibilidade do recurso, por analogia às condições da ação, além dos requisitos ou pressupostos recursais, terminologia também análoga aos pressupostos processuais, que se materializam numa verdadeira triagem recursal.
Para o preenchimento de uma das condições recursais (cabimento, legitimidade e interesse recursal), também chamadas de pressupostos intrínsecos do recurso, ligados ao poder de recorrer, deve haver previsão legal para a interposição de um recurso. É o chamado requisito do cabimento, composto pela recorribilidade e pela adequação, análogo à possibilidade jurídica do pedido, uma das condições da ação. Daí o princípio da taxatividade, pelo qual o rol dos recursos é, regra geral, exaustivo, previsto em lei federal, e que impede a autonomia do litigante para instituir meios de impugnação das decisões judiciais, a seu critério.
Além dos pressupostos intrínsecos, necessário também que um recurso preencha os seus pressupostos extrínsecos (tempestividade, preparo e regularidade formal), ligados ao modo de exercer o direito de recorrer.
Importante, ainda, em sede recursal, a noção do princípio da singularidade, unidade ou unirrecorribilidade, situação onde cada decisão comporta um único recurso. Tal princípio deve ser analisado com cuidado, mas a regra geral deve ser a de que, para cada caso, há um único recurso adequado. Estreitamente ligado ao princípio da singularidade, o princípio da correspondência, que diz respeito à funcionalidade do sistema recursal, pressupõe a idéia de que deve haver correspondência entre a decisão impugnável e o respectivo recurso cabível (uma vez identificada a natureza jurídica de um provimento, terá sido identificado o recurso cabível, precisamente).
Embora não haja previsão legal para a fungibilidade recursal, é dentro deste contexto que deva ser compreendido o referido princípio, fundado na premissa que a forma não deve prejudicar o direito. Não se nega que o processo é forma, mas forma instrumental.
A fungibilidade, para o direito civil, é qualidade de um bem que pode ser substituído por outro. No processo civil, é a possibilidade de substituição de uma medida processual por outra, aplicável aos recursos (fungibilidade recursal) e, mais recentemente, às tutelas de urgência (fungibilidade das tutelas de urgência). O princípio da fungibilidade mostra a necessidade de adaptação do direito a situações imprevistas e não padronizadas, permitindo a utilização de instrumentos processuais que respondam mais adequadamente às diversas variedades de situações fáticas, tudo em consonância com efetividade da prestação jurisdicional e à instrumentalidade processual. A necessidade da adaptação do direito às transformações sociais velozes e rápidas, aliado ao fato de que não há como a lei processual prever todas as situações possíveis, embasa o princípio da fungibilidade.
Assim, o princípio da fungibilidade recursal, denominado por Rui Portanova [01] de princípio do recurso indiferente, da permutabilidade dos recursos e da conversibilidade dos recursos, permite que não haja prejuízo para a parte na interposição de um recurso por outro, desde que preenchidos alguns requisitos.
Requisitos da aplicação da fungibilidade recursal
A noção de fungibilidade, no direito processual brasileiro, está muito ligada a recursos, com base na concepção de poderia ser aceito um recurso, ao invés do recurso correto, pressentes determinados requisitos elencados pela doutrina e pela jurisprudência, à ausência de previsão legal para a aplicação do princípio.
Porém, há outros casos de fungibilidade no processo civil, sendo exemplo a fungibilidade nas tutelas de urgência (art. 273, § 7º, do Código de Processo Civil), a fungibilidade das medidas cautelares (art. 805 do CPC), a fungibilidade das ações possessórias (art. 920 do CPC), a fungibilidade ou conversão de procedimentos (art. 295, caput, V, do CPC), a fungibilidade das tutelas jurisdicionais (art. 250, caput, do CPC), esta última ligada ao brocardo electa uma via ad alteram non datur regressus, que veda, como regra, a conversibilidade entre processos de conhecimento, de execução e cautelar, e a fungibilidade de provimentos (ligado ao direito ao meio executivo adequado ao caso concreto e ao princípio da concentração dos poderes de execução do juiz).
Em relação ao princípio da fungibilidade dos recursos, que Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha [02] entendem que "é aquele pelo qual se permite a conversão de um recurso em outro, no caso de equívoco da parte, desde que não houvesse erro grosseiro ou não tenha precluído prazo para a interposição. Trata-se de aplicação específica do princípio da instrumentalidade das formas".
Os doutrinadores citados acima [03] enumeram os seguintes pressupostos ou requisitos para a aplicação do princípio da fungibilidade: a) dúvida objetiva; b) inexistência de erro grosseiro; c) observância de prazo.
Por sua vez, Araken de Assis [04], além de estabelecer casos de dúvida objetiva, cita [05] precedente da 1ª Turma do STJ proclamando que "a adoção do princípio da fungibilidade exige sejam presentes: a) dúvida objetiva sobre qual o recurso a ser interposto; b) inexistência de erro grosseiro, que se dá quando se interpõe recurso errado quando o correto encontra-se expressamente indicado na lei e sobre o qual não se opõe nenhuma dúvida; c) que o recurso erroneamente interposto tenha sido agitado no prazo do que se pretende transformá-lo" (RMS 888-DF, Rel. Min. Gomes de Barros, 1ª T., DJ 25.03.96, p. 8.544).
Na mesma linha de pensamento, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina [06] corroboram a tese majoritária de que "a jurisprudência tem exigido, para a aplicação do princípio da fungibilidade, a presença dos seguintes requisitos: a) dúvida "objetiva" sobre qual o recurso a ser interposto; b) inexistência de erro grosseiro; c) que o recurso seja interposto no prazo para a interposição do recurso próprio".
Enfim, embora o legislador tentasse criar um sistema recursal perfeito que não admitisse dúvida acerca do recurso cabível em relação a cada pronunciamento judicial, em certos casos, persiste situação onde há discussão e dúvida sobre qual recurso é o mais cabível e adequado.
É complexa a admissibilidade do princípio da fungibilidade em sede recursal, à ausência de previsão legal para sua incidência, embora, no plano abstrato, a maioria das dúvidas fosse dissipada, reconhecendo-se, ainda, o esforço do legislador para evitar situações de dubiedade. Porém, nem sempre é possível estabelecer corretamente o recurso cabível em determinados casos concretos.
Em relação à observância do prazo, há controvérsia acerca da tese de que o recurso interposto há que respeitar o prazo daquele que deveria ter sido. Em sede jurisprudencial, o entendimento é o de que o recurso interposto equivocadamente deve ser interposto no prazo que seria o correto. No entanto, há corrente doutrinária respeitável que defende a tese da aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos, mesmo quando o recurso inadequado foi interposto no prazo mais dilatado que o previsto para o recurso considerado correto. Aduz Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha [07] o entendimento diverso de que "não se reputa correta a exigência deste pressuposto, pois as situações de dúvida podem envolver recursos com prazos diferentes (agravo de instrumento e apelação, por exemplo), quando, então, o respeito ao prazo seria imposição que esvaziaria a utilidade do princípio. [....] Não é, enfim, correta a exigência de observância do prazo para a aplicação do princípio da fungibilidade. O STJ, contudo, exige que se obedeça ao prazo para que se aplique o princípio". Na dúvida, a cautela sugere a interposição do recurso no menor prazo possível.
Quanto ao erro grosseiro, dificilmente ele existirá quando houver dúvida objetiva, já que a existência de controvérsia é um dos fatores que contribuem para que o erro não seja grosseiro. Neste sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina [08] ensinam que "a dúvida objetiva acerca de qual o recurso adequado para atacar determinada decisão pode se originar da imprecisão dos termos da lei, da divergência doutrinária quanto à natureza do pronunciamento e da circunstância de o juiz proferir um pronunciamento em lugar de outro. Pode-se dizer, de todo o modo, que há erro grosseiro: a) quando a parte faz uso de um recurso, no lugar de outro, afrontando de maneira flagrante os princípios da sistemática recursal do Código de Processo civil; b) e quando a jurisprudência e a doutrina são absolutamente indiscrepantes quanto ao cabimento de outro recurso, que não o interposto, contra a decisão recorrida. Considerou-se também erro grosseiro a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que indeferiu liminarmente embargos à execução. No caso, há regra expressa a respeito (CPC, art. 520, V). Já se decidiu, no entanto, em sentido oposto, pela aplicação do princípio da fungibilidade a agravo de instrumento interposto contra sentença que rejeitou embargos à execução".
A dúvida objetiva é expressão um pouco equívoca, segundo Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha [09], pois dúvida é sempre subjetiva, sendo necessário existir uma dúvida razoavelmente aceita, a partir de elementos objetivos. Quanto ao erro grosseiro, tal situação existiria quando nada justificaria a troca de um recurso pelo outro, pois ausente controvérsia sobre o tema.
Em suma, parte da doutrina [10] estabelece uma distinção entre erro grosseiro e dúvida objetiva. A dúvida deve ser fundada e objetiva, capaz de autorizar a interpretação errônea do sistema processual e o uso inadequado do recurso. Por outro lado, o erro grosseiro configura hipótese em que o recurso evidentemente não tem cabimento, como no caso de expressa indicação legal.
Conclusão
Os institutos fundamentais do direito processual são jurisdição, ação, defesa e processo, que se complementam para que o processo possa desenvolver-se lógica e homogeneamente, cumprindo sua função com auxílio de regras disciplinadoras.
O princípio é proposição elementar e fundamental que embasa uma teoria e da qual regras podem ser derivadas, constituindo-se em verdades ou juízos fundamentais alicerçadores ou de garantia. Cumprem os princípios funções primordiais na ordem jurídica processual.
No direito processual, o princípio da fungibilidade recursal deve ser compreendido como mecanismo de flexibilização da rigidez das normas processuais, possibilitando adaptar as regras processuais à realidade social, tendo sua gênese no princípio da instrumentalidade das formas e no princípio da economia processual, fundados no princípio da efetividade jurisdicional, na inafastabilidade do controle jurisdicional e devido processo legal, além de outras garantias constitucionais de processo.
O princípio da fungibilidade está em consonância com a necessidade de adaptação do direito a situações imprevistas, não padronizadas e com a velocidade das transformações sociais. O aproveitamento dos atos processuais que preencham os requisitos processuais fundamentais razoáveis é uma das características da fungibilidade, que deve sempre ser interpretada em consonância com a instrumentalidade processual.
O direito processual é instrumento do direito substancial, pois foi elaborado para a parte. Detectada a polêmica, deve o recurso ser conhecido, desde que preenchidos os requisitos para incidência da fungibilidade (prazo, erro grosseiro e dúvida objetiva), alguns com tempero e flexibilidade, dependendo do caso e da situação concreta, resultando no conhecimento do recurso, sob pena de denegar a justiça e afronta aos princípios constitucionais fundamentais de processo.
Uma ordem jurídica justa deve acompanhar a evolução da sociedade e o surgimento de novos direitos, evolução que deve gerar um novo, dinâmico e eficiente ordenamento jurídico, capaz de perseguir e alcançar com êxito a tão almejada justiça. O processo deve servir de instrumento para a realização do direito pleiteado, cujas decisões devem ser justas e úteis (efetivas), tendo o princípio do devido processo legal papel fundamental para que se alcancem esses objetivos. Sendo assim, o princípio da fungibilidade recursal deve ser pensado e aplicado dentro deste contexto funcional-instrumental.
Referências Bibliográficas
ASSIS, Araken de . Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 5ª ed. Salvador: Podivm, 2008.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Recursos e ações autônomas de impugnação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 64.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Manual dos recursos cíveis. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008
TARDIM, Luiz Gustavo. Fungibilidade das tutelas de urgência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
TEIXEIRA, Guilherme Freire de Barros. Teoria do princípio da fungibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da fungibilidade. Hipótese de incidência no processo civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Notas
- PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 273.
- DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 5ª ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 46.
- DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 5ª ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 46.
- ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 87.
- ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 92.
- WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Recursos e ações autônomas de impugnação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 64.
- DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 5ª ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 47.
- WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Recursos e ações autônomas de impugnação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 64.
- DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 5ª ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 46.
- TEIXEIRA, Guilherme Freire de Barros. Teoria do princípio da fungibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 149.