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Responsabilidade civil decorrente de acidente de trabalho ou doença ocupacional

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09/10/2011 às 09:46
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A responsabilidade civil pode ensejar ações coletivas (por exemplo, danos morais coletivos em razão do descumprimento de normas de segurança no trabalho) ou individuais (indenizações por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho ou doença ocupacional).

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 ESFERAS DE RESPONSABILIDADE DECORRENTES DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. 2 ACIDENTE DE TRABALHO E DOENÇA OCUPACIONAL – CONCEITO. 3 NEXO CAUSAL. 3.1 Presunção relativa de nexo causal decorrente do reconhecimento deste pela Previdência . 3.2 Presunção relativa de nexo causal decorrente da emissão de CAT pelo empregador.3.3 Nexo técnico epidemiológico.3.4 Pluralidade de causas – concasualidade . 3.5 Causas laborais e empregadores diversos . 4 RESPONSABILIDADE CIVIL ACIDENTÁRIA. 4.1 Inexistência de óbice constitucional à responsabilidade objetiva do empregador . 4.2 Aferição de atividade de risco . 4.3.Responsabilidade subjetiva com presunção de culpa . 5 DANOS MATERIAS – LUCROS CESSANTES E PENSIONAMENTO. 5.1 Termos inicial e final . 5.2 Quantificação. 5.3 Base de cálculo. 5.4 Atualização pelo salário mínimo. 5.5 Não afastamento da indenização em razão da percepção de benefício previdenciário nem de salários . 5.6 Constituição de capital. 5.7 Parcela única . 6 DANOS MATERIAS – TRATAMENTO, MEDICAMENTOS E A POLÊMICA DO PLANO DE SAÚDE . 7 DANOS MORAIS, ESTÉTICOS E OUTROS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. 8 ISENÇÃO - DESCONTOS FISCAIS E PREVIDENCIÁRIOS. 9 INTERVENÇÃO DE TERCEIROS (SEGURADORA) – INCOMPATIBILIDADE COM O PROCESSO DO TRABALHO E INCOMPETÊNCIA MATERIAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Em 2001 ocorreram no país cerca de 340 mil acidentes de trabalho. Em 2007, o número elevou-se para 653 mil, chegando, em 2009, a preocupantes 723 mil ocorrências, com um saldo de 2.496 óbitos (quase sete mortes por dia), além de um custo anual para os cofres públicos de aproximadamente R$ 10,7 bilhões com o pagamento de auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadorias acidentárias [01].

Em tal contexto, ante a gravidade da questão, considerando o vetor lançado pelo Tribunal Superior do Trabalho em campanha nacional pela prevenção de acidentes de trabalho e pelo fortalecimento da política de segurança e saúde laboral, bem como considerando que uma atuação célere e efetiva do Poder Judiciário possui grande eficácia pedagógica, estimulando o investimento na melhoria do ambiente de trabalho e na prevenção de danos à saúde do trabalhador, passamos a colacionar breves comentários sobre algumas das mais freqüentes questões que têm sido trazidas à discussão em juízo acerca do tema, na expectativa de colaborar para o aprofundamento do respectivo debate.


1 ESFERAS DE RESPONSABILIDADE DECORRENTES DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

A higidez do meio ambiente de trabalho implica em responsabilidade nas esferas penal, previdenciária, administrativa, trabalhista e civil [02]. Pode-se acrescer a tal rol ainda o impacto na área tributária.

Na área penal, os acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais podem implicar na configuração dos crimes de homicídio, lesões corporais ou de perigo comum (arts. 121, 129 e 131 do Código Penal), contravenção penal por não cumprimento das normas de segurança e higiene do trabalho (art. 19 da Lei 8.213/91), bem como atrair as sanções penais previstas na legislação ambiental (art. 15 da Lei 6.938/81 e arts. 3º, 8º, 21 e 22 da Lei 9.605/98, aplicando-se inclusive à pessoa jurídica).

No que refere à seara previdenciária, há responsabilidade objetiva do INSS em amparar a vítima ou sua família, sob a forma de auxílio-doença acidentário, aposentadoria por invalidez acidentária, auxílio-acidente, pensão por morte e reabilitação profissional e social, sem prejuízo da correspondente ação regressiva contra o causador do dano, nos casos de "negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho" [03], [04].

Administrativamente, temos as sanções aplicáveis pelos órgãos de inspeção do trabalho, como multas (art. 201 da CLT), interdição de estabelecimento, setor ou máquina, bem como embargo de obra (art. 161 da CLT).

No âmbito da responsabilidade trabalhista em relação ao ambiente de trabalho temos o pagamento de adicionais de remuneração para o trabalho em atividades penosas, insalubres, ou perigosas, a estabilidade provisória do acidentado (art. 118 da Lei 8.213/91), o pagamento do FGTS do período de auxílio-doença acidentário (art. 15, §5º da Lei 8.036/90) e rescisão indireta do contrato de trabalho por falta grave do empregador (art. 483 da CLT).

Em termos tributários, o reconhecimento do caráter acidentário de um agravo à saúde do trabalhador pelo INSS impõe custos adicionais, como a incidência do Fator Acidentário de Prevenção – FAP sobre o Seguro de Acidentes de Trabalho – SAT, podendo resultar na redução pela metade ou até dobrar as alíquotas do SAT "de 1%, 2% ou 3% da tarifação coletiva por subclasse econômica, incidentes sobre a folha de salários das empresas para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho" [05]. "O FAP varia anualmente. É calculado sempre sobre os dois últimos anos de todo o histórico de acidentalidade e de registros acidentários da Previdência Social, por empresa" [06], com base tanto nos acidentes notificados pela emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, como naqueles apurados a partir do Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP, que abordaremos mais adiante.

Finalmente temos a responsabilidade civil, que pode ensejar tanto pretensões pleiteadas em tutela coletiva (por exemplo, danos morais coletivos em razão do descumprimento de normas de segurança quanto ao meio ambiente de trabalho) ou de forma individual, consubstanciada nas indenizações por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho ou doença ocupacional, em seus diversos desdobramentos.

Como já mencionado, passaremos a abordar algumas das questões mais freqüentes nos processos individuais acidentários em trâmite perante a Justiça do Trabalho, quais sejam, a caracterização do próprio acidente de trabalho ou doença ocupacional como tais e a decorrente discussão acerca da responsabilidade civil.


2 ACIDENTE DE TRABALHO E DOENÇA OCUPACIONAL - CONCEITO

A Lei 8.213/91, em seu art. 19, traz o conceito de acidente de trabalho:

Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

Trata-se do conceito de acidente de trabalho típico, que se dá no exercício do trabalho face à ocorrência de fato súbito e violento, provocado por uma causa exterior. A par do acidente típico, existem as chamadas doenças ocupacionais, gênero do qual constituem espécies a doença profissional e a doença do trabalho, como disciplinado no artigo 20 da Lei 8.213/91, as quais se equiparam ao acidente de trabalho por força de lei, deste se diferenciando pelo fato de não decorrer de um fato abrupto, mas de um progressivo desencadeamento. Vejamos:

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:

I - doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;

II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.

A doença profissional, assim, é aquela peculiar a determinadas atividades ou profissões, sendo o nexo causal da doença com a atividade presumido, enquanto a doença do trabalho é atípica, ainda que tenha origem nas atividades laborais, surgindo pela forma em que o trabalho é prestado ou pelas condições específicas do ambiente de trabalho. Para essa não se presume o nexo causal porque pode ser desencadeada por qualquer atividade, sem vinculação direta a determinada profissão.

Do conceito de doença do trabalho se excluem expressamente as doença degenerativas, as inerentes a grupo etário, as que não produzem incapacidade laborativa, as doença endêmicas adquirida por habitantes de regiões em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que resultou de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho (§1º do art. 20 da Lei 8.213/91). As doenças degenerativas e inerentes ao grupo etário independem do fator laboral e podem aparecer quando o trabalhador esteja desempregado ou aposentado.


3 NEXO CAUSAL

Na esteira dos conceitos acima, para a reconhecimento em juízo da ocorrência de acidente de trabalho ou doença ocupacional, há que se aferir o nexo causal entre a doença ou lesão alegada com as atividades laborais ou com o acidente típico em questão. Para tanto, a prova pericial médica é em regra o principal instrumento de convencimento do magistrado. Embora de inegável relevância, entretanto, a conclusão do expert não vincula o julgador, o qual a deve cotejar com os demais elementos dos autos, destacando-se, conforme o caso, a existência de reconhecimento do nexo pelo INSS, as declarações emitidas pelo empregador na CAT e a existência de nexo técnico epidemiológico. Vejamos.

3.1 Presunção relativa de nexo causal decorrente do reconhecimento deste pela Previdência

A perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social possui a competência em âmbito administrativo (art. 337 do Regulamento da Previdência Social, Decreto 3.048/99), para a caracterização do nexo causal entre o acidente e a lesão, a doença e o trabalho, ou entre a causa mortis e o acidente, sem prejuízo, obviamente, da possibilidade de discussão judicial do tema (art. 5º, XXXV, da CRFB). Vejamos o texto do art. 337 do mencionado Regulamento:

Art. 337. O acidente de que trata o artigo anterior será caracterizado tecnicamente pela perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social, que fará o reconhecimento técnico do nexo causal entre: I - o acidente e a lesão; II - a doença e o trabalho; e III - a causa mortis e o acidente.

§ 1º O setor de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social reconhecerá o direito do segurado à habilitação do benefício acidentário.

Assim, quando o INSS defere algum benefício previdenciário de índole acidentária (auxílio-doença acidentário, aposentadoria por invalidez acidentária, auxílio-acidente, por exemplo), necessariamente reconhece o nexo causal, através do seu setor de perícia médica, consubstanciado em ato administrativo o qual, como tal, é dotado de presunção de legalidade ou legitimidade, atributo inerente a qualquer ato administrativo, já que "os atos administrativos, quando editados, trazem em si a presunção de legitimidade, ou seja, a presunção de que nasceram em conformidade com as devidas normas legais" [07]. Daí decorre, pois, presunção relativa de que existe o nexo causal em debate, na hipótese de reconhecimento do mesmo pelo INSS.

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O inverso também é verdadeiro, quando requerido benefício acidentário e o INSS o defere sob a forma comum, não-acidentária, rejeitando portanto a alegação de nexo causal com o labor. Em tal caso, milita uma presunção relativa negativa, ou seja, de que não há o nexo causal.

Ensejando menor grau de convencimento, mas ainda de forma relevante, vale destacar a hipótese em que o autor pleiteia judicialmente algum direito amparado na alegação de acidente de trabalho, mas perante o INSS recebe ou recebeu benefício previdenciário comum, nem chegando ter pleiteado administrativamente a qualificação como benefício acidentário. Mesmo não tendo havido a notificação da Previdência através de CAT, esta pode ex officio qualificar a lesão ou moléstia como acidentários, seja através da incidência do Nexo Técnico Epidemiológico, seja através da conclusão dos peritos médicos do Instituto, após o exame do segurado, podendo em tal caso intimar o respectivo empregador a prestar esclarecimentos, bem como reconhecer o acidente de trabalho ou doença ocupacional mesmo à revelia daquele.

Daí decorre que, havendo notícia da concessão de benefício previdenciário comum em função da mesma lesão ou moléstia debatida, tal contribui para a convicção pela inexistência de nexo causal, já que a Autarquia Previdenciária o poderia ter reconhecido, ex officio, se assim entendesse, mesmo não tendo sido provocada para tanto.

3.2 Presunção relativa de nexo causal decorrente da emissão de CAT pelo empregador

A expedição de Comunicação de Acidente de Trabalho - CAT, pelo empregador, constitui obrigação legal, cujo descumprimento enseja a aplicação de multa administrativa, conforme art. 22 da Lei 8.213/91:

Art. 22. A empresa deverá comunicar o acidente do trabalho à Previdência Social até o 1º (primeiro) dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário-de-contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.

Assim, tratando-se de cumprimento de dever legal, não importa necessariamente em reconhecimento de culpa.

Entretanto, inegavelmente, tal documento torna incontroversa a existência do acidente típico narrado ou das causas lá atribuídas para a doença ocupacional, fazendo presumir o nexo entre o sinistro ou entre as causas noticiadas e as lesões ou sintomas apurados.

Trata-se do reconhecimento pelo serviço de medicina do trabalho da empresa (que geralmente firma o documento) de que a lesão ou patologia em tela poderiam decorrer das atividades que o autor desempenhava, ou do acidente típico, pois, em caso contrário, o profissional médico a serviço da empresa não assinaria o documento assumindo responsabilidade profissional no sentido de que o "agente causador" da incapacidade foi aquele descrito (no campo 41 do formulário padrão de CAT).

Entende-se, pois, que da expedição de CAT pela empresa, a qual é obrigatoriamente assinada por médico e, portanto, não comporta um diagnóstico infundado ou sem um mínimo de embasamento científico, gera uma presunção no sentido da existência de nexo causal entre a lesão ou moléstia noticiados com o sinistro típico ou a atividade laboral desempenhada.

3.3 Nexo técnico epidemiológico

Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP é um importante mecanismo auxiliar para a caracterização de um acidente ou doença do trabalho. "A partir do cruzamento das informações de código da Classificação Internacional de Doenças – CID-10 e de código da Classificação Nacional de Atividade Econômica – CNAE aponta a existência de uma relação entre a lesão ou agravo e a atividade desenvolvida pelo trabalhador" [08], embasada em dados estatísticos e epidemiológicos, auxiliando na identificação da natureza da incapacidade ao trabalho apresentada, se de natureza previdenciária ou acidentária. A implantação do NTEP, em abril/2007, de imediato "provocou uma mudança radical no perfil da concessão de auxílios-doença de natureza acidentária: houve um incremento da ordem de 148%", revelando que havia grande mascaramento ou omissão na notificação de acidentes e doenças do trabalho [09].

Havendo o Nexo Técnico Epidemiológico com relação à moléstia debatida na lide, por força do art. 21-A, caput, da Lei 8.213/91 [10], milita presunção legal de existência do nexo causal, presunção que é relativa, admitindo prova em contrário, aliás conforme se extrai da expressa dicção dos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo [11].

Tal presunção não se limita à discussão administrativa, devendo ser observada também na esfera judicial, ainda mais quando considerado que a lista de moléstias correlacionadas às atividades econômicas, que estabelece o Nexo Técnico Epidemiológico, é também um ato administrativo e assim, como mencionamos acima, dotado de presunção de que praticado em conformidade com as devidas normas legais.

3.4 Pluralidade de causas – concasualidade

Havendo concomitância do nexo causal de um determinado dano com a atividade laboral e com causas não-laborais, tem-se que o empregador não poderá ser responsabilizado pela integralidade do dano, mas sim de forma proporcional à parcela ou ao agravamento a que tiver dado causa.

Considerando a dificuldade, na ciência médica, para a aferição exata da proporcionalidade de contribuição de cada causa para o estabelecimento ou agravamento da patologia (como costumam referir os peritos médicos nos processos acidentários), mister se faz que o julgador arbitre tal proporção, à luz da razoabilidade, levando em conta a quantidade e relevância das causas laborais e não-laborais detectadas.

Fixado o percentual de contribuição do labor para o dano, dentro da totalidade de causas aferidas, deverão as indenizações por danos materiais e morais respeitar tal proporcionalidade, sob pena de se responsabilizar o réu em parcela além daquela para a qual estabelecido o nexo causal, o que se afigura juridicamente inviável, já que em tal parte, portanto, não estará presente pressuposto essencial à sua responsabilização.

3.5 Causas laborais e empregadores diversos

De forma similar ao mencionado acima, no caso de as causas laborais se referirem a empregadores diferentes, ter-se-á de arbitrar a contribuição de cada um, já que a responsabilidade de determinado empregador não poderia ir além da sua efetiva contribuição para o dano, devendo as correspondentes indenizações serem fixadas levando em conta tal proporção.

Podemos exemplificar o caso em que se debata perda auditiva induzida pelo ruído – PAIR, onde a vítima teve exposição ao fator ruído, sem proteção, em três contratos de trabalho sucessivos, inexistindo exames audiométricos da época, que permitam estabelecer qual a perda auditiva de cada período. Em tal caso pode-se delimitar a contribuição de cada emprego para o dano proporcionalmente ao período de cada contrato, ou mesmo ponderar a intensidade do ruído e as horas diárias de exposição, caso disponíveis tais dados.


4 RESPONSABILIDADE CIVIL ACIDENTÁRIA

Segundo o art. 186 do Código Civil, "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito de outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" (No CC1916, art. 159). Assim, a responsabilidade civil, como regra geral, depende da presença de quatro elementos essenciais: ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, nexo de causalidade e dano.

Quanto ao requisito culpa ou dolo, a vítima teria que provar a ocorrência destes por parte do agente, como pressuposto para obter a reparação. Tal concepção, na tentativa de melhor amparar os acidentados e facilitar a busca pela indenização, passou por um processo evolutivo que redundou na teoria do risco, por meio da qual se possibilita a responsabilização do causador do dano independentemente de culpa, bastando que se prove o nexo causal entre a conduta e o dano.

Tal evolução se construiu a partir do conteúdo das próprias decisões proferidas ao longo do tempo com base na teoria da responsabilidade subjetiva, por meio das quais restou demonstrado que a comprovação da culpa pelo empregado é tarefa de grande dificuldade, mormente em razão da subordinação existente entre os pólos ocupantes de uma relação de emprego, com o empregador em posição hierarquicamente superior, podendo tirar vantagem de tal condição.

Hoje, a teoria do risco se encontra positivada em diversos diplomas legais, como, exemplificativamente, o Código Brasileiro do Ar de 1938 e o Código Brasileiro da Aeronáutica, de 1986, a Lei 6.938/81 (danos ambientais), o art. 37, §6º da Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor e, finalmente, nos artigos 927, parágrafo único, 932, 937 e 938 do Código Civil.

Vejamos o que dizem o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil e o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, in litteris:

Art. 927, parágrafo único do CC - Haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente da culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Artigo 7º, XXVIII, da CRFB - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXVIII – seguro contra acidente de trabalho, a encargo do empregador, sem excluir a indenização a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

4.1 Inexistência de óbice constitucional à responsabilidade objetiva do empregador

A Constituição da República estabelece um patamar mínimo de direitos do trabalhador, não impedindo que norma infraconstitucional introduza regras mais benéficas, conforme se depreende do seu art. 5º, §2º e do art. 7, caput. Assim, por óbvio, o art. 7º da CRFB, que constitui rol de direitos mínimos do trabalhador (conforme caput do mesmo artigo), não pode, em boa hermenêutica, ser interpretado como um limitador dos direitos deste, nem tampouco um rol de garantias do empregador, parte mais forte da relação.

A redação dada a tal inciso XXVIII pelo constituinte originário, em 1988, na realidade veio trazer um incremento à disciplina da época, dispensando o requisito da culpa grave, que era assente na jurisprudência. As ações de indenização por acidentes de trabalho, que até então eram quase inexistentes - diante da dificuldade de prova da culpa grave do empregador pela vítima ou por seus familiares - passaram a ter considerável incidência na década de 90, perante a Justiça Comum, com ótimos efeitos pedagógicos disseminados pela sociedade, gerando a intensificação do investimento em prevenção de acidentes. Vê-se, pois, que tal garantia constitucional veio para melhorar o patamar de direitos vivenciado à época, não para limitá-lo.

Assim, embora a CRFB, no rol exemplificativo de "direitos dos trabalhadores urbanos e rurais", preveja a responsabilidade do empregador por acidentes do trabalho, como regra geral, "quando incorrer ou dolo ou culpa" (inciso XXVIII do art. 7º), tal não elide a aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que é mais benéfico e trouxe um patamar ainda mais elevado de garantia ao trabalhador, transformando a responsabilidade objetiva em regra geral [12] para as atividades de risco previsível e imputando a quem se beneficia economicamente das mesmas os ônus decorrentes da concretização de tais riscos.

Na seara trabalhista, sob a luz dos princípios específicos informadores do Direito do Trabalho, tal sistemática ganha ainda mais ênfase, já que o art. 2º da CLT atribui os riscos do negócio ao empregador, o qual não pode pretender para si os lucros e socializar os riscos com seus empregados. Afinal, "os riscos da atividade, em sentido amplo, devem ser suportados por quem dela se beneficia" [13]. Outrossim, a própria gênese da teoria objetiva da responsabilidade, no final do século XIX, na França, se deu em atenção ao crescente número de acidentes de trabalho decorrentes da industrialização, os quais remanesciam não-indenizados e geravam um grave problema social [14].

Assim, tem-se que o inciso XXVIII do art. 7º da CRFB não exclui a aplicação de norma infraconstitucional mais benéfica, como o parágrafo único do art. 927 do CC, ainda mais diante das cláusulas de abertura constantes do §2º do art. 5º e do próprio caput do art. 7º, ambos da Carta Política, sendo plenamente incidente, pois, a regra de responsabilização objetiva, nos casos de acidentes de trabalho ocorridos em atividades de risco.

4.2 Aferição de atividade de risco

A doutrina e a jurisprudência têm se sedimentado no sentido de que a atividade de risco prevista no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, "configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior aos demais membros da coletividade", como exemplifica o Enunciado nº 38 aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal [15].

Na avaliação do risco da atividade para a ocorrência do dano debatido no caso concreto, além das presunções decorrentes das regras da experiência [16] cotejadas com os fatos noticiados nos autos, são úteis os documentos laborais que consignam a existência de riscos ocupacionais, como os Atestados de Saúde Ocupacional – ASO, o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO e o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA. Por outro lado, em sendo documentação a ser produzida pelo empregador, imputando-lhe o ônus da prova quanto às questões consignadas em tais documentos, a sua não-apresentação em juízo faz presumir o risco da atividade.

Finalmente, caso incidente no caso concreto o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP, o mesmo raciocínio que faz presumir a existência do nexo causal, conforme acima, se aplica também ao risco da atividade laboral para a moléstia em tela, ensejando, da mesma forma, presunção relativa de que a tal atividade comporta risco para tal adoecimento.

4.3 Responsabilidade subjetiva com presunção de culpa

Para aqueles que não entendem pela aplicabilidade da teoria objetiva, ainda assim temos que não se poderia impor à parte hipossuficiente, o ônus probatório relativo à culpa do empregador, devendo ser presumida tal culpa, em razão do princípio da proteção, bem como tendo em vista o princípio da aptidão para a prova, já que é o empregador que detém a obrigação de dispor de toda a documentação relativa à segurança do trabalho. Na mesma esteira tem decidido o Tribunal Superior do Trabalho, conforme exemplificam os arestos a seguir:

[...] 5 - A aplicação do instituto da responsabilidade civil no Direito do Trabalho distingue-se de sua congênere do Direito Civil. Ao contrário das relações civilistas, lastreadas na presunção de igualdade entre as partes, o Direito do Trabalho nasce e desenvolve-se com o escopo de reequilibrar a posição de desigualdade inerente à relação de emprego. Nesse sentido, a apuração da culpa no acidente de trabalho deve adequar-se à especial proteção conferida pelo ordenamento jurídico ao trabalhador. Essa proteção se concretiza, dentre outras formas, pela inversão do ônus da prova, quando verificada a impossibilidade de sua produção pelo empregado e a maior facilidade probatória do empregador.

6 - A regra do artigo 333 do CPC, segundo o qual compete à parte que alega comprovar fato constitutivo de direito, enquanto à parte contrária compete provar fato modificativo, extintivo ou impeditivo, deve ser aplicada subsidiariamente na esfera trabalhista. Aqui, vige o princípio da aptidão para a prova, determinando que esta seja produzida pela parte que a ela tem acesso, quando estiver fora do alcance da parte contrária.

7 - No presente caso, seria insensato exigir dos Reclamantes a comprovação da existência de culpa da empresa no eventus damni , sob pena de desvestir o instituto da responsabilidade civil de toda sua eficácia e de negar vigência à garantia constitucional do art. 7º, inciso XXVIII.

8 - Cabia à empresa, e, não, aos Reclamantes, desvencilhar-se do ônus da prova da inexistência da culpa. Como não se desonerou do ônus que milita em seu desfavor, presume-se a culpa, surgindo o conseqüente dever de indenizar o trabalhador pelo prejuízo sofrido. Recurso não conhecido. (19/03/2004 - RR-930/2001-010-08-00.6 - 3ª Turma - MARIA CRISTINA IRIGOYEN PEDUZZI - Ministra-Relatora)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL E MATERIAL. ACIDENTE DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. CULPA PRESUMIDA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. Debate-se a responsabilidade da empresa quanto ao acidente de trabalho, ocorrido em manuseio de máquina. Sendo impossível ao empregado a produção de prova, deve-se adequar a apuração da culpa, por meio da inversão do ônus da prova, por ser mais fácil ao empregador comprovar sua conduta quanto ao fornecimento de segurança em sua empresa, afastando sua culpa no evento danoso. Não tendo, pois, se desvencilhado do ônus que milita em seu desfavor, presume-se a culpa e o consequente dever de indenizar. ... (AIRR - 72100-48.2007.5.15.0071 Data de Julgamento: 25/05/2011, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 03/06/2011).

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Sobre o autor
Cesar Zucatti Pritsch

Juiz do Trabalho do TRT da 4ª Região/RS. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho. Ex-Procurador Federal da Advocacia-Geral da União e Ex-Advogado da Petrobras

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRITSCH, Cesar Zucatti. Responsabilidade civil decorrente de acidente de trabalho ou doença ocupacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3021, 9 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20177. Acesso em: 18 abr. 2024.

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