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Entendendo a negociação da pena no novo Código de Processo Penal

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É bastante provável que nosso país se torne uma referência no modelo de aplicação imediata de pena, instituto inspirado no plea bargain, utilizado nos Estados Unidos desde o século XIX.

Imagine a seguinte situação: um sujeito percebe que determinada residência em um bairro nobre de sua cidade fica desocupada todos os meses, entre o dia 10 e o dia 15, período em que o casal de comerciantes que ali reside viaja ao exterior para adquirir novos produtos para suas lojas.

Ele passa então a planejar o arrombamento da casa. No mês de janeiro de 2012, aproveitando-se da ausência dos moradores, escala o muro da casa, invade o imóvel e de lá subtrai jóias e dinheiro, que utiliza nos dias seguintes para saldar dívidas.

Os comerciantes, no entanto, eram relativamente cautelosos: a casa não é assim tão segura, mas possui câmeras de vigilância. Tão logo retornaram para casa, isolaram a área e noticiaram o fato à Polícia Civil. Um inquérito policial é instaurado.

Em razão das filmagens, o criminoso é identificado em poucos dias. Localizado pelos policiais, é intimado para apresentar explicações e confessa a prática delitiva. O Delegado de Polícia é minucioso e determina a realização de outras diligências, visando à localização de possíveis testemunhas. Dez vizinhos são entrevistados, cinco deles viram o investigado próximo à casa, em dias alternados. Ninguém presenciou o fato.

Entendendo que o trabalho da Polícia Judiciária já se esgotou, o Delegado relata o inquérito.

O combativo Promotor de Justiça, no entanto, considera que uma perícia datiloscópica pode tornar mais robustas as provas contra o ladrão. Após a requisição do Ministério Público, uma equipe de papiloscopistas vai ao local e coleta impressões digitais em várias partes da residência. Apesar de já ter se passado algum tempo, os peritos conseguem demonstrar que muitas delas foram deixadas no local pelo criminoso.

De posse das novas provas, o Promotor de Justiça apresenta denúncia ao Poder Judiciário, requerendo a oitiva, em audiência, das vítimas, de quatro vizinhos que teriam visto o suspeito no local dos fatos e dos dois papiloscopistas que estiveram no local. A denúncia é recebida em outubro de 2012.

O acusado é cientificado da existência da ação penal e informa que não possui advogado. Representado pela Defensoria Pública, apresenta defesa, em 12 de dezembro de 2012, informando que prefere se manifestar no decorrer do processo e que gostaria que fossem ouvidos os donos da farmácia onde trabalha, que podem atestar que o acusado é pessoa de boa conduta e que o delito foi um fato isolado em sua vida.

O Juiz responsável pelo processo é dedicado, como a maioria dos magistrados no Brasil. A grande quantidade de feitos em tramitação em sua unidade torna inevitável a realização de audiências em todos os dias da semana, reduzindo seu tempo para atender partes e advogados, despachar e cuidar de questões administrativas do Fórum.

Diante da necessidade de destacamento de tempo para colher os depoimentos das dez testemunhas indicadas pelas partes, da necessidade de interrogatório do acusado e do volume de audiências já designadas, a instrução criminal é marcada para o dia 15 de julho de 2013, sendo expedidos onze mandados de intimação, que deverão ser cumpridos pessoalmente pelo Oficial de Justiça.

O acusado espera por este dia há um ano e cinco meses. As vítimas e as testemunhas sequer se recordam de detalhes dos fatos e já consideravam que nenhuma providência havia sido tomada.

A audiência é iniciada. São ouvidas as vítimas, as testemunhas da acusação e as testemunhas da defesa. O réu é interrogado por último e confessa a prática do delito, exatamente como havia feito no começo do ano anterior. As partes não pedem novas diligências. Apresentam seus argumentos finais, uníssonas ao pedir que a reprimenda seja aplicada em seu mínimo legal e que seja substituída por duas penas restritivas de direito. Na sentença, o Juiz determina que o réu indenize as vítimas pelos prejuízos sofridos e que trabalhe durante setecentos e trinta horas, gratuitamente, no hospital da comarca.

Pois bem. Está em tramitação no Congresso Nacional o PLS 156/2009 (Novo Código de Processo Penal). O exemplo narrado acima descreve um processo finalizado em um ano e cinco meses, prazo gil" se considerada a média de tramitação de feitos criminais no Brasil. Um excelente trabalho do Juiz Vilian Bollmann, intitulado "Medindo o prazo no Processo Penal", indica que os processos no Brasil apresentam tempo médio de 1.430 dias entre os fatos e a sentença, o que corresponde a quase quatro anos de andamento processual.

Uma das principais inovações do novo texto adjetivo se refere à possibilidade de aplicação imediata de pena nos crimes com punição máxima inferior a oito anos.

Se o novo texto for aprovado, o Ministério Público e o acusado (representado por seu defensor) poderão requerer ao Juiz a aplicação imediata da pena, em seu mínimo legal, dispensando a produção de provas, desde que o acusado seja confesso, sem prejuízo da substituição da reprimenda privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou de concessão de sursis.

O dispositivo é claramente inspirado no plea bargain, utilizado nos Estados Unidos desde o século XIX.

Atualmente, pelo menos 90% das sentenças criminais nos Estados Unidos são prolatadas seguindo este rito. A negociação é utilizada também no Canadá, Índia e Paquistão. Em países adotantes do direito positivo o modelo encontra maior resistência, principalmente porque a confissão é recebida meramente como mais uma prova a ser apreciada pelo Poder Judiciário. Entretanto, encontra previsão, ainda que mitigada, na França, Alemanha, Itália, Polônia e Geórgia.

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No ordenamento brasileiro a transação penal é hoje o instituto que mais se aproxima do modelo americano e é largamente utilizada nos Juizados Especiais Criminais.

Nos Estados Unidos o acusado tem a prerrogativa constitucional de ser julgado por um Júri, cabendo à acusação provar sua culpa e ao Juiz sopesar os fatos cuidadosamente para prolatar a sentença. Contudo, a constitucionalidade do plea bargain jamais foi afastada pela Suprema Corte. Pelo contrário, no ano de 1971, no caso Santobello v. New York (404 U.S.), o sistema foi definido como "um componente essencial da administração da justiça".

A implantação deste modelo no Brasil é bastante sedutora. Como Juiz, suponho que a redução ou simplificação de 90% dos processos criminais de minha comarca permitirá uma otimização do trabalho, inclusive com considerável redução de despesas. Sempre digo que o Estado brasileiro é perdulário para julgar e estupidamente econômico para prevenir e investigar.

O caso mencionado no início deste texto teria terminado em 30 ou 40 dias, talvez menos. É claro que a supressão de formalidades acarreta alguns receios, como a realização do acordo por medo ou pressão, a confissão para acobertar um delito cometido por terceiro ou a aplicação de punição inferior à que seria devida.

Por outro lado, no Brasil os membros do Ministério Público são concursados, escolhidos com rigor entre os mais competentes profissionais da área jurídica interessados no exercício desta função. Como ocorre em outras áreas, é bastante provável que nosso país se torne uma referência na aplicação deste modelo.

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Sobre o autor
Hugo Barbosa Torquato Ferreira

Juiz de Direito em Assis Brasil (AC). Foi advogado e Agente de Polícia Federal. Autor dos livros “Questões cíveis enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-414-1) e “Questões Criminais enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-415-8).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Hugo Barbosa Torquato. Entendendo a negociação da pena no novo Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3133, 29 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20961. Acesso em: 24 nov. 2024.

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