Introdução
O exacerbado demandismo judicial em relações jurídicas baseadas eminentemente em questões de direito é um realidade no nosso meio forense. Não esqueçamos também que, bem ou mal, a tecnologia vem irradiando seus efeitos na condução dos processos judiciais. O resultado não seria outro: processos em massa, decisões em massa [01].
Diante dessa realidade, é plenamente possível, depois de um clique errado, um modelo de sentença ser direcionado para um processo sem correspondência ou uma petição não seguir o caminho ao encontro do seu processo. Também não é difícil uma mesma pessoa pleitear – p. ex. nas lides previdenciárias onde o foro pode ser tanto o estadual como o federal – por duas vezes o mesmo bem de vida com idêntica causa de pedir, tendo sua pretensão apreciada e, como não identificada a litispendência ou a coisa julgada, transitada em julgado em duplicidade.
É exatamente a respeito dos contornos dessa duplicidade que as linhas abaixo foram redigidas.
Da coisa julgada
A coisa julgada, segundo o artigo 6°, parágrafo 3°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), é a decisão judicial de que já não caiba recurso.
Normalmente, é dada a possibilidade de os litigantes impugnarem decisões judiciais, seja por recurso, seja por outro meio. Sucede esse traço de insurreição não pode ser ilimitado. Chega certo momento em que é dada a palavra final, sob pena de não cessar o estado de incerteza da situação jurídica submetida ao exame do Poder Judiciário.
Moniz de Aragão ratifica essa posição:
A opção universalmente aceita, fundamentada no Direito Romano consiste em, primeiro, submeter a sentença a reexame perante órgãos hierarquicamente superiores (eventualmente permitir sua rescisão posterior, acrescente-se) e após atribuir-lhe especial autoridade, que a torne imutável para o futuro em face de todos os participantes do processo em que fora ela pronunciada [02].
Logo, a coisa julgada não é instrumento de justiça. É, na verdade – sem entrar nas discussões doutrinárias se ela seria efeito de uma decisão, qualidade dos seus efeitos ou situação jurídica do seu conteúdo –, instituto jurídico integrado ao direito fundamental à segurança jurídica, apto a impedir rediscussão, alteração ou desrespeito à decisão judicial final [03].
Para qualquer ameaça de sua autoridade, diversos remédios são previstos: a) de plano, pode o julgador extinguir o processo sem resolução de mérito (artigo 267, V, do CPC); b) compete ao réu alegá-la na sua contestação (artigo 301, VI, do CPC); c) o tribunal pode ainda conhecer dessa questão em razão do efeito translativo inerente à apelação. Se, mesmo assim, vier o "segundo processo" a transitar em julgado, o artigo 485, IV, do CPC autoriza a deflagração de ação rescisória por um prazo de 02 anos para rescindir a "segunda decisão".
Da prevalência
Delineado esse quadro, antes de findar o "segundo processo", é a "primeira coisa julgada" quem impera. Quando ele encerra e é formada a "segunda coisa julgada", ela destrona a primeira. E a razão de ser é lógica: se não a substituísse, se não passasse a tutelar a relação jurídica posta nos autos, se não afastasse o comando da "primeira coisa julgada", por que seria prevista a "ofensa à coisa julgada" como uma das hipóteses de rescisão do artigo 485 do CPC?
Dessa forma, ultrapassados os dois anos do artigo 495 do CPC, resta imutável e incontrastável a autoridade da "segunda coisa julgada" e, por conseguinte, suplantada a "primeira coisa julgada".
Pensar em sentido contrário esvaziaria o comando do artigo 485, IV, do CPC, pois bastaria esperar o escoamento do prazo decadencial de 02 anos (artigo 495 do CPC) para a "primeira coisa julgada" voltar a prevalecer.
De mais a mais, um simples silogismo alicerça o entendimento acima exposto: a) Premissa maior: o art. 468 do CPC textua a sentença ter força de lei; b) Premissa menor: lei posterior revoga a anterior, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a anterior (artigo 2°, § 2°, Decreto-Lei 4.657/1942); c) Conclusão: a sentença posterior "ab-roga" a anterior.
Da doutrina
Cândido Rangel Dinamarco [04] e Pontes de Miranda [05] perfilham o posicionamento acima sustentado. Esse último, ainda escrevendo sob a égide do CPC de 39, deixou claro que a segunda decisão toma o lugar da primeira porque a lei a fez "só" rescindível no lapso quinquenal. A respeito do tema, confira-se o ensinamento de Eduardo Talami [06]:
Tampouco se pode dizer que embora sendo existente a segunda sentença, a solução do conflito entre os dois comandos incompatíveis dar-se-ia com o prevalecimento do primeiro. Duas considerações afastam essa conclusão.
A primeira é de que a lei previu expressamente o cabimento da ação rescisória contra o segundo pronunciamento (CPC, art. 485, V). Isso significa que, decorrido o prazo sem que o específico meio de impugnação seja exercido, fica superado – torna-se irrelevante – o defeito da segunda sentença. E, então, "o primeiro julgado destitui-se de valor, visto que o segundo julgado implica negação de todo julgado anterior em contrário". Não se nega que o direito positivo poderia ter resolvido tal conflito de modo diverso, mas, para tanto, haveria a necessidade de um regra expressa a respeito – como há, por exemplo, no direito português (v. CPC português, arts. 75 e 813, f).
Daí a segunda consideração: na falta de uma regra expressa em outro sentido, vale o princípio geral aplicável a todos os campos do direito público destinado à solução de conflito entre comandos jurídicos: o ato posterior prevalece sobre o anterior (critério da "temporalidade"). Pode não ser a solução ideal para o impasse. Aliás, o ideal seria que o impasse nem existisse. De todo modo, se ele ocorre, essa é a solução "menos pior".
José Carlos Barbosa Moreira [07] ensina:
Seria evidente contra-senso recusar-se eficácia à segunda sentença, depois de consumada a decadência, quando nem sequer antes disso era recusável a eficácia. A passagem da sentença, da condição de rescindível à de irrescindível, não pode, é claro, diminuir-lhe o valor. Aberraria dos princípios tratar como inexistente ou como nula uma decisão que nem rescindível é mais, atribuindo ao vício, agora, relevância maior do que a que tinha durante o prazo decadencial. Daí se infere que não há como obstar, só com a invocação da ofensa à coisa julgada, à produção de quaisquer efeitos, inclusive executórios, da segunda sentença, quer anteriormente, quer (a fortiori!) posteriormente ao tempo final do prazo extintivo.
È possível ainda encontrar parecer de Ada Pellegrini Grinover [08] e lições de novéis doutrinadores de escol, como Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha [09] e Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart [10] defendendo a prevalência do segundo julgamento nos moldes expostos.
Do STJ
Há um julgamento que retrata a situação acima narrada:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SERVIDORES PÚBLICOS. EMBARGOS À EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE ALEGAÇÃO DE COISA JULGADA. 26,05%. LIMITAÇÃO TEMPORAL DO REAJUSTE. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA À COISA JULGADA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. A Constituição Federal estabelece no art. 5º, XXXVI, a intangibilidade da coisa julgada pelo legislador como uma das garantias fundamentais, tendo em vista o respeito ao princípio da segurança jurídica. 2. A segunda sentença proferida em afronta a uma primeira coisa julgada, contra a qual não foi ajuizada ação rescisória, é juridicamente existente, constituindo um novo comando jurisdicional. A adoção desse entendimento, outrossim, não resultará no recebimento em dobro das diferenças pleiteadas pela recorrida, na medida em que a satisfação da obrigação judicialmente reconhecida implicará sua extinção, nos termos do art. 741, VI, do CPC. 3. Se a sentença que embasa o título exeqüendo não determina a limitação temporal do reajuste de 26,05% a dezembro/1989, não pode tal restrição ser discutida em execução de sentença, sob pena de ofensa à coisa julgada. Precedentes. 4. Recurso especial conhecido e improvido. (REsp 604880/SE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 22/05/2007, DJ 11/06/2007 p. 347)
Conclusão
Como apontado, é plenamente possível "dois julgamentos definitivos" sobre uma mesma situação jurídica, até porque não há um sistema eficiente de verificação de litispendência ou coisa julgada em toda a justiça brasileira.
Diante desse conflito, não obstante ambas as sentenças terem sido prolatadas por agentes políticos investidos do poder jurisdicional, resta-nos, a título de solução, a utilização das regras processuais dantes invocadas, pois elas conformam o processo judicial, cuja função teleológica é encerrar determinada controvérsia levada aos tribunais.
Notas
- Inexiste aqui qualquer crítica subliminar, afinal de contas, já passou o tempo em que o juiz julgava todo e qualquer processo com o tempo disponível que um artesão elaborar sua obra de arte.
- ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, p. 189.
- DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Jus Podium, 2007, p. 478.
- DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 3 ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 1379-1381.
- PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória das sentenças e de outras decisões. 3 ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1957, p. 160.
- TALAMI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 155/156.
- BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1985, v. 5, p. 222.
- http://www.leonildocorrea.adv.br/curso/ada2.htm. Acessado em 07/10/2010, às 20:20.
- Didier Jr, Fredie e CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais.Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 373.
- MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 654