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O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964

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03/12/2011 às 08:27
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Durante o regime militar iniciado em 64, as características da Corte Suprema do país se modificaram devido ao cerceamento efetivado pelo poder executivo. Estudar esse período é essencial para imaginar as possibilidades do STF como defensor da democracia, do Estado de Direito e da Constituição.

RESUMO: O Supremo Tribunal Federal sofreu profundas modificações durante o regime militar que se iniciou 1964. A partir do AI-2 ocorreram mudanças significativas no número de integrantes e no quadro de ministros. Durante esse tempo, aos poucos, as características da Corte Suprema do país se modificou e devido ao cerceamento efetivado pelo poder executivo. Assim o STF perdeu em grande medida sua força e mesmo cooptado ao regime militar exerceu papel secundário diante do autoritarismo instalado. O momento mais significativo nesse sentido foi quando um de seus membros se revolta e supostamente joga a toga na bancada em protesto contra seus colegas que decidiram a favor da restrição de suas próprias funções. Repensar esse período é essencial para imaginar as possibilidades do STF em tempos em que se aprende a viver a democracia no Brasil ou, ao menos, se aprende a repensar o papel da Corte Suprema brasileira como defensora do Estado de Direito e da Constituição.

Palavras-Chave: História do Judiciário; Regime militar; Supremo Tribunal Federal.

THE BRAZILIAN SUPREME COURT AND THE MILITARY REGIME OF 1964

ABSTRACT: The Brazilian Supreme Court has undergone profound changes during the military regime that began in 1964. From the AI-2 there were significant changes in the number of members and as part of its justice. During this time, little by little, the characteristics of the country's Supreme Court has changed and due to the restriction effected by the executive. So the Supreme Court largely lost their strength and even co-opted the military regime played a secondary role in the face of authoritarianism installed. The most significant moment in this direction was when one of its members are supposed to revolt and throw the robe on the bench in protest against their colleagues who decided in favor of restricting their own functions. Rethinking this period is essential to imagine the possibilities of the Brazilian Supreme Court in times when one learns to live democracy in Brazil, or at least learn to rethink the role of the Brazilian Supreme Court as the defender of the rule of law and the Constitution.

KEYWORDS: History of the Judiciary, Military regime, Brazilian Supreme Court.


1. A receita para uma crítica histórica

1.1 Uma colher de fantasia

O famoso conto do dinamarquês Hans Christian Andersen, chamado “A roupa nova do rei” serve aqui como chave simbólica para o momento em que o STF encarou o seu maior desafio histórico na tentativa de manutenção do Estado de Direito.

A história de Andersen narra as desventuras de um rei muito vaidoso que acabou enganado. Como se preocupava muito com a aparência o rei sempre buscava novidades da moda, até que um dia dois malandros chegam em seu reino com o relato de um tecido nunca dantes visto. Diziam-se responsáveis por tecer uma malha única, além de ser a mais bela de todas conhecidas, continha o dom de impedir pessoas estúpidas ou incompetentes para o cargo que ocupassem de a visualizarem. Assim a malha pareceria invisível aos incapazes. Curioso o rei manda um de seus ministros ver tal malha, o qual, com medo de ser considerado estúpido por nada ter enxergado, retorna com o relato do tecido mais belo do mundo. O rei então, na companhia de dois cortesões, se dirige aos embusteiros. No encontro sua majestade não enxerga o tecido, porém acaba mentindo para manter as aparências, principalmente em relação a sua capacidade como rei. Os cortesões, replicando a falsidade, sugerem que seja feita uma nova roupa para o rei com aquele tecido para um desfile. Sem discordar o rei encomenda a roupa e envia fios de ouro e seda para complementar o traje bem como um farto pagamento aos tecelões impostores. Chegado o dia do desfile, todo o povo sabe sobre os ditos poderes do tecido. Após o rei se vestir com sua nova roupa, os enganadores fogem sem que ninguém perceba. Então começa o desfile do rei com a roupa imaginária. Tudo corria bem e ninguém do povo ousava a autoproclamar-se estúpido. Até que uma criança resolveu gritar:

- Coitadinho, está nu! O rei está nu!

É quando todo o povo em coro grita:

- O rei está nu! O rei está nu!

Sem perder a pose o rei termina o desfile sobre as risadas de todo o povo, para depois ficar alguns anos sem aparecer em público de vergonha.


1.2 Uma xícara de simbólico

E ele jogou a toga sobre a bancada de julgamento. Era preferível estar nu a vestir ela, pensou o Ministro Adauto Lúcio Cardoso.

O único a rebelar-se publicamente contra os militares foi Adauto Lúcio Cardoso: em 1971, vencido numa votação contra a censura, ele retirou-se intempestivamente do plenário durante a sessão de julgamento. Celso de Mello, o que mais sabe sobre a história da corte, não confirma que Adauto Lúcio Cardoso tenha jogado a toga sobre a bancada ao se retirar. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

A votação referida pelo jornalista é o da reclamação 849, de 10 de Março de 1971. (Os acalorados debates da decisão podem ser vistos na integra no site do STF http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=87519). Tal reclamação motivou inclusive o pedido de aposentadoria do ministro Adauto Lúcio Cardoso, que se indignou com a decisão que atribuía ao Procurador Geral da República a competência exclusiva de encaminhar ou não as ações de inconstitucionalidade ao STF. A reclamação foi encaminhada pelo MDB e rejeitada por maioria, sendo contrário à rejeição apenas Adauto Cardoso. Tal acontecimento é confirmado por Evandro Lins e Silva e Leda Boechat Rodrigues.

Em 1971, o STF julgou constitucional a lei da censura prévia, editada pelo Governo Médici. Vencido o Ministro Adauto Lúcio Cardoso manifestou sua indignada repulsa diante daquela decisão, despiu sua capa. atirou-a em sua curul e abandonou acintosamente o recinto. Todos os jornais, no dia seguinte, deram grande cobertura ao ocorrido, inédito na vida do STF. Evandro comenta que o gesto de Adauto foi teatral, mas diz que tal reação depende do temperamento de cada um. "A verdade, parece-me, é que a atitude do Ministro Adauto Lúcio Cardoso foi única, continua única, e provavelmente nunca se repetirá". Foi, assim, muito valioso o depoimento do Ministro Evandro Lins e Silva ao CPDOC, publicado com o título de O Salão dos passos perdidos. (RODRIGUES, 2002, p. 480).

Desse episódio vale destacar dois equívocos. O ministro Adauto Lúcio Cardoso não se revoltou contra a lei de censura prévia. Até mesmo porque ela já estava instalada no Brasil e não havia motivo para tal indignação. A revolta do ministro, e os debates demonstram isso claramente, era contra uma decisão a ser proferida pelos seus colegas do STF que restringia seus poderes. Em outras palavras, Adauto se revoltou contra a possibilidade da Corte Suprema do país decidir que não tinha o poder de decidir sobre a guarda constitucional. É como se com aquela decisão todos os ministros estivessem tirando suas togas e guardando no armário.

Durante o regime militar de 1964 a toga do STF foi aos poucos se transformando. Aliás, vale ressaltar que toga é a vestimenta obrigatória dos ministros até hoje.

Os ministros também são obrigados a usar toga. É uma capa de cetim preto, comprida, sobre a roupa. A simples, que usam no dia a dia, é sobreposta e amarrada nas costas por duas fitas. A toga de gala, usada em cerimônias solenes, tem que ser vestida pela cabeça. Ela tem um camisão cheio de babados, na frente, e a cintura é cingida por uma faixa de seda. O Supremo as compra, cinco por ano, de poucas confecções. A de gala custa 370 reais; a simples, 197. As togas ficam sob a responsabilidade dos respectivos gabinetes. Na prática, com os capinhas. Cabe a eles, nos dias de sessões, tirá-las dos armários, estendê-las sobre uma mesa de jacarandá, no salão branco, adjacente ao plenário, e colocá-las nos ministros. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Essa roupa simbólica não é o único ritual do STF. Existem certas tradições e ritualísticas que são seguidos como gestos de poder. Isso ocorre, por exemplo, na eleição do presidente da casa.

Na última delas, em março, os onze ministros escolheram o presidente para o biênio 2010–12. Com grande seriedade, e o silêncio respeitoso de uma plateia repleta, cada um depositou um papel dobrado, com o nome do escolhido, na urna em forma de cálice carregada por um funcionário. O escrutinador, como manda o regimento, foi o ministro mais novo, Dias Toffoli, de 42 anos. Com destoante jovialidade, Toffoli contou os votos e anunciou o resultado: dez votos para Cezar Peluso e um para Ayres Britto. Gilmar Mendes saudou o seu sucessor. Na resposta, o ministro Peluso registrou ter sido eleito “por uma regra costumeira e singular”. A “regra costumeira e singular”, que não consta do regimento, é a eleição do mais velho. À exceção de uma vez – em 1943, quando Getúlio Vargas outorgou-se a indicação do presidente por decreto, sem que a corte chiasse – o critério da antiguidade prevaleceu. Com isso, sempre se soube, com óbvia antecedência, os próximos presidentes. Eles serão, depois de Peluso, conforme a linha sucessória, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli. Se não fosse sair do Supremo por força da aposentadoria compulsória dos 70 anos, que completa neste agosto, Eros Grau substituiria Joaquim Barbosa. (Grau já resmungou que a raia miúda o serviria melhor se ele estivesse na linha de sucessão.) Por que simular uma eleição cujo resultado é conhecido? “É uma coisa simbólica, que nos evita desgastes desnecessários”, disse o presidente Cezar Peluso, (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Talvez por isso, jogar a toga na bancada tem um significado profundo, mesmo para um ministro nomeado por Castelo Branco. Tem sentido vestir uma toga que te deixa nu? Durante o período da ditadura os rituais de poder, o poder simbólico do STF, seu discurso e sua funcionabilidade, todos entraram em colapso. A toga parecia ser feita do tecido do conto de Andersen. Isso só entende quem estuda um pouco a história do período.


1.3 Misture tudo com questionamentos e asse em fogo médio

Um texto recente do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, publicado na revista Piauí, instigou a comunidade jurídica a debater a história do Supremo Tribunal Federal no Brasil na época da ditadura militar. O que os defensores da Constituição fizeram quando a Constituição de 1946 mais precisava? Poucos sabem.

Depois do julgamento da ADPF 153, julgada em 28 de Abril de 2010, sobre a aplicação da lei de anistia os questionamentos sobre o STF e a ditadura militar de 1964 aumentaram.

Esse texto não pretende julgar o Egrégio Tribunal brasileiro ou fazer simplificação da memória. Foi pensado com o objetivo auxiliar num roteiro sobre esse turbulento período da História da principal corte do país. Em tempos em que se discute de forma veemente a importância do controle de constitucionalidade, relembrar alguns momentos essenciais de nossa história torna mais compreensível nosso presente e nossas heranças. Para pessoas com maior vivência suponho não trazer grandes novidades. De qualquer forma esse esboço auxilia a organizar as idéias para projetos maiores.


2 O STF diante do golpe de 1964

2.1 O STF antes do golpe de 1964

O STF havia passado por mudanças intensas e por decisões importantes antes do golpe de 64. Em abril de 1960 sua sede é transferida do Rio de Janeiro para Brasília, com a oposição de alguns ministros que preferiram se aposentar na ocasião. Enfrentou no período anterior a 64 problemas significativos como a renúncia de Jânio Quadros e a instalação do regime parlamentarista no Brasil. Curiosamente, os ministros do STF não se apresentavam com toda a pompa simbólica que hoje ostentam. Por exemplo, o ministro Orisombo Nonato da Silva andava de bonde carregando processos.

No começo dos anos 60, Márcio Thomaz Bastos, um advogado em começo de carreira, o viu tomar um bonde, carregado de processos. Certa vez, Orozimbo (!) Nonato ficou escandalizado num verão lancinante, quando o ministro Luiz Gallotti pediu-lhe que providenciasse dois aparelhos de ar-condicionado. “Até esse momento, Gallotti, você seria o meu candidato ideal a presidente da República”, disse-lhe Nonato. “Jamais pensei que pudesse revelar-se tamanho perdulário com o emprego do dinheiro público.” Os gabinetes dos ministros tinham 20 metros quadrados. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

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Porém, durante o governo de João Goulart as posições políticas se acirraram gerando grandes rachas dentro de diversas instituições governamentais, isso também ocorreria dentro do Supremo. As medidas tomadas pelo governo de Goulart e a resistência das elites foram os grandes motivadores desse racha:

Convencido da urgência das reformas e consciente da oposição que encontraria no Congresso, João Goulart resolveu realizar as reformas por decreto. Em um comício de 13 de março de 1964, visto por cerca de duzentas mil pessoas, anunciou que acabara de assinar o decreto da Supra, o primeiro passo para a reforma agrária, com a desapropriação de faixas de terras ao longo das estradas. A reforma agrária propriamente dita só poderia ser feita, dizia ele, com uma reforma constitucional. Citava o exemplo de outros países, como o Japão, onde a reforma agrária fora implantada depois da vitória dos Estados Unidos pelo general McArthur. Mencionava ainda os exemplos da Itália, do México e da índia, países que tinham realizado a reforma agrária com sucesso. Argumentava que ela interessava não apenas ao homem que trabalhava a terra, mas a todos os brasileiros. "A reforma agrária", dizia, "é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às indústrias e melhor remuneração ao trabalhador rural". Anunciou a seguir a encampação de todas as refinarias de petróleo, aproveitando a ocasião para fazer uma menção elogiosa a Getúlio Vargas. Finalmente, anunciou que encaminharia, em mensagem ao Congresso, a reforma eleitoral, permitindo a todos os brasileiros com mais de dezoito anos o direito de votar, e a reforma universitária, reclamada pelos estudantes. Divulgava, ainda, um decreto regulamentando os aluguéis. Ao terminar seu discurso afirmou contar com a compreensão e o patriotismo das Forças Armadas e reiterou seus propósitos de lutar por reforma agrária, tributária, eleitoral, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos, pela emancipação econômica, por justiça social e pelo progresso do país (COSTA, 2006, p.155)

O acirramento de posições foi gerando problemas significativos em especial nas forças armadas.

Uma semana depois, o almirante Sílvio Mota, considerando subversiva uma reunião de praças da Marinha realizada no Sindicato dos Metalúrgicos, enviou tropa para prendê-los. Vários marinheiros foram detidos. O presidente interveio, mandando soltá-los, o que motivou a saída de Sílvio Mota, substituído pelo almirante Paulo Rodrigues. (COSTA, 2006, p.155-6)

No limiar do golpe militar, em março de 1964 o STF era composto pelos seguintes ministros:

Tabela 1 - Membros do STF no dia 31 de Março de 1964
  Nome Posse Nomeado por
1 Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa 26/01/1946 José Linhares
2 Antonio Carlos Lafayette de Andrada 01/11/1945 José Linhares
3 Hahnemann Guimarães 24//10/1946 Enrico Gaspar Dutra
4 Luis Gallotti 12/09/1949 Enrico Gaspar Dutra
5 Cândido Motta Filho 13/04/1956 Juscelino Kubitschek
6 Antônio Martins Villas Boas 13/02/1957 Juscelino Kubitschek
7 Antônio Gonçalves de Oliveira 10/02/1960 Juscelino Kubitschek
8 Vitor Nunes Leal 26/11/1960 Juscelino Kubitschek
9 Pedro Rodovalho Marcondes Chaves 14/04/1961 Jânio Quadros
10 Hermes Lima 11/06/1963 João Goulart
11 Evandro Cavalcanti Lins e Silva 14/08/1963 João Goulart
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp

Apesar de origens e ideologias diversas, todos os membros haviam sido nomeados dentro do período que abrangia a nova democracia pós Estado Novo.


2.2 O golpe de 1964

O Golpe de 1964 foi fruto de um planejamento longo. Alguns apontam o apoio popular, como por exemplo em São Paulo onde “(...) aconteceu a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, com cerca de 500 mil pessoas” (PAES, 1997, p.43). Posicionamentos a favor e contra o governo se radicalizaram, o golpe brotava.

Castelo Branco, Odílio Denys, Golbery, Mamede e Olímpio Mourão conspiravam. Os governadores Ademar de Barros, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e lido Meneghetti aderiram à conspiração. No dia 31 de março, Olímpio Mourão Filho, repetindo o gesto de 1937, que criara condições para a implantação do Estado Novo, comandava suas tropas em marcha para o Rio de Janeiro. Mais uma vez, o país assistia à queda de um governo eleito. O dispositivo militar do presidente Goulart não se mostrou capaz de oferecer resistência. Os operários não responderam à convocação de greve geral decretada pela CGT. Isolado, Goulart abandonou Brasília e refugiou-se no Rio Grande do Sul. O Congresso apressou-se em decretar vago o cargo de presidente da República antes mesmo que o presidente tivesse abandonado o país. (COSTA, 2006, p.157)

O que os políticos civis que apoiaram o golpe não esperavam era que os militares pretendessem ocupar o poder.

Derrubado Goulart, os políticos civis que tinham apoiado o golpe, sobretudo os da UDN, foram surpreendidos pela decisão dos militares de assumir o poder diretamente. O general Castelo Branco foi imposto, a um Congresso já expurgado de muitos oposicionistas, como o novo presidente da República. Começou, então, intensa atividade governamental na área política para suprimir os principais focos de oposição e na área econômica para conter a inflação que atingia níveis muito altos. (CARVALHO, 2005, p.158)

Os motivos do golpe foram vários. Não vejo sentido para enumerá-los nesse momento. Destaco apenas a justificativa imediata do novo regime, que apontava a quebra da hierarquia militar nas manifestações dos marinheiros em 1964. Porém o golpe tinha razões mais profundas. Segundo PAES (1997, p. 45) o exército se preparava, a partir da Escola Superior de Guerra (ESG) desde 1948. O General Cordeiro de Farias afirmaria:

Em 1948, nós plantamos carvalhos. Não plantamos couve. A couve floresce rapidamente, mas uma só vez. Os carvalhos demoram, mas são sólidos. Quando chegou a hora, nós tínhamos os homens, as idéias e os meios. (PAES, 1997, p.45).

As teses de preparação do golpe têm diversos adeptos. Porém, obviamente o caminhar dos acontecimentos não foram totalmente previstos sequer pelos militares.

Pode-se explicar a atitude mais radical em 1964 pela ameaça que a divisão ideológica significava para a sobrevivência da organização militar. Para fazer o expurgo dos inimigos, era necessário controlar o poder. Mas havia também razões menos corporativas. Os antivarguistas tinham-se preparado para o governo dentro da Escola Superior de Guerra. Lá elaboraram uma doutrina de segurança nacional e produziram, junto com técnicos civis, estudos sobre os principais problemas nacionais. Alem disso, tinham-se aproximado de lideranças empresariais por meio de uma associação chamada Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundada em 1962 por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo. O IPES lutava contra o comunismo e pela preservação da sociedade capitalista. Mas, ao mesmo tempo, propunha varias reformas econômicas e sociais. No Rio, mantinha estrito contato com a ESG. Vários membros do IPES participaram do governo Castelo Branco, e muitas das idéias desenvolvidas no Instituto foram aproveitadas pelo primeiro governo militar. Os militares tinham, assim, em 1964, motivos para assumir o governo, julgavam-se preparados para fazê-lo e contavam com aliados poderosos. (CARVALHO, 2005, p.159-60)

Toda sorte, diz Elio Gaspari, o Exército dormiu janguista e acordou revolucionário. (GASPARI, 2002a, p.81-3). Esse debate ainda permanece em aberto.

Interessa aqui, porém, apontar que o golpe de 1964 inaugura um período de restrição ao poder judiciário. Logo de início o AI-1 (que diga-se de passagem não era para ter número pois seria o único (GASPARI, 2002a, p.136)) já definia a restrição dos poderes judiciário e legislativo em prol do poder executivo.

À semelhança do Estado Novo, os poderes do Executivo foram aumentados. Seus atos escaparam ao controle do Judiciário. O Supremo Tribunal Federal foi atingido por várias medidas que interferiram na sua composição e limitaram seus poderes. Os direitos e as garantias dos cidadãos, assim como a liberdade de comunicação, reunião e pensamento, ficaram subordinados ao conceito de segurança nacional. (COSTA, 2006, p.159)

O conceito de segurança nacional ganhou diversos adeptos entre os militares e, como não poderia deixar de ser, dos juristas que se apoiaram no regime militar. Esse conceito de segurança nacional pautou a ordem jurídica como princípio fundamental, acima da legalidade e do Estado de Direito. E era assim definido:

A defesa da Pátria, a preservação das instituições, a proteção do cidadão e da coletividade é direito e dever do Estado. Nenhuma Nação pode sobreviver com independência, se não lhe for reconhecida a prerrogativa de defender, com o Poder e pela força, se necessária, o seu território, o seu povo, o seu regime político e o seu sistema constitucional, contra a violência das minorias inconformadas e o ataque das ideologias contrárias à ordem jurídica vigente. (...) Além das atividades subversivas caracterizadas pelo emprego da violência para a tomada do poder, outras existem que podem influir na opinião pública e afetar a segurança nacional, tal como a divulgação de idéias e noticiários tendenciosos, por todos e quaisquer meios de comunicação falada, escrita ou expressa na imagem, pela imprensa pelos filmes, pelo rádio ou pela televisão, as quais, por isso mesmo ficam sujeitas ao controle do Estado, através do poder de polícia. (Helly Lopes Meirelles – Poder de Polícia - Segurança Nacional 1972). (LOPES, 2009, p.623).

A partir desse conflito básico entre defender a segurança nacional ou o Estado de Direito se degladiaram o STF e o poder executivo até que algum deles fosse totalmente calado.

2.3 Quando o jurídico não se mistura com o político: a reação do STF diante do golpe militar de 1964

A primeira reação do STF ao novo regime foi de apoio sobre a máscara de neutralidade. “O Supremo também baixou a cabeça no golpe militar de 1964. Seu presidente, Álvaro Moutinho da Costa, filho de general e irmão de coronéis, foi à posse de Ranieri Mazzilli na noite de 1º de abril, quando João Goulart ainda estava no Brasil. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a). Em famoso discurso, o presidente do STF na época, Ministro A. M. Ribeiro da Costa, estendia a mão ao novo governo revolucionário de 1964:

Seria farisaico negar a simpatia inicial de Ribeiro da Costa pela sublevação vitoriosa dos quartéis de 1964: ela se manifesta tanto na presença na sua presença no Palácio do Planalto, na madrugada de 2 de abril (posse nominal de Ranieri Mazzili), quanto no discurso com o qual , em 17 de Abril, recebe a visita ao Tribunal do Presidente Castello Branco (...)” (RODRIGUES, 2002, p. 334).

Ribeiro da Costa foi uma das poucas autoridades a participar da posse mais bizarra de um presidente da república no Brasil (GASPARI, 2002a, p.115). Sem dúvida, Ribeiro da Costa apoiou o golpe. Para completar o apoio afirmava ainda que a culpa do golpe era o governo instável e ilegal de Goulart:

Pouco depois de sua posse, o presidente Humberto Alencar Castelo Branco visitou o Supremo Tribunal Federal, onde foi recebido pelo ministro Ribeiro da Costa. No discurso com que saudou o presidente, o ministro, depois de afirmar que a sobrevivência da democracia nos momentos de crise se havia de fazer com o sacrifício transitório de alguns de seus princípios e garantias constitucionais, acusou o governo deposto de ser responsável pela situação em que se encontrava o país (o que era também a opinião dos militares e dos que os apoiavam), mas ressalvou que a Justiça, quaisquer que fossem as circunstâncias políticas, não tomava partido, não era a favor ou contra, não aplaudia nem censurava. Mantinha-se equidistante, acima das paixões políticas (COSTA, 2006, p.161)

O ódio de Ribeiro da Costa pelo regime de João Goulart era recíproco. Os janguistas sabiam que o presidente do STF tentaria vestir de legalidade o golpe. Darcy Ribeiro, no dia 1º de Abril de 1964, na tentativa de rearticular um contra-golpe teria indicado alguns nomes para execução:

O professor teria oferecido aos comunistas submetralhadoras e uma lista de políticos que deveriam ser executados. Nela estariam os nomes do presidente do Supremo Tribunal Federal (Álvaro Ribeiro da Costa), do presidente do Senado (Auro Moura Andrade) e de alguns parlamentares, entre os quais Milton Campos e Bilac Pinto. A oferta foi rejeitada. (GASPARI, 2002a, p.107)

Porém essa impressão de lua-de-mel com o regime não duraria alguns meses. Logo começaram a surgir as primeiras desavenças com o poder executivo.

Em pouco tempo ficaria evidente a impossibilidade de conciliar, na prática, os dois pressupostos defendidos pelo ministro. Como seria possível a um Judiciário que se queria independente e acima das paixões políticas sacrificar princípios e garantias constitucionais que deveria defender? Como poderia o Tribunal cooperar com o Executivo, mantendo sua neutralidade, autonomia e independência? Como exerceria sua função de defensor da Constituição, se esta a cada passo sofria alterações que modificavam o seu texto? (COSTA, 2006, p.161-2).

A tradição do STF pautada na lógica liberal dos direitos individuais e as demandas que chegavam ao judiciário tornaram inviável o bom relacionamento com o regime.

Um dos principais empecilhos a essa colaboração surgiu logo de início em conseqüência dos atos arbitrários do governo, que mandou prender adversários políticos, cassou mandatos, removeu funcionários estáveis, aposentou compulsoriamente outros, submeteu civis a inquéritos policiais militares e à Justiça Militar, dando origem a numerosos pedidos de habeas corpus. (COSTA, 2006, p.162)

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3076, 3 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20557. Acesso em: 19 mar. 2024.

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