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Direitos humanos, cidadania e educação.

Uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988

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01/10/2001 às 00:00
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"A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos." (Hannah Arendt)


1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente ensaio é tecer algumas reflexões sobre o relacionamento dos direitos humanos com a concepção contemporânea de cidadania. Isto é, objetiva-se fazer um conjugado entre o processo de internacionalização dos direitos humanos e a nova concepção de cidadania introduzida pela Constituição Federal de 1988.

Para tanto, num primeiro momento, buscou-se delinear, ainda que brevemente, o processo de internacionalização dos direitos humanos, cujo marco inicial foi a Declaração Universal de 1948, bem como, a forma através da qual a Constituição brasileira de 1988 se relaciona com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro.

Depois de feito este estudo prévio, verificou-se de que maneira a nova Carta brasileira, rompendo com a ordem jurídica anterior, passou a comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com a concepção contemporânea de cidadania.

Por fim, buscou-se delinear qual o papel da educação em direitos humanos, e quais as maneiras de se implementar, de forma sólida, além dos princípios éticos que o cercam, uma cultura de direitos humanos, em nosso meio e em nossa sociedade.


2. A CONSAGRAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

A cidadania é um processo em constante construção, que teve origem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII – chamado Século das Luzes –, sob a forma de direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participação na sociedade. A concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de "cidadão".

O conceito de cidadania, entretanto, tem sido freqüentemente apresentado de uma forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a perda ou aquisição da nacionalidade; outros, com os direitos políticos de votar e ser votado. No Direito Constitucional, aparece o conceito, comumente, relacionado à nacionalidade e aos direitos políticos. Já na Teoria Geral do Estado, aparece ligado ao elemento povo como integrante do conceito de Estado. Dessa forma, fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania não apresenta um estatuto próprio pois na medida em que se relaciona a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresenta-se como algo ainda indefinido.(1)

A famosa Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, sob a influência do discurso burguês, cindiu os direitos do "Homem" e do "Cidadão", passando a expressão Direitos do Homem a significar o conjunto dos direitos individuais, levando-se em conta a sua visão extremamente individualista, cuja finalidade da sociedade era a de servir aos indivíduos, ao passo que a expressão Direitos do Cidadão significaria o conjunto dos direitos políticos de votar e ser votado, como institutos essenciais à democracia representativa.(2)

Com o triunfo do liberalismo, sufocou-se, então, a idéia de democracia, que só ocorre quando todas as camadas da sociedade têm as mesmas oportunidades de participação no processo econômico. Não era esta a preocupação da burguesia do Estado Liberal, no século XVIII.

A idéia de cidadão como participante da vida política do país em que reside, fica facilmente perceptível pela leitura do Article VI da Déclaration, que dispõe:

"La loi est l’expression de la volonté générale; tous les citoyens ont droit de concourir personnelement, ou par leurs représentants à sa formation; elle doit être le même pour tous, soit qu’elle protège soit qu’elle punisse. Tous les citoyens étant égaux à ses yeux, sont également admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité, et sans autres distinctions que celles de leurs vertus et de leurs talents."

Mais à frente, a Declaração, no seu Article XIV, também privilegia os citoyens, nestes termos:

"Les citoyens ont le droit de constater par eux-mêmes ou par leurs représentants la nécessité de la contribution publique, de la consentir librement, d’en suivre l’emploi et d’en déterminer la quantité, l’assiette, le recouvrement et da durée."

Na lição lapidar do Prof. José Afonso da Silva: "A idéia de representação, que está na base no conceito de democracia representativa, é que produz a primeira manifestação da cidadania que qualifica os participantes da vida do Estado – o cidadão, indivíduo dotado do direito de votar e ser votado –, oposta à idéia de vassalagem tanto quanto a de soberania aparece em oposição à de suserania. Mas, ainda assim, nos primeiros tempos do Estado Liberal, o discurso jurídico reduzia a cidadania ao conjunto daqueles que adquiriam os direitos políticos. Então, o cidadão era somente aquela pessoa que integrasse o corpo eleitoral. Era uma cidadania "censitária", porque era atributo apenas de quem possuísse certos bens ou rendas".(3)

A idéia de cidadão, que, na Antigüidade Clássica, conotava o habitante da cidade – o citadino – firma-se, então, como querendo significar aquele indivíduo a quem se atribuem os direitos políticos, é dizer, o direito de participar ativamente na vida política do Estado onde vive. Na Carta de 1824, por exemplo, falava-se, nos arts. 6.º e 7.º, em cidadãos brasileiros, como querendo significar o nacional, ao passo que nos arts. 90 e 91 o termo cidadão aparece designando aquele que pode votar e ser votado. Estes últimos eram chamados de cidadãos ativos, posto que gozavam de direitos políticos. Aqueles, por sua vez, pertenciam à classe dos cidadãos inativos, destituídos dos direitos de eleger e ser eleito. Faziam parte, nas palavras de José Afonso da Silva, de uma "cidadania amorfa", posto que abstratos e alheios a toda uma realidade sociológica, sem referência política.(4)

Assim, Homem e Cidadão recebiam significados diversos. É dizer, o Cidadão teria um plus em relação àquele, consistente na titularidade de direitos na ordem política, na participação da vida da sociedade e na detenção de riqueza, formando, assim, uma casta especial e mais favorecida, distinta do resto da grande e carente massa popular, considerados simples indivíduos.(5)

Esta idéia, entretanto, vai sendo gradativamente modificada, quando do início do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Passa-se a considerar como Cidadãos, a partir daí, não somente aqueles detentores dos direitos civis e políticos, mas todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) e também deveres, dos mais variados.

A Constituição brasileira de 1988, consagra, desde o seu Título I (intitulado Dos Princípios Fundamentais), esta nova concepção de cidadania, iniciada com o processo de internacionalização dos direitos humanos. Deste modo, ao contrario do que ocorria no constitucionalismo do Império, hoje, em face da Constituição vigente, aquela doutrina da cidadania ativa e passiva, não tem mais nenhuma procedência.

Para bem se compreender o significado dessa nova concepção de cidadania introduzida pela Carta de 1988, entretanto, é importante tecermos alguns comentários sobre a gênese do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado com o pós-Segunda Guerra, que culminou na Declaração Universal de 1948, revigorada pela segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de 1993.


3. O LEGADO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE 1948 AO PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Decorrido mais de meio século da proclamação da Declaração Universal de 1948, adentramo-nos hoje, ao que parece, na era internacional dos direitos ou dos direitos internacionalmente consagrados. Testemunha-se, hoje, uma crescente evolução na identidade de propósitos entre o Direito Interno e o Direito Internacional, no que respeita à proteção dos direitos humanos, notadamente um dos temas centrais do Direito Internacional contemporâneo.

A normatividade internacional de proteção dos direitos humanos, conquistada através de incessantes lutas históricas, e consubstanciada em inúmeros tratados concluídos com este propósito, foi fruto de um lento e gradual processo de internacionalização e universalização desses mesmos direitos.

Os direitos humanos passaram, então, com o amadurecimento evolutivo deste processo, a transcender os interesses exclusivos dos Estados, para salvaguardar, internamente, os interesses dos seres humanos protegidos.

Esta nova concepção, assim, pretendeu afastar, de vez, o velho e arraigado conceito de soberania estatal absoluta, que considerava como sendo os Estados os únicos sujeitos de direito internacional público, para proteger e amparar os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Os indivíduos, a partir de então, foram erigidos à posição – de há muito merecida – de sujeitos de direito internacional, dotados de mecanismos processuais eficazes para a salvaguarda dos seus direitos internacionalmente protegidos.

É, entretanto, somente a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que o Direito Internacional dos Direitos Humanos, efetivamente, se consolida. Nascidos dos horrores da era Hitler, e da resposta às atrocidades cometidas a milhões de pessoas durante o nazismo, esses acordos internacionais protetivos dos direitos da pessoa humana têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados no que diz respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição.

Neste contexto marcado por inúmeras violações de direitos, cujo saldo maior foram 11 milhões de mortos durante o período nazista, foi necessário construir toda uma normatividade internacional, a fim de resguardar e proteger esses direitos, até então inexistente. Viram-se os Estados obrigados a construir uma normatividade internacional eficaz, em que o respeito aos direitos humanos encontrasse efetiva proteção. O tema, então, tornou-se preocupação de interesse comum dos Estados, bem como um dos principais objetivos da comunidade internacional.(6)

Como bem explica a Prof.ª Flávia Piovesan, diante da ruptura "do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito", passou a emergir "a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral".(7)

O "direito a ter direitos", segundo a terminologia de Hannah Arendt, passou, então, a ser o referencial primeiro de todo este processo internacionalizante. Como resposta às barbáries cometidas no Holocausto, começa, então, a aflorar todo um processo de internacionalização dos direitos humanos, criando uma sistemática internacional de proteção, mediante a qual se torna possível a responsabilização do Estado no plano externo, quando, internamente, os órgãos competentes não apresentarem respostas satisfatórias na proteção desses mesmos direitos.

Um passo concreto foi dado, quando, no início do ano de 1945, em Chapultepec, no México, os vinte e um países da América se reuniram firmando a tese de que um dos principais objetivos das Nações Unidas seria a elaboração de uma Carta dos Direitos do Homem, razão pela qual a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, ficara impregnada da idéia do respeito aos direitos fundamentais do homem, desde o seu segundo considerando, onde se afirmou "a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos de homens e mulheres e das Nações grandes e pequenas".(8)

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Assim, a partir do surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945, e da conseqüente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a aflorar e a solidificar-se de forma definitiva, gerando, por via de conseqüência, a adoção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitos fundamentais dos indivíduos. Trata-se de uma época considerada como verdadeiro marco divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos.(9) Antes disso a proteção aos direitos do homem estava mais ou menos restrita apenas a algumas legislações internas dos países, como a inglesa de 1684, a americana de 1778 e a francesa de 1789. As questões humanitárias somente integravam a agenda internacional quando ocorria uma determinada guerra, mas logo mencionava-se o problema da ingerência interna em um Estado soberano e a discussão morria gradativamente. Assim é que temas como o respeito às minorias dentro dos territórios nacionais e direitos de expressão política não eram abordados a fim de não se ferir o até então incontestável e absoluto princípio de soberania.(10)

Surge, então, no âmbito da Organização das Nações Unidas, um sistema global de proteção dos direitos humanos, tanto de caráter geral (a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), como de caráter específico (v.g., as Convenções internacionais de combate à tortura, à discriminação racial, à discriminação contra as mulheres, à violação dos direitos das crianças etc.). Revolucionou-se, a partir deste momento, o tratamento da questão relativa ao tema dos direitos humanos. Colocou-se o ser humano, de maneira inédita, num dos pilares até então reservados aos Estados, alçando-o à categoria de sujeito de direito internacional. Paradoxalmente, o Direito Internacional feito pelos Estados e para os Estados começou a tratar da proteção internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado, único responsável reconhecido juridicamente, querendo significar esse novo elemento uma mudança qualitativa para a comunidade internacional, uma vez que o direito das gentes não mais se cingiria aos interesses nacionais particulares. Neste cenário, o cidadão, antes vinculado à sua Nação, passa a tornar-se, lenta e gradativamente, verdadeiro "cidadão do mundo".(11)

Mas a estrutura normativa de proteção internacional dos direitos humanos, além dos instrumentos de proteção global, de que são exemplos, dentre outros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e cujo código básico é a chamada international bill of human rights, abrange também os instrumentos de proteção regional, aqueles pertencentes aos sistemas europeu, americano, asiático e africano (v.g., no sistema americano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Da mesma forma que ocorre com o sistema de proteção global, aqui também se encontram instrumentos de alcance geral e instrumentos de alcance especial. Gerais são aqueles que alcançam todas as pessoas, a exemplo dos tratados acima citados; especiais, ao contrário, são os que visam apenas determinados sujeitos de direito, ou determinada categoria de pessoas, a exemplo das convenções de proteção às crianças, aos idosos, aos grupos étnicos minoritários, às mulheres, aos refugiados, aos portadores de deficiência etc.

Tais sistemas, cabe observar, não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros, onde fica permitido ao indivíduo que sofreu violação de direitos a escolha do aparato mais benéfico, tendo em vista que, não raramente, vários direitos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional ou ainda de alcance geral ou específico. Essa diversidade de sistemas, assim, interagem em prol da proteção da pessoa humana.(12)

O "Direito Internacional dos Direitos Humanos", emergido com princípios próprios, passa, então, a efetivamente solidificar-se como um corpus juris dotado de uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção que impõe obrigações e responsabilidades para os Estados no que diz respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição. Sua observância, assim, deixou de se subscrever ao interesse estritamente doméstico dos Estados, para passar a ser matéria de interesse do Direito Internacional e objeto de sua regulamentação.

Rompendo com a distinção rígida existente entre Direito Público e Direito Privado, e libertando-se dos clássicos paradigmas até então existentes, o Direito Internacional dos Direitos Humanos passa a afirmar-se como um novo ramo do direito, dotado de autonomia, princípios e especificidade próprios, cuja finalidade é a de assegurar a proteção do ser humano, nos planos nacional e internacional, concomitantemente.

Foi neste cenário que a Declaração Universal de 1948, composta de trinta artigos, precedidos de um "Preâmbulo" com sete considerandos, conjugou num só todo tanto os direitos civis e políticos, tradicionalmente chamados de direitos e garantias individuais (arts. 1.º ao 21), quanto os direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 ao 28). O art. 29 proclama os deveres da pessoa para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível, e no art. 30 consagra um princípio de interpretação da Declaração sempre a favor dos direitos e liberdades nela proclamados. Assim o fazendo, combinou a Declaração, de forma inédita, o discurso liberal com o discurso social, ou seja, o valor da liberdade com o valor da igualdade.

Firma-se, então a concepção contemporânea de direitos humanos, fundada no duplo pilar baseado na universalidade e indivisibilidade desses direitos. Diz-se universal "porque a condição de pessoa há de ser o requisito único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra condição"; e indivisível "porque os direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitos sociais, econômicos e culturais, já que não há verdadeira liberdade sem igualdade e nem tampouco há verdadeira igualdade sem liberdade".

A Declaração de 1948, dessa forma, demarca – repita-se – a concepção contemporânea de direitos humanos, deixando claro que não há direitos civis e políticos sem direitos sociais, econômicos e culturais, ou seja, não há liberdade sem igualdade. Da mesma forma, não há igualdade sem a plena a eficaz proteção da liberdade, ou seja, a igualdade fica esvaziada quando não assegurado o direito de liberdade concebido em seu sentido amplo.

Após um quarto de século da realização da primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Teerã em 1968, a segunda Conferência (Viena, 1993), reiterando os propósito da Declaração de 1948, consagrou os direitos humanos como tema global, reafirmando sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. Foi o que dispôs o parágrafo 5.º da Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, nestes termos:

"Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais".

Compreendeu-se, finalmente, que a diversidade cultural (relativismo) não pode ser invocada para justificar violações aos direitos humanos. A tese universalista defendida pelas nações ocidentais saiu, ao final, vencedora, afastando-se de vez a idéia de relativismo cultural, em se tratando de proteção internacional dos direitos humanos.

Enriqueceu-se, pois, o universalismo desses direitos, afirmando-se cada vez mais o dever dos Estados em promover e proteger os direitos humanos violados, independentemente dos respectivos sistemas, não mais se podendo questionar a observância dos direitos humanos com base no relativismo cultural ou mesmo com base no dogma da soberania.(13) E, no que toca à indivisibilidade, ficou superada a dicotomia até então existente entre as "categorias de direitos" (civis e políticos de um lado; econômicos, sociais e culturais, de outro), historicamente incorreta e juridicamente infundada, porque não há hierarquia quanto a esses direitos, estando todos eqüitativamente balanceados, em pé de igualdade. É dizer, a classificação tradicional das "gerações de direitos" não corresponde, historicamente, ao desenvolvimento do processo de efetivação e solidificação dos direitos humanos.

Objeta-se que se as gerações de direitos induzem à idéia de sucessão – através da qual uma categoria de direitos sucede à outra que se finda –, a realidade histórica aponta, em sentido contrário, para a concomitância do surgimento de vários textos jurídicos concernentes a direitos humanos de uma ou outra natureza. No plano interno, por exemplo, a consagração nas Constituições dos direitos sociais foi, em geral, posterior ao dos direitos civis e políticos, ao passo que no plano internacional o surgimento da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, propiciou a elaboração de diversas convenções regulamentando os direitos sociais dos trabalhadores, antes mesmo da internacionalização dos direitos civis e políticos no plano externo.(14)

O processo de desenvolvimento dos direitos humanos, assim, opera-se em constante cumulação, sucedendo-se no tempo vários direitos que mutuamente se substituem, consoante a concepção contemporânea desses direitos, fundada na sua universalidade, indivisibilidade e interdependência.

Afasta-se, pois, a visão fragmentária e hierarquizada das diversas categorias de direitos humanos, para se buscar uma "concepção contemporânea" desses mesmos direitos, a qual foi introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Como destaca Carlos Weis, insistir na idéia geracional de direitos, "além de consolidar a imprecisão da expressão em face da noção contemporânea dos direitos humanos, pode se prestar a justificar políticas públicas que não reconhecem indivisibilidade da dignidade humana e, portanto, dos direitos fundamentais, geralmente em detrimento da implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais ou do respeito aos direitos civis e políticos previstos nos tratados internacionais já antes citados".(15)

Desta forma, a dicotomia até então existente – leciona José Afonso da Silva – entre direitos civis (mais conhecidos como direitos individuais) e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, vai sendo suplantada pelo reconhecimento doutrinário da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.(16) E isto porque pensava-se que os direitos civis e políticos eram de aplicação imediata, bastando a abstenção do Estado para sua efetivação, ao passo que os direitos econômicos, sociais e culturais eram de aplicação progressiva, requerendo uma atuação positiva do Estado para que pudessem ser eficazes.(17)

Problema muito discutido dizia respeito à eficácia das normas da Declaração Universal de 1948, uma vez que ela, por si só, não dispõe de aparato próprio que a faça valer. À vista disso é que, sob o patrocínio da ONU, se tem procurado firmar vários pactos e convenções internacionais a fim de assegurar a proteção aos direitos fundamentais do homem nela consagrados, dentro dos quais destacam-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados pela Assembléia-Geral da ONU, em Nova York, aos 16 de dezembro de 1966. Surgiram estes tratados, pois, com a finalidade de conferir dimensão jurídica à Declaração de 1948, tendo o primeiro pacto regulamentado os arts. 1.º ao 21 da Declaração, e o segundo os arts. 22 a 28.(18)

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Sobre o autor
Valerio de Oliveira Mazzuoli

Doutor 'summa cum laude' em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito Internacional pela UNESP. Professor Titular de Direito Internacional Público da UFMT. Autor dos livros: "Alienação fiduciária em garantia e a prisão do devedor-fiduciante: uma visão crítica à luz dos direitos humanos", Campinas: Agá Juris, 1999; "Direitos humanos & relações internacionais", Campinas: Agá Juris, 2000; "Tratados Internacionais (com comentários à Convenção de Viena de 1969)", São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001; "Direito Internacional: tratados e direitos humanos fundamentais na ordem jurídica brasileira", Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2001; "Direitos Humanos, Constituição e os Tratados Internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira", São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002; e "Prisão Civil por Dívida e o Pacto de San José da Costa Rica", Rio de Janeiro: Editora Forense (no prelo).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAZZUOLI, Valerio Oliveira. Direitos humanos, cidadania e educação.: Uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2074. Acesso em: 19 mar. 2024.

Mais informações

Este texto é parte integrante do livro do autor "Direito Internacional: tratados e direitos humanos fundamentais na ordem jurídica brasileira", Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2001. Texto baseado na palestra proferida pelo autor no Simpósio "Aprendendo e Ensinando Direito: oficinas pedagógicas de direitos humanos e cidadania", realizado na Faculdade Paranaense-FACCAR, em Rolândia-PR. O autor agradece às professoras Maria de Fátima Ribeiro e Zelma Torres, ambas da Universidade Estadual de Londrina-PR (UEL), pelo convite.

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