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Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais

Resumo:


  • As primeiras normas sobre substâncias tóxicas no Brasil remontam às Ordenações Filipinas (1603-1830), que puniam com perda de bens e degredo para a África quem tivesse ou vendesse substâncias como rosalgar e escamonéia, a não ser que fosse boticário licenciado.

  • Após as Ordenações Filipinas, houve um período sem legislação específica até o Código Penal de 1890, que criminalizou a venda de substâncias venenosas sem autorização. As políticas de drogas começaram a tomar forma com as convenções internacionais do início do século XX, que influenciaram legislações nacionais, inclusive no Brasil.

  • O Brasil passou por várias mudanças legislativas em relação às drogas, com destaque para o Código Penal de 1940 e a Lei 6.368/76, até chegar à Lei 11.343/2006, que criou o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e estabeleceu medidas para prevenção, atenção e reinserção social de usuários, além de repressão ao tráfico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A primeira legislação criminal no Brasil que puniu o uso e o comércio de substâncias tóxicas vinha contemplada nas Ordenações Filipinas, que tiveram vigência no Brasil de 1603 até 1830, quando entrou em vigor o Código Penal Brasileiro do Império. O texto era o seguinte:

Livro V

Título LXXXIX.

Que ninguém tenha em sua casa rosalgar, nem o venda nem outro material venenoso.

Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem solimao, nem água delle, nem escamonéa, nem ópio, salvo se for Boticario examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio. E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza algumas das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda, a metade para nossa Camera, e a outra para quem o accusar, e seja degredado para Africa até nossa mercê. E a mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas, que não forem Boticarios.

1. E os Boticarios as não vendão, nem despendão, se não com Officiaes, que por razão de seus Officios as hão mister, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e taes, de que se presuma que as não darão à outras pessoas, E os ditos Officiaes as não darão, nem a venderão a outrem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum dano, haverão a pena que de Direito seja, segundo o dano for.

2. E os Boticarios poderão metter em suas mezinhas os ditos materiaes, segundo pelos Médicos, Cirurgiões, e Escriptores for mandada. E fazendo o contrario, ou vendendo-os a outras pessoas, que não forem Officiaes conhecidos, pola primeira vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem accusar, e descobrir. E pela segunda haverão mais qualquer pena, que houvermos por bem

Como se vê, a pena era perder a fazenda ou ser deportado para África. No Código de 1830 não havia nenhuma menção sobre a proibição do consumo ou comércio de entorpecentes. Desse período até 1890 haviam apenas restrições esparsas em posturas municipais [01], como a proibição pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro da venda e uso do pito de pango, o cachimbo de barro usado para fumar maconha. O vendedor era multado em 20 000 réis, e os escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.

A proibição em nível nacional voltou no Código Penal de 1890, já sob o modelo republicano. O artigo 159 do Código, incluído no Título III da Parte Especial (Dos Crimes contra a Tranqüilidade Pública) previa como crime: "expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários". A pena era de multa. A proibição era destinada aos boticários, para prevenir o uso de veneno para fins criminosos. Nada pronunciava a respeito dos usuários. Até então não havia uma normalização que permitisse extrair uma coerência programática específica.

O quadro começou a mudar com o surgimento das primeiras Convenções Internacionais sobre drogas. Importante contextualizar o aparecimento de tais convenções.

Os europeus entraram em contato com um grande número de substâncias psicoativas desde as Grandes Navegações (século XVI), e as introduziram, progressivamente, em suas sociedades com finalidades médicas ou recreativas. No século XIX, Europa e Estados Unidos passaram a conviver com grande variedade de novas drogas, com as quais tinham pouca ou nenhuma identificação cultural. Paulatinamente, da expansão européia à revolução industrial, as substâncias psicoativas deixaram de ser ministradas segundo preceitos culturais, ritualísticos e litúrgicos, para se converterem em mercadorias, bens de consumo. O marco definitivo desse processo foram as Guerras do Ópio (1839 e 1865), pelas quais os ingleses, que declararam guerra à China em favor do "livre comércio" [02], garantiram o monopólio internacional, consolidaram o domínio no Extremo Oriente e implementaram a prática comercial de substâncias psicoativas em larga escala.

A partir de então, houve a popularização do consumo desses produtos no contexto sócio-cultural de cada nação - desprovido de qualquer ‘lastro cultural’ que funcionasse como mecanismo de controle informal do consumo -, o que acarretou uma série de desdobramentos e impactos sociais, tais como relatos de overdoses, complicações crônicas à saúde e o desmantelamento de hábitos sociais locais tradicionalmente instituídos.

Com isso, surgiu a necessidade de elaboração de políticas públicas, com o intuito de solucionar os prejuízos causados pela massificação do consumo dessas substâncias, que passou a ser considerado causa de morbidade, merecendo ações de saúde como qualquer outra doença.

Os Estados Unidos foram o principal expoente na cruzada moral contra o consumo de drogas. Passaram a tentar, em nível internacional, controlar o comércio de ópio para fins não medicinais. Haveria, por parte dos americanos, dois motivos, que se sobreporiam aos aspectos sanitários: adaptar os imigrantes do século XIX ao estereótipo moral da elite anglo-saxônica protestante, penalizando os desviantes; e conquistar espaço de manobra e poder econômico nos mercados do oriente, então dominado pelos ingleses.

A pressão americana faz com que em 1909, representantes de países com colônias no Oriente e na Pérsia se reunissem em Shangai na Conferência Internacional do Ópio. Posteriormente, realizou-se em 1911 a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Dessa conferência resultou a "Convenção do Ópio", em 1912, pela qual os países signatários criaram o compromisso de tomar medidas de controle da comercialização da morfina, heroína e cocaína nos seus próprios sistemas legais. Vale ressaltar que outras substâncias, como a cocaína, foram adicionadas devido a uma pressão inglesa, para que o ônus econômico da proibição recaísse também sobre outros países (França, Holanda, Alemanha), que estavam tendo lucros com o comércio da cocaína através da emergente indústria farmacêutica [03].

No próprio ano de 1912, com as pressões internacionais que até hoje perduram, o Brasil subscreveu o protocolo suplementar de assinaturas da Conferência Internacional do Ópio. O Decreto 2.861, de 08 de julho de 1914, sancionou a Resolução do Congresso Nacional que aprovara a adesão. Por meio do Decreto 11.481, de 10 de fevereiro de 1915, que mencionava "o abuso crescente do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína" o Presidente Wenceslau Braz determinava a observância da Convenção.

A partir daí, a política criminal brasileira começou a adquirir uma configuração definida, que Nilo Batista [04] chamou de "modelo sanitário", caracterizado pelo aproveitamento dos saberes e técnicas higienistas, com as autoridades policiais, jurídicas e sanitárias exercendo funções contínuas, às vezes fungivelmente. O viciado era tratado como doente, com técnicas similares às do contagio e infecção da febre amarela e varíola e não era criminalizado, mas objeto de notificações compulsórias para internação com decisão judicial informada com parecer médico. O próprio tráfico se alimentava do desvio da droga de seu fluxo autorizado, feito por boticários, práticos, funcionários da alfândega, etc. O consumo de drogas não era massivo, mas ligado a grupos exóticos, a um universo misterioso, sem significação econômica.

Sucederam, então, os Decretos 4.294, de 06 de julho de 1921, - que revogou o artigo 159 do Código Penal de 1890 - e o Decreto 14.969, de 03 de setembro do mesmo ano. Dispunham a respeito da internação dos toxicômanos, sobre o controle dos entorpecentes nas alfândegas e farmácias, e previram a responsabilização não só do farmacêutico como também dos particulares que participassem, de qualquer forma, na venda ou prescrição de tais substâncias, deixando claro que se tratava de crime comum.

Com o fim da primeira guerra mundial e a posterior formação da Liga das Nações, ocorreram outras convenções, sendo a Convenção de Genebra de 1925 a mais importante. Todas subscritas pelo Brasil e promulgadas internamente [05]. Configurava-se o que Salo de Carvalho [06] denominou de transnacionalização do controle.

Com as sucessivas convenções internacionais veio o Decreto 20.930, de 11 de janeiro de 1932, alterado pelo Decreto 24.505, de 29 de junho de 1932, e revogado pelo Decreto 891, de 25 de novembro de 1938. O Decreto 20.930 passou a considerar a toxicomania como doença de notificação compulsória e determinou, entre outras coisas, que a lista das substancias tóxicas deveriam ser revisadas periodicamente. As normas criminalizadoras do Decreto foram consolidadas no Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932 (Consolidação das Leis Penais, de autoria do Desembargador Vicente Piragibe).

Iniciava-se o fenômeno que Zaffaroni [07] chamou de "multiplicação dos verbos": o tipo do tráfico começou a acumular núcleos (vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou, de qualquer modo, proporcionar). A posse ilícita passou a ser criminalizada (art. 26). Foram trazidos ainda vários efeitos severos penais e extrapenais: inafiançabilidade do tráfico; perda do cargo se funcionário público; exclusão e trancamento da matrícula para os estudantes; proibição da concessão do sursis e do livramento condicional; equiparação do crime tentado ao crime consumado; expulsão do estrangeiro do território nacional; reincidência era causa de duplicação da pena aplicada. Para se ter uma idéia do contexto moralista dessa legislação, o art. 36 previa como agravante "a procura da satisfação de prazeres sexuais nos crimes deste decreto".

Em 1936, surgiu o Decreto nº 730, de 28 de abril daquele ano, que instituiu a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, cuja atribuição, dentre outras, era esboçar um anteprojeto de consolidação de todas as leis e decretos até então editados sobre a matéria. Por fim, antes do advento do Código Penal de 1940, tivemos o Decreto-Lei 891/38, de vida curta. Este antecipou a punição para os atos preparatórios (plantar, cultivar, colher) e tornou mais radical a internação obrigatória, que poderia ocorrer "quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo, ou for conveniente à ordem pública" (art. 29 §), não poderia ser no domicílio (art. 28) e poderia ser por tempo indeterminado (art. 29, caput).

Adveio o Código Penal de 1940. A matéria passou a ser tratada no capítulo de crimes contra a saúde pública, art. 281, com o caput sob a rubrica: Comércio, Posse ou Uso de Entorpecente ou Substância que determine Dependência Física ou Psíquica. Foram equiparados tráfico e porte para uso próprio (§1º, inciso III), descriminalizou-se o consumo e reduziu-se o número de verbos. De resto, apenas distribuiu entre parágrafos e incisos as disposições incriminadoras do Decreto-Lei 891/38.

Depois disso e até 1964 foram instituídos alguns Decretos com pequenas mudanças. O decreto-lei 4720/42 fixou "normas para o cultivo de plantas entorpecentes e para a extração, transformação e purificação dos seus princípios ativo-terapêuticos". O Decreto-lei nº 8.646 de 11 de janeiro de 1946, que alterou o Decreto-lei nº 891/98, centralizando em determinada repartição pública o poder de autorizar a "importação, e exportação de substâncias entorpecentes a drogarias, laboratórios, farmácias e estabelecimentos fabris". E o Decreto nº 20.397, de 14 de janeiro de 1946, que regulou o funcionamento da indústria farmacêutica no Brasil, tratando nos arts. 19 a 26 dos laboratórios que fabricassem especialidades contendo entorpecentes.

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Com o fim do Estado Novo e a redemocratização em 1946, a questão das drogas foi sendo relegada a segundo plano, com estatísticas irrisórias sobre o tráfico e o consumo abusivo, que não chegavam a chamar atenção de juristas, criminólogos e legisladores. Contudo, a transformação em mercadoria aventava o quão lucrativo seria esse negócio no futuro, além de contribuir para tirar dos operadores sanitários o papel principal no comércio.

Firmaram-se, em seguida, dois protocolos sobre o controle das drogas. Um, assinado em Paris em 19 de Novembro de 1948, colocando sob fiscalização internacional certas drogas não visadas. O outro, o Protocolo para Regulamentar o Cultivo de Papoula e o Comércio de Ópio, promulgado em Nova Iorque (23 de junho de 1953).

Em 1961, surge a Convenção Única Sobre Entorpecentes de Nova York - ratificada por cerca de cem países, liderados pelos Estados Unidos -, unificando e fortalecendo os anteriores tratados sobre drogas. A Convenção estabelece as medidas de controle e fiscalização, disciplina o procedimento para a inclusão de novas substâncias que devam ser controladas e fixa a competência das Nações Unidas em matéria de fiscalização internacional de entorpecentes. Aponta ainda as medidas que devem ser adotadas no plano nacional para a efetiva ação contra o tráfico ilícito, prestando-se aos Estados assistência recíproca em luta coordenada, providenciando que a cooperação internacional entre os serviços se faça de maneira rápida. Trouxe disposições penais, recomendando que todas as formas dolosas de tráfico, produção, posse etc., de entorpecentes, em desacordo com a mesma, fossem punidas adequadamente e recomendou tratamento médico aos toxicômanos e que fossem criadas facilidades à sua reabilitação.

Em terra brasilis, com o golpe militar de 1964, criaram-se as condições para a implantação daquilo que Nilo Batista batizou de modelo bélico [08], com o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas. Sobrando o modelo sanitário para quem se encaixasse no estereótipo da dependência, isto é, os jovens de classe média e alta [09]. No mesmo ano, já sob a ditadura, o Decreto nº 54.216 promulgou a Convenção Única sobre Entorpecentes e a Lei 4.451 alterou a redação do artigo 281 do Código Penal, acrescentando o verbo "plantar".

É necessária uma breve análise do contexto histórico que favoreceu a mudança do modelo sanitário para o modelo bélico. Estava-se na época da "guerra fria", com "uma aliança de setores militares e industriais para a qual a iminência da guerra era condição de desenvolvimento" [10]. Havia gastos bilionários com armamentos por parte dos dois blocos antagônicos (Estados Unidos e União Soviética), sendo fundamental para ambos a militarização das relações internacionais e também em nível interno. Com o suporte ideológico da doutrina de segurança nacional, criou-se a figura do inimigo interno – que transbordou os limites da guerra fria, perdurando até hoje -, antes os criminosos políticos, depois os comuns.

Por outro lado, a década de 60 era a década dos movimentos de contracultura, como os "hippies"; dos movimentos de protesto político, como as guerrilhas na América Latina. Especialmente, era o momento do estouro da droga, aumentando o consumo da maconha também entre jovens de classe média e alta, e estourava também a indústria farmacêutica, que criou drogas sintéticas, como o LSD [11]. Como o consumo já não era apenas dos guetos, passou a se mostrar um problema moral, uma "luta entre o bem e o mal". O mal, representado pelo pequeno distribuidor, vindo dos guetos, que incitaria o consumo, qualificado como delinqüente. O bem, pelo consumidor, "filho de boa família", corrompido pelos traficantes, qualificado como doente/dependente, merecendo tratamento por médicos, psicólogos e assistentes sociais.

"O consumo de substâncias psicoativas passa a ser tratado como questão de segurança nacional, (...) uma vez que já não se podia aceitar que tantos jovens americanos fossem desprovidos de virtudes" [12].

Assim, surgem os discursos, absorvidos no âmbito jurídico, sustentando que

a generalização do contacto de jovens com drogas devia ser compreendida, no quadro da guerra fria, como uma estratégia do bloco comunista, para solapar as bases morais da civilização cristã ocidental, e que o enfrentamento da questão devia valer-se de métodos e dispositivos militares. [13]

Assim, os EUA colocaram em marcha uma prática efetiva de intervenções diplomático-militares [14], transferindo para os países marginais a responsabilidade pelo consumo interno, com a teoria de países-vítimas e países-agressores. Deste lado, os países produtores, como Colômbia, Bolívia e China. Do lado das vítimas, Estados Unidos e os países da Europa Ocidental. Ou seja, "a criminalização do estrangeiro aplaca a vitimização doméstica" [15]. Foi dado o passo para transnacionalizar o controle [16], com a globalização da repressão às drogas. Reunia-se o elemento religioso-moral com o elemento bélico - com cada vez mais verbas para o capitalismo industrial de guerra -, que resulta numa "guerra santa" contra as drogas, que tem a vantagem de não ter restrições nem padrões regulativos, com os fins justificando os meios [17].

Os reflexos do projeto externo norte-americano incidiram diretamente nas políticas de segurança pública de praticamente todos os países da América Latina [18], que passaram a assumir o discurso dos EUA. Dessa forma, se adequando aos compromisso internacionais, o Presidente Castello Branco em 10 de fevereiro de 1967 edita o decreto-lei 159, estabelecendo no art. 1º que à qualquer substância capaz de determinar dependência física ou psíquica, mesmo que não considerada entorpecente, seria aplicada a legislação repressiva sobre drogas. O parágrafo único dava ao Diretor Nacional do Serviço de Fiscalização da Medicina e Farmácia do Departamento Nacional de Saúde a atribuição de relacionar as substâncias. Em março do ano seguinte, foi editado o Decreto nº 62.391, dispondo sobre a fiscalização em laboratório da produção de substâncias tóxicas e entorpecentes.

Importante alteração trouxe o Decreto-lei nº 385, de 26 de dezembro de 1968, que alterou a redação do art. 281 do Código Penal. O entendimento jurisprudencial do STF era que o artigo não abrangia os consumidores, vez que em seu parágrafo 3º previa a punição do induzidor ou o instigador, estando excluído o usuário, visto que bastaria a regra geral do art. 25 (atual art. 29) do Código Penal de 1940 para configurar a co-autoria [19]. Devido à descriminalização via jurisprudência, o Decreto-lei equiparou a pena do usuário, que "traz consigo para uso próprio", à do traficante, indo contra a orientação internacional, que trazia o discurso de diferenciação. De acordo com Ney Fayet de Souza, citado por Salo de Carvalho, "o Decreto-Lei nº 385 abalou a consciência científica e jurídica da Nação, dividindo juristas, médicos, psiquiatras, psicólogos" [20]

Alguns meses depois, o Decreto-Lei 753, de 11 de agosto de 1969, tratou da fiscalização de laboratórios que produzissem ou manipulassem substâncias entorpecentes e equiparadas mostrando preocupação com a distribuição de amostras desses produtos.

Dando grande passo para a completa descodificação da matéria, veio a Lei 5.276 de 29 de outubro de 1971, que manteve, contudo, o art. 281 do Código Penal e a equiparação entre usuário e traficante, aumentando a pena para 01 a 06 anos de reclusão. Em seu artigo 1º a Lei convoca a nação para a "guerra santa contra as drogas", dizendo ser dever de todos "colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica". Como salientou Nilo Batista, utilizou da estrutura normativa da imposição do dever jurídico, fundamento dos ilícitos omissivos, para converter opiniões dissidentes em espécie de cumplicidade com as drogas [21]. Em decorrência disso, diretores de escola ficavam obrigados, sob pena do cargo, a denunciar casos de uso e tráfico ocorridos no âmbito escolar (art. 7º). Aliás, se assim fizessem estariam prestando "serviço relevante" (art. 24). Voltou o caso de trancamento da matrícula para alunos flagrados com qualquer substância "maligna" (art. 8). Além disso, incluiu o §5º no art. 281, inaugurando no cenário jurídico a famigerada "quadrilha de dois" (Associarem-se duas ou mais pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer qualquer dos crimes previstos neste artigo e seus parágrafos).

No âmbito processual, criou um procedimento bem célere. A lei trouxe ainda a inimputabilidade do usuário que "em razão do vício, não possui êste a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acôrdo com esse entendimento" (art. 10); estaria sujeito a uma medida de recuperação, consistente em internação em estabelecimento hospitalar para tratamento psiquiátrico pelo tempo necessário à sua recuperação. A lei foi regulamentada pelo Decreto nº 69.845, de 27 de dezembro de 1971.

Neste mesmo ano, em Viena, se firmou a Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas, visando atualizar a fiscalização, devido à diversificação e ampliação do uso de drogas. Introduziu controle a novas drogas, sintéticas, como as anfetaminas e o LSD. No ano seguinte, na data de 26 de março, em Genebra, firmou-se protocolo modificando e aperfeiçoando a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961. Foi alterada a composição e as funções do Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes, ampliadas as informações que deviam ser fornecidas para controle da produção de entorpecentes naturais e sintéticos e salientada a necessidade de tratamento ao toxicômano. O Decreto nº 76.248, de 12 de setembro de 1975, promulgou o Protocolo de Emendas da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961.

Em 1976 entra em vigor a Lei 6.368/76, que revogou o art. 281 do Código Penal, marcando a completa descodificação da matéria e instaurou no Brasil "modelo inédito de controle, acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais refletidas nos tratados e convenções internacionais" [22]. As condutas criminalizadas não diferiram, havendo apenas aumento das penas. Permaneceu o dever jurídico do art. 1º da lei anterior, mas a palavra combate foi substituída pela expressão "prevenção e repressão". Alunos já não teriam as matrículas trancadas, diretores não eram obrigados a delatar. Mantida a cláusula de inimputabilidade para adictos consoante a lei anterior. O Decreto nº 78.992 de 21 de dezembro de 1976 regulamentou a lei.

Passados doze anos, foi concluída a Convenção de Viena de 1988, prevendo medidas abrangentes contra o tráfico de droga, incluindo disposições contra o branqueamento de capitais e o desvio de precursores químicos. Prevê ainda a cooperação internacional através, por exemplo, da extradição de traficantes de droga.

No mesmo ano, em harmonia com a Convenção, foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Nela encontramos, no título dos direitos fundamentais, o art. 5º, inciso XLIII, equiparando o tráfico de drogas aos tais crimes hediondos, prevendo a inafiançabilidade e a proibição de graça ou anistia. Ainda como "direito fundamental" temos o inciso LI do mesmo artigo autorizando a extradição do brasileiro naturalizado se "comprovado envolvimento com tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins". O artigo 144, parágrafo 1º, II, dá a Polícia Federal atribuição de prevenir e reprimir o tráfico de drogas. E o artigo 243 previu a expropriação das terras e confisco dos bens decorrentes do tráfico de drogas.

Com o fim das ditaduras latino-americanas apoiadas pelos EUA e o fim da "guerra fria" era necessário um novo motivo para justificar a intervenção norte-americana no plano internacional. O vácuo deixado pela queda progressiva da ameaça comunista seria ocupado pelo narcotráfico, um novo perigo identificado pelo governo norte-americano. Assim seria possível ocupar a Amazônia, e ter fuzileiros e conselheiros na Colômbia, por exemplo. O discurso da segurança nacional é deslocado para esse novo inimigo.

Nesse contexto, dois anos depois, é editada a Lei 8.072/90, regulamentando e extrapolando o inciso XLIII do art. 5º da CF. Além das restrições constitucionais, acrescentou ao tráfico de drogas a proibição de progressão de regime, liberdade provisória e indulto, além de aumentar prazos da prisão temporária e para o livramento condicional.

No ano de 2002, sob o argumento do senso comum, incluindo juristas, que "a punição do comércio maléfico necessariamente deve ser agravada, e de forma exemplar" [23], é aprovada mais uma mudança legislativa. Resultou na Lei nº 10.409/02, que teve o capítulo acerca dos crimes e das penas vetado pelo Presidente da República, provocando uma confusão legislativa. Aplicava-se a parte processual dessa lei, com os crimes e penas da Lei nº 6.368/76.

A última mudança legislativa ocorreu em 23 de agosto de 2006, quando foi promulgada a Lei nº 11.343, a qual institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. A lei reforça o discurso médico jurídico, aplicando modelos de descriminalização para o usuário e penas mais altas para as condutas identificadas como tráfico de drogas.


BIBLIOGRAFIA

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http://www.incb.org/incb/en/convention_1971.html


Notas

  1. Conceitualmente, postura municipal significa: "o conjunto de regras de conduta dos munícipes de uma cidade visando o bem estar da coletividade".

  2. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. 1ªed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007, p. 77.

  3. Ibidem, p. 80

  4. BATISTA, Nilo. "Política criminal com derramamento de Sangue". Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, ano 5, n.º 20, p. 129, outubro-dezembro de 1997.

  5. Pelos Decretos 22.950, de 18 de julho de 1933, 113, de 13 de outubro de 1934 e 2.994, de 17 de agosto de 1938.

  6. DE CARVALHO, Salo. Política Criminal de Drogas no Brasil, A - Estudo Criminológico e Dogmático. 4ª ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, pp. 14-19.

  7. La legislación antidrogas latinoamericanas: sus componentes de derecho penal autoritário. In: Fascículos de Ciencias Penais, v. 3, nº 2, Porto Alegre: 1990, Fabris, p. 18.

  8. ob. cit.

  9. Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

  10. BATISTA, Nilo. ob. cit., p.138.

  11. DEL OLMO, Rosa. A Face Oculta da Droga. Rio deJaneiro: Revan, 1990, p.33.

  12. ZACCONE, Orlando. ob. cit., p. 88/89.

  13. BATISTA, Nilo. ob. cit. p. 140.

  14. RODRIGUES, Tiago. Narcotráfico e as Guerras Presentes (Parte 2). Disponível em: http://www.cenariointernacional.com.br/ri/default3.asp?s=artigos2.asp&id=11. Acesso em: 10 jul. 2008. Diz o autor que o discurso da guerra às drogas deve ser entendido como uma diretriz de segurança nacional na medida em que colocou em marcha uma prática efetiva de intervenções diplomático-militares patrocinadas pelos Estados Unidos.

  15. DE CARVALHO, Salo de. Política Criminal de Drogas no Brasil, A - Estudo Criminológico e Dogmático. 4ª ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, p. 22.

  16. Transnacionalizar o controle das drogas, que é parte de um projeto maior, de transnacionalização/uniformização do controle social.

  17. BATISTA, Nilo. ob. cit., p. 140/141.

  18. DE CARVALHO, Salo. ob. cit., p.22.

  19. DE CARVALHO, Salo. Política Criminal de Drogas no Brasil, A. Rio de Janeiro: Ed. Luam, 1997, p.24.

  20. DE CARVALHO, Salo. Política Criminal de Drogas no Brasil, A - Estudo Criminológico e Dogmático. 4ª ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, p. 18.

  21. Ibidem, p. 139.

  22. Ibidem, p. 21.

  23. MARCÃO, Renato. A lei e o crime de tráfico de drogas . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 87, 28 set. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4202/a-lei-e-o-crime-de-trafico-de-drogas>. Acesso em: 14 ago. 2008.

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SILVA, Antônio Fernando Lima Moreira. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19551. Acesso em: 22 dez. 2024.

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