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Primeiros apontamentos sobre a nova modalidade de usucapião prevista pelo art. 1.240-A do Código Civil

15/07/2011 às 11:07
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Resumo: Discute-se a inserção, no ordenamento jurídico brasileiro, de mais uma modalidade de usucapião, prevista pelo art. 1.240-A do Código Civil. O acréscimo, operado pela edição da Lei n. 12.424/2011, é de notória relevância, cumprindo equacionar adequadamente os pressupostos do novo instituto.

Entrou em vigor, em 16 de junho de 2011, a Lei n. 12.424, que, entre outras disposições, cuidou de inserir no Código Civil o art. 1.240-A e seu parágrafo 1º. Instituiu-se, com a reforma, uma nova modalidade de usucapião no ordenamento brasileiro.

Eis o texto do art. 1.240-A: 

"Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 

§ 1º  O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez".

Houve ainda o veto ao que seria o § 2º do art. 1.240-A, que continha o seguinte teor: "No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação". Como justificativa para o veto, entendeu-se que a disposição violaria o pacto federativo, ao interferir sobre a competência tributária dos Estados, o que afronta o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição.

A ideia que orienta a edição desta nova forma de usucapião – a que pode ser atribuída, ainda que provisoriamente, a nomenclatura usucapião familiar – é a de permitir que um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros oponha contra o outro a pretensão de usucapir a parte que lhe pertence. Com isso, o ex-cônjuge ou ex-companheiro que continue a habitar o imóvel abandonado pelo outro consorte ou convivente passará a titularizar a integralidade da propriedade, outrora mantida em regime de condomínio (art. 1.314 do Código Civil) entre o casal.

Para compreender o sentido da nova disposição, cumpre destacar, em primeiro lugar, que esta é uma nova modalidade de usucapião especial urbana (também chamada usucapião "pro moradia"). Trata-se de derivação do disposto no art. 1.240 do Código Civil, que disciplina a citada usucapião especial, nos mesmos moldes previstos pelo art. 183 da Constituição da República. Este dispositivo prevê que "aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".

Os pressupostos comuns a ambas as espécies – usucapião especial urbana e usucapião "familiar" – são evidentes: em qualquer caso, é necessário que o pretendente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural e exerça posse mansa, pacífica e ininterrupta sobre imóvel urbano com extensão de até 250 metros quadrados, para fins de moradia própria ou de sua família. Também não se permite que a medida seja concedida mais de uma vez em favor da mesma pessoa, em qualquer das duas hipóteses.

Há, contudo, diferenças notáveis entre as figuras. Na nova espécie, ao contrário daquela contemplada no art. 1.240 do Código Civil, exige-se, para além dos pressupostos já assinalados, que o pretendente seja co-proprietário do imóvel em conjunto com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro. A disposição permitirá a aquisição da parte ideal pertencente ao seu ex-cônjuge ou companheiro que tenha abandonado o lar, tornando-se o interessado que permaneça na posse do bem seu proprietário exclusivo. Ademais, o prazo, neste caso, é sensivelmente inferior às demais espécies de usucapião contempladas no Código Civil, pois basta ao pretendente exercer a posse por um período ininterrupto de 2 anos para adquirir a fração de propriedade outrora pertencente ao seu ex-cônjuge ou ex-companheiro.

Cabe recordar que o abandono do lar, que aqui justifica a aquisição da quota-parte da propriedade do cônjuge ou companheiro que incorre neste ato de abandono, também é considerado como um dos fatores que podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida entre o casal, conforme determina o art. 1.573, inciso IV do Código Civil. A propósito, é interessante invocar o teor desta disposição legal, que estipula que somente o abandono voluntário pode ser tratado como infração aos deveres conjugais (ou da união estável, por extensão). Assim, embora o novo art. 1.240-A do Código Civil não o preveja expressamente, forçoso é entender que o ato de abandono a justificar a espécie de usucapião em apreço deve ser voluntário e injustificado.

Por um lado, a nova disposição pode ser vantajosa, posto que, ao menos à partida, parece contemplar adequadamente o cônjuge ou companheiro desamparado com a aquisição da fração da propriedade que integra o patrimônio daquele que abandonou o lar familiar. A medida teria o mérito de extinguir o regime de condomínio incidente sobre um imóvel que, até então, pertence conjuntamente a duas pessoas que já não mantêm a condição de casadas ou companheiras.

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Por outro lado, a medida pode contribuir para fomentar ainda mais as disputas entre os casais, porque esta nova forma de usucapião pressupõe o abandono do lar por um dos cônjuges ou companheiros, requisito que deverá ser comprovado pelo outro. Com isso, certas batalhas judiciais que têm por objetivo imputar a um ou outro membro da família a responsabilidade pela prática de alguma infração que possa ter ensejado a ruptura da relação tendem a se tornar ainda mais turbulentas, já que a discussão sobre o eventual abandono do lar passa a ser elencada como pressuposto desta recente espécie de aquisição de propriedade por usucapião. Em tempos em que se prega a extinção da discussão sobre a culpa para a dissolução dos casamentos e uniões estáveis, esta nova previsão pode acirrar as disputas entre casais, agora em busca da aquisição da propriedade integral do imóvel em que residiam antes da ruptura do relacionamento.

Outro aspecto a considerar diz respeito ao período a partir do qual se permite a contagem do prazo de 2 anos. Naturalmente, não se pode admitir que os casais que já tiveram seus laços afetivos extintos antes da edição da Lei n. 12.424/2011 venham a invocar de imediato a figura. Somente a partir da entrada em vigor da norma, que ocorreu em 16 de junho deste ano, será possível iniciar a contagem do lapso temporal exigido pelo legislador, sob pena de se comprometer a segurança jurídica e surpreender o ex-cônjuge ou ex-companheiro a quem se impute o abandono do lar.

Ainda há mais a refletir sobre a contagem do prazo. Repare-se que a lei determina que a propriedade dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar pode ser usucapida por aquele que permanece na posse do imóvel, para fins de moradia própria ou de sua família. A ser interpretada em sua literalidade, a disposição somente permitiria a fluência do prazo a partir do momento em que houvesse o divórcio ou a dissolução da união estável, momentos estes que fazem cessar a existência da entidade familiar, tornando os seus membros, finalmente, ex-cônjuges ou ex-companheiros. Assim, por exemplo, se um casal ainda se mantiver formalmente casado, apesar da separação de fato e do abandono do lar por parte de um dos cônjuges, não será possível decretar a usucapião em apreço, já que ainda não houve a dissolução do matrimônio, o que não permite qualificar as partes como ex-cônjuges.

A ser tomada esta derradeira interpretação como correta, nem mesmo nos processos judiciais de divórcio litigioso a questão seria aventada. A mera separação de fato do casal ainda não seria suficiente, em princípio, para permitir a incidência desta nova figura jurídica. Caberia, pois, em primeiro lugar, decretar o divórcio e colocar fim ao casamento, para que se pudesse atribuir aos outrora casados a condição de ex-cônjuges, permitindo-se, agora sim, a discussão sobre a usucapião.

É certo que esta visão acerca do instituto pode dificultar a sua aplicação prática, o que enseja o questionamento: teria sido este o intuito do legislador? Talvez seja possível afirmar que sim, mesmo porque não podem correr, entre os cônjuges, os prazos para a prescrição, seja ela extintiva ou aquisitiva (ou simplesmente usucapião, neste último caso). É o que se extrai da análise dos arts. 197, I e 1.244 do Código Civil. Por ser vedado contar o prazo de usucapião durante a vigência da sociedade conjugal, em tese estamos diante de um instituto que somente produz efeitos após o divórcio, na hipótese do casamento, ou da dissolução da união estável.

As discussões aqui aventadas não são as únicas preocupações a ter em mente, mas consistem em apontamentos iniciais acerca do tema. À medida que os juristas passarem a se debruçar sobre o novo instituto e as primeiras decisões judiciais sobre ele começarem a ser proferidas, certamente outros debates virão à tona. Com este esboço, no entanto, espera-se ter ao menos ensaiado algumas das questões mais tormentosas ensejadas pela edição desta nova modalidade de usucapião, prevista pelo art. 1.240-A do Código Civil.

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Sobre o autor
Adriano Marteleto Godinho

Professor Universitário. Mestre em Direito Civil pela UFMG e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODINHO, Adriano Marteleto. Primeiros apontamentos sobre a nova modalidade de usucapião prevista pelo art. 1.240-A do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2935, 15 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19573. Acesso em: 19 abr. 2024.

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