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O mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social

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01/10/2001 às 00:00
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8. Conclusões sistematizadas e dúvida suscitada

Para efeito didático, podemos sistematizar algumas conclusões do presente trabalho da seguinte forma:

a) a neutralidade, do ponto de vista jurídico, não é sinônimo de imparcialidade;

b) em nenhum ramo do conhecimento humano, se pode falar em atividade neutra, tendo em vista que quem propugna pela neutralidade acaba fazendo também uma opção, o que é perfeitamente aplicável à atividade jurisdicional;

c) o juiz, como indivíduo que é, não pode ser neutro, tendo apenas a obrigação, inclusive constituticional, de ser imparcial;

d) a neutralidade, mesmo sendo uma ilusão, é importante elemento no papel social do juiz, eis que satisfaz as exigências da sociedade, bem como viabiliza a crença na atividade de julgar.

Entretanto, ao contrário da boa técnica dos trabalhos científicos, não queremos deixar aqui uma conclusão definitiva, mas sim suscitar algumas outras dúvidas.

Será que tudo que foi aqui exposto talvez não seja uma grande falácia?

Será que o que aqui se expôs não foi apenas mais uma argumentação técnica, apoiada em argumentos lógicos e de autoridade, muitas vezes dogmáticos, buscando comprovar a tese proposta originalmente, numa tentativa de valer-se do jurídico para comprovar algo ideológico?

Talvez sim... Talvez não...

Talvez só com alguma reflexão se possa achar uma resposta.

De qualquer forma, este modesto interlocutor já se dará por satisfeito, se fez os eventuais leitores refletirem sobre este tema, tão negligenciado pela dogmática jurídica.


9. Considerações finais

Apenas buscando arrematar estas considerações com chave de ouro, encerraremos este estudo transcrevendo mais um trecho do brilhante livro de Piero Calamandrei sobre a função jurisdicional:

"Um artigo do código de processo civil obriga as partes e seus defensores a se comportarem com "lealdade". Do juiz, a lei não fala; mas a obrigação de lealdade está implícita em sua função, especialmente na fase em que ele se põe a redigir a fundamentação da sua sentença.

Sua lealdade consiste em escrever na sentença os fundamentos verdadeiros que o levaram a decidir assim e, antes de tudo, em procurar dentro de si (o que nem sempre é fácil) quais são os fundamentos verdadeiros.

Um estudioso alemão publicou, há cerca de dez anos atrás, um livro sobre a motivação das sentenças, em que demonstra, com uma análise muito penetrante de uma centena de decisões cíveis e penais, que muitas vezes os motivos declarados são bem diferentes dos verdadeiros e que, com muita freqüência, a fundamentação oficial nada mais é que um biombo dialético para ocultar os móbeis verdadeiros, de caráter sentimental ou político, que levaram o juiz a julgar assim.

Pode-se compreender, mesmo quando ele quer ser, na fundamentação, sincero a qualquer preço, que assuma sem querer uma posição mais de defensor do que de juiz. Quando o decisório já foi adotado, o redator é levado naturalmente, como fazem os advogados para defender seu cliente, a escolher e a pôr em evidência os argumentos que podem servir para defender aquele dispositivo não mais discutível.

Mas a deslealdade começaria quando a escolha dos fundamentos lhe fosse sugerida não pelo interesse geral da justiça, mas pelo interesse pessoal da sua carreira, o que aconteceria se o juiz - que, para explicar o dispositivo, poderia limitar-se a pôr em evidência a circunstância de fato que o colegiado achou decisiva - se pusesse a adornar a fundamentação com inúteis ostentações de ciência jurídica, para poder servir-se dessa decisão como um dos títulos para a sua promoção; ou se o juiz, para evitar que sua sentença fosse reformada em grau de cassação, procurasse esconder as razões de direito, que o Tribunal poderia achar errôneas, sob uma fundamentação de fato, que é inatacável, porque o Tribunal de Cassação não pode se manifestar sobre ela.

Estas são pequenas artimanhas cavilosas, às quais seria preferível que o juiz nunca recorresse, do mesmo modo que não gostaríamos de perceber que, certas vezes, os magistrados, chamados a enfrentar em suas sentenças questões gerais de ressonância política (como certas questões relativas à liberdade religiosa ou à liberdade de imprensa), decidem segunda a justiça no dispositivo, mas na fundamentação encontram o meio de se refugiar por trás de argumentos de fato, a fim de não se comprometerem a dar sua opinião sobre a questão de direito. Essa arte de eludir as questões comprometedoras pode ser apreciável num diplomata; no juiz, eu a qualificaria como inconveniente timidez.

O caso mais grave, porém, seria o do magistrado que, encarregado de redigir a fundamentação de uma decisão já adotada pelo colegiado, pusesse deliberadamente, em relevo, em vez dos fundamentos capazes de justificá-la, os que melhor servissem para desacreditá-la, com o propósito de fazer os leitores sagazes compreenderem que a decisão é injusta, e de pôr na boca dos julgadores do recurso os argumentos para reformá-la. Muitos anos atrás, essas sentenças eram chamadas ´suicidas´. Mas, em vez de suicídio, eu falaria de homicídio premeditado, porque elas nasciam sob a ameaça de um engenho explosivo de efeito retardado, que o juiz redator escondera habilmente nas entrelinhas da fundamentação. Assim, a decisão ia pelo mundo levando dentro de si, sem saber, a máquina infernal que no momento exato a faria saltar em pedaços.

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Na verdade, esse protesto sorrateiro com que o juiz redator traía a vontade da maioria do colégio tinha todas as características do atentado terrorista que se rebela, com a violência, contra as regras do jogo colegiado; mais que uma deslealdade, era um ato de sedição."(18)


NOTAS

1. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986, pág. 675;

2. Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 9ª ed., 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 1993, pág.53;

3. Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. ob. cit., p. 50;

4. Calamandrei, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado, 1ª ed. brasileira, São Paulo, Martins Fontes, junho/1995, p. 166;

5. Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 33/34;

6. Faria, José Eduardo, As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, obra organizada por José Eduardo Faria, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, p. 58;

7. Freund, Julien, Sociologia de Max Weber, 3ª ed., Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 159;

8. Weber, Max, Economia y Sociedad, apud Bobbio, Norberto, Ensaios Escolhidos, Ed. Cardim, 1988, p. 181;

9. Nunes, Luiz Antônio. A Lei, o Poder e os Regimes Democráticos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 85/86;

10. Faria, José Eduardo, ob. cit., p. 55/56, os grifos são nossos;

11. Nunes, Luiz Antônio, O Poder Judiciário, a Ética e o Papel do Empresariado Nacional, in Uma Nova Ética para o Juiz, obra organizada sob a coordenação de José Renato Nalini, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 127/128;

12. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 111;

13. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 112;

14. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 114;

15. Bendix, Reinhard, Max Weber - Um Perfil Intelectual, Brasília, Ed. Univ. de Brasília, 1986, p. 324;

16. Bendix, Reinhard, ob. cit., nota 474, p. 409;

17. Nunes, Luiz Antônio, ob. cit., p. 128/129;

18. Calamandrei, Piero. ob. cit., p. 190/193;


10. Bibliografia consultada

Bendix, Reinhard, Max Weber - Um Perfil Intelectual, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1986;

Bobbio, Norberto, Ensaios Escolhidos, Ed. Cardim, 1988;

Calamandrei, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado, São Paulo, Martins Fontes, junho/1995;

Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; e Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do   Processo, 9ª ed., 2ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 1993;

Faria, José Eduardo, As Transformações do Judiciário em face de suas responsabilidades sociais, in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, obra organizada por José Eduardo Faria, São Paulo, Malheiros Editores, 1994;

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, "Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa", 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986;

Freund, Julien, Sociologia de Max Weber, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980;

Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 14ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994;

Nunes, Luiz Antônio, O Poder Judiciário, a Ética e o Papel do Empresariado Nacional, in Uma Nova Ética para o Juiz, obra organizada sob a coordenação de José Renato Nalini, págs. 107/129, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais;

Nunes, Luiz Antônio. A Lei, o Poder e os Regimes Democráticos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991;

Weber, Max, Economia y Sociedad, Ed. Fondo de Cultura Económica, México;

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Sobre o autor
Rodolfo Pamplona Filho

juiz do Trabalho na Bahia, professor titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da UNIFACS, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2052. Acesso em: 18 abr. 2024.

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