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Princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador

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As normas de segurança e saúde dos trabalhadores, como as Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, são entendidas, por vezes, como regras, que nascem e deságuam nelas mesmas.

"O princípio da sabedoria é: adquire a sabedoria; sim, com tudo o que possuis adquire o entendimento." Provérbios 4.7

A lavra do presente artigo foi motivada pela perplexidade que sempre fez parte do exercício das funções institucionais do seu autor, como auditor-fiscal do trabalho, ao perceber, por parte dos profissionais do Direito, uma espécie de menoscabo e desinteresse pelas normas de tutela de saúde e segurança dos trabalhadores, por entenderem estes se tratar de matéria afeta ao escopo profissional de médicos do trabalho e engenheiros de segurança.

Outro aspecto, que sempre chamou a atenção do autor é a abordagem dada às normas de segura e saúde dos trabalhadores, como é o caso daquelas cujo núcleo normativo é centrado nas Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, entendidas, por vezes, como regras, que nascem e deságuam nelas mesmas. Essa visão atomizada não se coaduna com as exigências da ciência jurídica.

Em virtude disso, e, tendo em vista que as normas jurídicas nunca existem isoladas, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si, objetiva-se, neste estudo, conclamar os profissionais do Direito a participarem, neste texto, de um aprofundamento científico com enfoque jurídico sobre as normas de segurança e saúde dos trabalhadores.

Para tanto, faz-se necessário prospectar os princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador, considerando-os verdades fundantes admitidas como condição básica de validade das demais asserções que compõem esse campo do saber.

O princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. [01]

A enciclopédia Wikipédia [02] define "Princípio como a causa primária, o momento, o local ou trecho em que algo, uma ação ou um conhecimento, tem origem".

Para Alonso Olea [03] o princípio geral de direito é um critério de ordenação que inspira todo o sistema jurídico. Explica que, na verdade, os princípios de direito se dirigem não só ao juiz, mas também aos intérpretes, aos legisladores, aos demais operadores do direito, como também aos agentes sociais a que se destinam.

Tais princípios servem de parâmetro para a formação de novas regras jurídicas, e, ainda, de orientação para a interpretação e aplicação das normas já existentes. Designam a estruturação de um sistema jurídico através de uma idéia mestre que ilumina e irradia as demais normas e pensamentos acerca da matéria.

Segundo Sussekind:

[...] são enunciados genéricos, explicitados ou deduzidos, do ordenamento jurídico pertinente, destinados a iluminar tanto o legislador, ao elaborar as leis dos respectivos sistemas, como ao intérprete, ao aplicar as normas ou sanar as omissões. [04]

Por este prisma, os princípios constitucionais são apenas fontes de inspiração, dedução, encaminhamento, integração e interpretação da lei ou do legislador.

Apesar de ser essa, ainda hoje, a posição majoritária de nossos tribunais trabalhistas e de boa parte da doutrina, a Constituição da República de 1988 elevou os princípios à categoria de norma, dando outra abordagem a partir de então.

A doutrina pós-positivista diferencia os princípios jurídicos dos princípios constitucionais, pois enquanto estes são espécies de norma jurídica, com força normativa, comando geral, abstrato, impessoal e imperativo, aqueles se destinam, quase sempre, a orientar o intérprete e inspirar o legislador.

No Brasil, o marco filosófico deste entendimento encontra guarita na lição de Paulo Bonavides, ao retratar com fidelidade todos os autores estrangeiros que defendiam a normatividade dos princípios.

A análise da matéria exige uma retrospectiva da evolução do direito constitucional, sintetizada a seguir em quatro fases pela doutora Vólia Bomfim Cassar. [05]

A primeira fase foi marcada pela Revolução Francesa, cuja consequência foi a criação de um Estado Moderno, com poderes separados e independentes, a fim de conter o poder absoluto existente até então. A idéia de criação de direitos fundamentais aparece, neste primeiro momento, como direitos de defesa do cidadão em face do Estado, o que significava que o Estado deveria se abster de praticar alguns atos que violassem a liberdade dos particulares, limitando a intervenção deste nas relações privadas.

Os valores fundamentais do liberalismo eram: liberdade de contratar e a defesa da propriedade, o que acabou por influenciar o Código Civil da época. Prevalecia o princípio da igualdade das partes no ato de contratar, e o trabalho era tratado como mercadoria, o que demonstrava a coisificação do trabalhador. O Direito do Trabalho surge para compensar a inferioridade econômica do trabalhador. Lógico concluir que nesse período o Estado não se interessava em intervir nas relações entre particulares.

A segunda fase foi marcada pela publicização do direito, fruto da pressão exercida pela reação dos trabalhadores explorados, que exigiu a intervenção do Estado nas relações privadas.

A partir do momento que o povo começou a eleger seus representantes, o Estado passa a ser pluriclassista, transformando o panorama anterior, pois passa a transpor direitos sociais, especialmente direitos trabalhistas, para a Constituição. Os direitos sociais, então, foram incluídos no corpo da Carta, marcando a terceira fase. Apesar deste esforço, algumas normas, dentre elas os princípios sociais constitucionais, eram interpretadas como normas não autoaplicáveis, portanto, nas palavras de Bonavides, serviram apenas como válvulas de escape.

Alguns fatos abalaram profundamente a forma de pensar o direito constitucional até então existente, entre eles a Segunda Guerra Mundial, o holocausto, o nazismo, o fascismo e a banalização do mal. Como forma de combater tais práticas nefastas à sociedade, a mudança do direito era necessária, já que através desses vazios legais, os infratores de direitos humanos se beneficiaram, pois permaneciam impunes, uma vez que a lei "posta" não previa o caso como ato antijurídico. Daí a necessidade de se buscar nos princípios constitucionais o comando imperativo.

A decisão que marcou a ascensão dos direitos fundamentais foi proferida em 1958, pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, o chamado "Caso Lutis".

Eric Lutis, presidente do Colégio de Cineastas, contrapôs-se publicamente ao filme Amantes Imortais, produzido por outro cineasta alemão, sob argumento de que o produtor participava ativamente do movimento nazista. Lutis enviou carta aberta aos jornais conclamando todos contra o cineasta nazista. O ofendido, através de sua produtora, reagiu e propôs ação com base no § 826 do Código Civil alemão, para impedir Lutis de continuar o "boicote". O parágrafo referido proibia a prática de atos contrários aos bons costumes. A produtora ganhou a causa nas duas primeiras instâncias. Lutis, então, ajuizou queixa no Tribunal Federal Alemão, alegando o seu direito fundamental de liberdade de expressão, previsto na Constituição. A decisão da mais alta Corte alemã foi histórica e marcou o início de uma nova era no direito, pois pela primeira vez apontava o equívoco de se interpretar a lei ignorando os direitos fundamentais previstos na Constituição, determinando que a interpretação deve se dar conforme a Constituição. Declarou, ainda, que o sistema de direitos fundamentais representa ordem objetiva de valores e como tal influencia o direito infraconstitucional e vincula todas as funções e órgãos estatais. A partir daí nasce a constitucionalização do direito. Esta é a última fase.

Os direitos sociais, portanto, inserem-se no conjunto dos direitos fundamentais e, estes, no tema global dos direitos humanos. A expressão direitos humanos é utilizada para designar a proteção jurídica outorgada a esses direitos no âmbito do Direito Internacional, sem limitações de tempo e espaço, mas presente uma pretensão de validade universal; de outro modo, a expressão direitos fundamentais designa a dimensão interna e nacional desses direitos, uma vez que tenham sido contemplados, material e formalmente, pelo direito constitucional positivo brasileiro vigente. [06]

Feitas estas considerações, deve-se passar à análise acerca da proteção internacional dos Direitos Humanos, especialmente no que se refere aos atos normativos expedidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, com arrimo neles, para a explicitação das conseqüências jurídicas advindas dos conceitos jurídicos daí depreendidos. Com efeito, a concepção do que sejam os direitos fundamentais, bem como o exame das condições e possibilidades que a eficiência desses direitos alcança, notadamente dos direitos sociais, em muito alicerçada a partir das noções construídas pela Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) da ONU e dos demais documentos que a esse se seguiram.

A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e, mais tarde, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966, carregam em si os objetivos que levaram à própria criação da Organização das Nações Unidas (ONU), após a falência da Liga das Nações na política internacional e o desrespeito genocida cometido contra o ser humano durante a Segunda Guerra Mundial. Assim sendo, a criação da ONU procurou atender, entre outros, à construção de uma ordem mundial fundada em novos conceitos de Direito Internacional, que fizessem frente à doutrina da soberania nacional absoluta e à exacerbação do positivismo jurídico. Mencionados documentos firmaram um novo rol de direitos humanos, cuja concretização foi assumida por todos os Estados signatários, ainda que ausente a taxação expressa de medidas punitivas a serem aplicadas em caso de descumprimento dessas normas internacionais. Com o tempo, entretanto, a eficácia do direito costumeiro seria agregada à DUDH e, portanto, o reconhecimento da respectiva vincularidade enquanto jus congens, a afastar posições mais cautelosas e formais que a viam como mera Recomendação da Assembléia Geral, sem força para gerar direitos subjetivos aos cidadãos, nem tampouco obrigações para os Estados. [07]

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Na verdade, a DUDH e a concepção hoje vigente de direitos humanos relativizaram as noções clássicas de soberania e interesses nacionais. Cada vez mais se aceita que, ao subscrever uma convenção internacional, ou ao participar de organizações regionais sobre o assunto, ou ainda pelo mero ingresso na ONU, o Estado abdica de uma parcela da própria soberania e obriga-se a reconhecer o direito da comunidade internacional em observar e opinar acerca da própria situação interna, sem a contrapartida de vantagens concretas, como aconteceria nos acordos internacionais sobre outras matérias. À originária ausência de compulsoriedade da DUDH, por conseguinte, vem se substituindo uma reconhecida eficácia de jus congens, quer pela ONU, quer pela comunidade internacional que a integra. [08]

Como recorda Rodrigues [09], a DUDH transformou-se numa espécie de horizonte moral da humanidade, num código de princípios e valores internacionais, revigorando e reforçando a idéia da universalidade dos direitos humanos como direito de toda pessoa. Nesse sentido, propiciou a denominada "globalização dos direitos humanos", uma "globalização por baixo", aspirando ao desenvolvimento e à emancipação do ser humano pela conquista concreta desse rol de direito por todas as pessoas em contraposição à "globalização por cima", fenômeno típico das estruturas de comunicação, comércio e política.

A preeminência dos direitos humanos tem sido crescentemente reiterada. No campo da teoria constitucional mais moderna, por exemplo, propugna-se pela vinculação do poder constituinte originário a uma espécie de reserva de justiça, consubstanciada em princípios como a dignidade da pessoa humana, a justiça, a liberdade e a igualdade, priorizados a partir da DUDH. Conforme ressalta Canotilho [10] "[...] torna-se cada vez mais juridicamente vinculativo o complexo de normas internacionais agrupadas sob o nome de jus cogens, a ponto de este direito vincular o próprio poder constituinte."

O caráter inicial e fundante do poder constituinte originário vem cedendo, assim, em favor da noção de que este poder não se exerce em um vácuo histórico-cultural, não parte do nada. Constituição legítima, por conseguinte, seria somente aquela materialmente justa, respaldada em princípios de justiça suprapositivos ou supralegais que assegurem relevância à garantia dos direitos humanos. Trata-se do abandono da idéia de ilimitação absoluta do poder constituinte originário em favor de uma vinculação jurídica ou juridicização ou caráter evolutivo desse poder. [11]

Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano. Ainda que muitas vezes restrito ao discurso ou que albergue concepções as mais diversas, e eventualmente até contraditórias, o fato é que a dignidade da pessoa humana, o valor do homem como um fim em si mesmo, é hoje um axioma da civilização ocidental e talvez a única ideologia remanescente.

A consagração de direitos sociais no ordenamento constitucional brasileiro ocorreu de forma ampla com a Constituição Federal de 1988. Muito embora possam ser citados textos constitucionais anteriores, como a de 1946, verdade é que a reabertura democrática trouxe consigo a inauguração de um novo momento constitucional, com evidente relevo à proteção dos direitos humanos, de modo geral, e dos direitos fundamentais, em particular. O amplo Título II, dedicado à proteção dos direitos e garantias fundamentais, dá indicativo disso, assim como toda a série de dispositivos que, nesse catálogo e ao longo do texto constitucional, reconhecem aos brasileiros um conjunto de direitos fundamentais sociais bastante rico e diversificado, pretendendo abarcar os mais diferentes aspectos da vida humana.

Como ponto de fechamento e equilíbrio de todo o sistema constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana foi elevado a fundamento do estado e, juntamente com o restante das normas constitucionais, explica a prevalência da pessoa sobre outros valores.

Dentre as normas que definem o regime jurídico reforçando os direitos fundamentais, inclusive sociais, duas cláusulas gerais merecem realce: a que admite a integração da Constituição Federal por outros direitos implícitos ou decorrentes do regime e dos princípios, assim como de atos normativos internacionais; e aquela que assegura, em termos de eficácia jurídica, a aplicabilidade imediata de todas as normas de direitos fundamentais. Trata-se da interpretação das normas insertas no artigo 5º, §§ 1º e 2º do texto constitucional, objeto das considerações que seguem:

Art. 5º ..............................................................................................................

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. [12]

Premissa essencial à compreensão da norma contida no artigo 5º, § 2º, do texto constitucional, e a partir da qual se pode afirmar a existência de uma abertura material do catálogo de direitos fundamentais, é a concepção da constituição federal como sistema aberto de regras e princípios e, por consequência, a admissão de que também os direitos fundamentais formam um sistema aberto de normas. Com base nas ponderações de Hesse sobre a Lei fundamental alemã, Sarlet exclui desde logo a possibilidade de reconhecimento de um sistema fechado e autônomo de direitos fundamentais no ordenamento brasileiro, porquanto a existência de direitos fundamentais dispersos no texto constitucional, a ausência de uma fundamentação direta de todos os direitos fundamentais no princípio da dignidade da pessoa humana e o restante das normas constitucionais, assim não o permitem.

Neste sentido, assenta Sarlet:

[...] em se reconhecendo a existência de um sistema dos direitos fundamentais, este necessariamente será, não propriamente um sistema lógico-dedutivo (autônomo e auto-suficiente),mas, sim, um sistema aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos e desenvolvimentos, integrado ao restante da ordem constitucional, além de sujeito aos influxos do mundo circundante. A constituição, portanto, é um sistema aberto de regras e princípios. [13]

A regra inferida do artigo 5º, § 2º, do texto constitucional brasileiro é inspirada na IX Emenda à Constituição Norte-Americana, por meio da qual se admite a existência de outros direitos que, pelo conteúdo que apresentam, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, ainda que não previstos explicitamente. Na síntese de Freitas, o artigo 5º, § 2º, consubstanciaria autêntica norma geral inclusiva. [14]

A mencionada norma constitucional é elemento que reitera a fundamentalidade formal e material dos direitos sociais. [15]

As possibilidades normativas decorrentes da interpretação da norma contida no artigo 5º, § 2º, da Constituição de 1988 viabilizam, para além da abertura material do catálogo de direitos fundamentais expressamente positivados, a abertura do próprio sistema constitucional, colocando-o em permanente diálogo com o espaço e o tempo, em constante atualização e complementação por meio de normas de outros sistemas, nacional e estrangeiros. [16]

A emenda Constitucional n. 45/2004, em sintonia com a tendência mencionada, deu um passo significativo na valorização dos tratados e convenções internacionais, ao introduzir, conforme já mencionado, o § 3º no art. 5º, da Constituição Federal, com o seguinte teor.

Art. 5º ..............................................................................................................

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. [17]

Diante das mudanças do texto constitucional, o SFT alterou sua jurisprudência em 2008, atribuindo status normativo diferenciado aos Tratados e Convenções Internacionais ratificados pelo Brasil sobre direitos humanos. Durante o julgamento do RE n. 466.343, o Ministro Cezar Peluso, que atuou como relator, asseverou: "Eu estava até recentemente hesitante em relação à taxinomia dos tratados em face da nossa Constituição, mas estou convencido, hoje, de que o que a globalização faz e opera em termos de economia, no mundo, a temática de direitos humanos deve operar no campo jurídico. Os direitos humanos já não são propriedade de alguns países, mas constituem valor fundante de interesse de toda humanidade". Já o Ministro Gilmar Mendes registrou: "O Supremo Tribunal Federal acaba de proferir uma decisão histórica. O Brasil adere agora ao entendimento já adotado em diversos países no sentido da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos na ordem jurídica interna". [18]

Na linha deste novo entendimento é oportuno indicar alguns acórdãos do STF, enfatizando o caráter supralegal das convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.

Direito processual. Habeas corpus. prisão civil do depositário infiel. Pacto de São José da Costa Rica. Alteração de orientação da jusrisprudência do STF. Concessão de ordem. 1. A matéria em julgamento neste habeas corpus envolve a temática da (in) admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do pacto de São José da Costa Rica no direito nacional. 2.Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos(art.11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica (art.7º,7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992.A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a Legislação infraconstitucional com ele conflitante seja ela anterior ou posterior ao alto de ratificação. 3.Na atualidade a única hipótese de prisão civil no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos.O art. 5º,§ 2º, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo não exclui outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotado, ou dos tratos internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.O pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matéria de Diretos Humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e, conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel. 4. Habeas corpus concedido".STF.2? Turma. HC 95967, Rela..Min.Ellen Gracie,DJ 28 nov.2008.

Ementa: habeas corpus. Salvo-conduto. Prisão civil. Depositário judicial. Dívida de caráter não alimentar.Impossibilidade. Ordem concedida. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do "responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia" (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da relatoria do ministro Marco Aurélio. 2. Anorma que se extrai do inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal é de eficácia restringível. Pelo que as suas exceções nela contidas podem ser aportadas por lei, quebrantando, assim, a força protetora da proibição, como regra, da prisão por dívida. 3. O Pacto de San José da Costa rica (ratificado pelo Brasil – Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2º do art.5º da Magna Carta. A se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originalmente brasileira que preveja a prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2º do art. 5º da CF/1988, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional, à falta do rito exigido pelo § 3º do art. 5º, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida. 4. No caso, o paciente corre o risco dever contra si expedido mandado prisional por se encontrar na situação de infiel depositário judicial. 5. Ordem concedida. SFT. 1ª Turma. HC 94.013, Rel. Ministro Carlos Brito, DJ 13 mar. 2009.

Ementa: Habeas corpus. Prisão Civil. Depositário judicial. Aquestão da infidelidade depositária. Convenção americana de direitos humanos (Art. 7º, n.7), Natureza constitucional ou caráter de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos. Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trata-se de depósito voluntário (convencional) ou cuida-se de depósito necessário, como é o depósito judicial. Precedentes. Revogação da súmula n. 619/SFT. [...] Hermenêutica e direitos humanos: a norma mais favorável como critério que deve reger a interpretação do poder judiciário. Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do estado), deverá extrair a máxima eficiência das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. Aplicação, ao caso, do art 7º, n. 7, c/c o art. 29, ambos da Convenção americana de direitos humanos (Pacto de São José da Costa rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano". STF. 2ª turma. HC n. 96.772, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ 21 ago. 2009.

Pode-se concluir, portanto, que as Convenções da OIT ratificadas antes da emenda constitucional n. 45/2004 ostentam no Brasil natureza supralegal, pelo que afastam a aplicação de toda legislação ordinária ou complementar com elas conflitantes. Só não podem contrariar a constituição da república pela sua supremacia sobre todo o ordenamento jurídico nacional.

As Convenções ratificadas ocupam na hierarquia normativa um espaço intermediário entre a constituição e a lei ordinária, tem, assim status infraconstitucional, mas, ao mesmo tempo, supralegal.

As Convenções da OIT sobre segurança, saúde e meio ambiente do trabalho devem ser enquadradas como convenções sobre direitos humanos, conforme art. 5º, § 3º, da Constituição da República. O Ministro do SFT Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento da ADI-MC n. 1.675, anotou: "Parece inquestionável que os direitos sociais dos trabalhadores enunciados no art. 7º da Constituição, se compreendem entre os direitos e garantias constitucionais incluídos no âmbito normativo do art. 5º, § 2º, da CF/88, de modo a reconhecer alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil". [19]

É o mesmo o entendimento do Ministro do TST Maurício Delgado ao asseverar que as convenções internacionais sobre direitos trabalhistas têm óbvia natureza de direitos humanos. [20]

O primeiro e fundamental direito do ser humano, consagrado em todas as declarações internacionais, é o direito à vida, suporte necessário para existência e gozo dos demais direitos. Entretanto, não basta declarar o direito à vida sem assegurar os seus pilares básicos de sustentação: o trabalho e a saúde.

A vida digna é equiparada à vida saudável, aproximando os conceitos de qualidade de vida e dignidade da pessoa humana: o completo bem-estar físico, mental e social densifica o princípio da dignidade da pessoa humana, pois não se imagina que condições de vida insalubres e, de modo geral, inadequadas, sejam aceitas como conteúdo de uma vida com dignidade. [21]

O núcleo normativo em vigor no Brasil sobre a proteção jurídica à segurança e saúde do trabalhador está concentrado nas Normas Regulamentadoras, baixadas por intermédio de Portarias do Ministério do Trabalho e Emprego, em decorrência de delegação normativa expressa na CLT e outras leis ordinárias, e, têm plena eficácia normativa, como aliás, já decidiu diversas vezes o SFT (ADI ns. 360-7, 996, 1.258, 1.347, 1.388, 1.670, 1.946, 2.398, dentre outras). Apesar disso, elas têm sido pouco reverenciadas pelos profissionais do Direito, sob a alegação de não se tratar de lei, apta a criar direitos e obrigações.

E é justamente em virtude deste menoscabo jurídico de normas tão relevantes para a efetivação do direito à saúde e segurança do trabalhador no Brasil, que se destaca a importância dos princípios norteadores de todo o ordenamento jurídico neste âmbito.

Por isso, feitas estas considerações, retoma-se o cerne do estudo, cujo seu foco concentra-se nos princípios jurídicos da segurança e saúde do trabalhador no Brasil. A teoria da supralegalidade, já abordada, apesar de não conferir nível constitucional às normas de direitos humanos internacionais, coloca tais normas num nível supralegal, conferindo-lhes efeitos jurídicos diversos, como a aplicação do princípio da vedação do retrocesso social em tais hipóteses.

A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, e, dos princípios extraídos de direitos humanos internacionais, pode ser desdobrada em três modalidades, como se pode depreender da lição de Ana Paula de Barcelos:

[...] princípios constitucionais, pois aqui estarão associadas as suas características de norma-princípio com a superioridade hierárquica própria da Constituição. Como conseqüência da eficácia interpretativa, cada norma infraconstitucional, ou mesmo constitucional, deverá ser interpretada de modo a realizar o mais amplamente possível o princípio que rege a matéria.

A eficácia negativa exige mais elaboração quando se trata dos princípios, igualmente por força de seus efeitos indeterminados [...] funciona como barreira de contenção, impedindo que sejam praticados atos ou editados normas que se oponham aos propósitos do princípio. [...]

A vedação de retrocesso, por sua vez, desenvolveu-se especialmente tendo em conta os princípios constitucionais e em particular aqueles que estabelecem fins materiais relacionados aos direitos fundamentais, para cuja consecução é necessária a edição de normas infraconstitucionais. [22]

Nessa linha de raciocínio, entende-se que tanto os princípios constitucionais, como os princípios extraídos das normas de direito humanos internacionais, têm eficácia jurídica e, com isso, força normativa. Deve-se registrar, ainda, que a eficácia é o atributo da norma possuidora de todos os elementos capazes de produzir efeitos jurídicos.

Antes de abordar os princípios específicos da segurança e saúde do trabalhador, insta registrar a importância crescente dos princípios na ciência jurídica, conforme abalizada lição de Bandeira de Mello:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. [23]

É importante se registrar, também, do exposto, a percepção eminente do caráter cosmopolita no direito do trabalho. Esta característica traduz-se na verificação de grande número de aspectos comuns nos ramos jurídicos trabalhistas de diversos Estados Soberanos e na existência de um Direito Internacional do Trabalho em formação. Trata-se de uma consequência da tendência de ampliação do seu conteúdo em extensão territorial.

Conforme o ensino de Evaristo de Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes:

[...] apresenta-se o direito do trabalho, desde a sua origem, dominado por inequívoco espírito cosmopolita. Em que pese as pequenas diferenças locais, criaram a técnica moderna e os meios de comunicação e locomoção os mesmos problemas humanos e sociais por toda parte. A chamada sociedade industrial, com todas as suas conseqüências é a mesma no mundo moderno, com maiores ou menores desenvolvimentos. Com ela instalou-se um estado econômico, de produção e de consumo, mais ou menos uniforme, que somente poderia condicionar uma capa de cultura jurídica também homogênea e uniforme. [24]

O reflexo mais evidente do caráter cosmopolita do Direito do Trabalho é a atividade exercida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na formulação de regras de aplicação universal, que, paulatinamente, tendem a igualar as condições de trabalho em diversos Estados do mundo.

Na realidade, a OIT vem promovendo, na medida do possível, a universalização internacional do Direito do Trabalho, de modo a propiciar uma evolução harmônica das normas de proteção ao trabalhador e alcançar a universalização da justiça social e o trabalho digno para todos.

O Direito Tutelar da Saúde e Segurança do Trabalhador, enquanto segmento jurídico especializado, constitui um todo unitário, um sistema, composto de princípios, categorias e regras organicamente integradas em si. Sua unidade sela-se em função de um elemento básico, sem o qual seria impensável a existência do próprio sistema. Nesse ramo jurídico a categoria básica centra-se na intensidade da cogência como são tratadas as normas relativas à saúde e segurança do trabalhador. Trata-se de normas imperativas, indeclináveis e inderrogáveis. [25]

Considerando os argumentos acima elencados, expõe-se os Princípios Específicos do Direito Tutelar da Saúde e Segurança do Trabalhador, que não são trazidos à lume pela mente inventiva do autor deste estudo, mas tão somente são identificados e reconhecidos como princípios já existentes, que reclamavam, há algum tempo, sua sistematização. Por essa razão são apresentados à seguir, separadamente.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3095, 22 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20695. Acesso em: 19 abr. 2024.

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