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IPVA: do domicílio tributário do sujeito passivo

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05/03/2012 às 15:02
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Domicílio tributário do proprietário do veículo é local onde o IPVA será devido. Identifica o Estado credor. Domicílio, no direito privado, determina o lugar onde a obrigação deve ser paga a credor já identificado em contrato celebrado entre as partes. Os institutos cuidam de obrigações de naturezas diversas.

1.    Resumo

Domicílio tributário do sujeito passivo do IPVA é importante porque determina a lei tributária estadual aplicável à relação de propriedade e, por consequência, o sujeito ativo da relação jurídica tributária. No entanto, regras sobre domicílio tributário da Lei paulista 13.296/2008 têm provocado questionamentos jurídicos de proprietários ou possuidores de veículos com mais de um domicílio ou residência, e que registraram seus veículos em órgãos de trânsito de Estados com alíquotas de IPVA inferiores à do Estado de São Paulo. A matéria é ainda mais polêmica quando o contribuinte é empresa locadora de veículos. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4376, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo questiona a constitucionalidade das regras aplicáveis às locadoras. São causas da discussão jurídica: o IPVA ter sido instituído por emenda constitucional posterior à edição do CTN, de modo que este não cuidou do domicílio tributário de contribuintes de imposto sobre a propriedade de bens móveis; a diferença de alíquotas do IPVA entre os Estados; a inexistência de alíquota mínima do IPVA, conforme está previsto na Constituição; a complexidade do tema domicílio no direito civil; a relação de propriedade, conceito jurídico abstrato que se manifesta no mundo real por meio de direitos constitutivos distintos, exercidos muitas vezes em locais diversos, por uma ou mais pessoas. Comentar aquelas regras é o objeto deste artigo.

2.    Palavras-chave

IPVA; domicílio tributário; sujeito ativo; critério espacial da hipótese de incidência; domicílio civil; direito de propriedade; direitos constitutivos da propriedade.


3.    Da criação do IPVA

O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) foi instituído pela Emenda Constitucional 27/1985, na vigência da Constituição de 1967, já com as substanciais modificações efetuadas pela Emenda 1/1969. O artigo 2º da Emenda Constitucional acrescentou ao artigo 23 da Constituição de 1967 o inciso III, de modo que aos impostos de competência dos Estados e do Distrito Federal foi adicionado o imposto sobre a “propriedade de veículos automotores, vedada a cobrança de impostos ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos”. Ao artigo 23 foram também acrescentados os parágrafos 13 e 14; o primeiro deles prescrevia a destinação de 50% (cinquenta por cento) do produto da arrecadação do imposto ao Município onde estivesse licenciado o veículo.

O inc. III do art. 155 da Constituição de 1988 manteve a competência dos Estados e do Distrito Federal para instituir o imposto sobre a propriedade de veículos automotores. No entanto, na nova redação do dispositivo não mais consta a vedação à cobrança de impostos ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos.


4.    Do critério espacial da hipótese da regra-matriz de incidência tributária

Critério espacial é o lugar onde deve ocorrer o fato descrito na hipótese de incidência do tributo. Ajuda a verificar se determinado evento do mundo real-social se subsume àquele fato. Em alguns tributos identifica o sujeito ativo da obrigação.

No texto de lei instituidora de determinado tributo, encontramos alguns critérios espaciais elaborados com mais cuidado que outros. No entanto, mesmo que pareça ter o legislador se esquecido de definir o critério espacial, “haverá sempre um plexo de indicações, mesmo tácitas e latentes, para assinalar o lugar preciso em que aconteceu aquela ação, tomada como núcleo do suposto normativo” (CARVALHO, 2008, p. 288).

Na definição do locus facti, Carvalho (2008, p. 289) vislumbra três níveis de elaboração. No nível superior, estão os Impostos de Importação e Exportação; no nível médio, o IPTU e o ITR; no inferior, os demais tributos (CARVALHO, p. 289-290), neles incluído o IPVA.

A anterior Lei do IPVA do Estado de São Paulo (6.606/1989[1]) não especificava o local de ocorrência da relação de propriedade do veículo (critério espacial da hipótese de incidência), mas sim o local onde o imposto era devido. A regra básica estava no art. 2º:

“Art. 2° - O imposto será devido no local onde o veículo deva ser registrado e licenciado, inscrito ou matriculado, perante as autoridades de trânsito, da marinha ou da aeronáutica.

Parágrafo único - Não estando o veículo sujeito a registro e licenciamento, inscrição ou matrícula, o imposto será devido no local de domicílio do seu proprietário” (grifamos).

Conforme se vê, o legislador teve o cuidado de referir-se ao local em que o imposto era devido, visto que não se pode vincular, de plano, propriedade de certo veículo a determinado local. De fato, na data definida em lei como a de ocorrência do fato gerador, a relação de propriedade existe independentemente do lugar em que o veículo esteja. Na realidade, a relação de propriedade do veículo existe durante todo o exercício ou parte deste. No entanto, “desponta a natural necessidade de que a norma tributária revele o marco de tempo em que se dá por ocorrido o fato, abrindo-se aos sujeitos da relação o exato conhecimento da existência de seus direitos e de suas obrigações” (CARVALHO, 2008, p. 292). Por essa razão, em caso de veículo usado, convenciona-se adotar para aquele marco temporal a data de primeiro de janeiro do exercício.

Mamede (2002, p. 64-65) entende que o critério espacial da hipótese de incidência do IPVA é dado pela própria Constituição, já que o inc. III do art. 158 prevê destinação de 50% (cinquenta por cento) do produto da arrecadação do IPVA ao Município onde o veículo estiver licenciado. Logo, o fato descrito na hipótese de incidência ocorre no Município onde o veículo está licenciado. Entendemos, porém, que a regra constitucional apenas fixa critério para repartição da metade da arrecadação do IPVA efetuada pelo Estado, entre os Municípios que o integram.

O problema descrito não existe para bem imóvel. Com efeito, como a propriedade de bem imóvel está vinculada ao local de sua situação, é este o critério espacial da hipótese de incidência do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) e do imposto sobre a propriedade territorial (ITR).

Para os veículos automotores terrestres, a regra do caput do art. 2º remetia para a aplicação de regra da legislação de trânsito. Esta regra está no art. 120 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB – Lei 9.503/1997), com a seguinte redação:

“Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei”.

Assim, o IPVA era devido ao Estado de domicílio ou residência do proprietário do veículo, de acordo com regras postas por lei válida e vigente no território daquele Estado. O domicílio ou residência do proprietário determinava a lei tributária aplicável à relação de propriedade.

Presume-se que proprietário de veículo utiliza-o predominantemente no Município em que se situa seu domicílio ou residência. No entanto, constatou-se registro indevido de veículos em órgãos de trânsito de Estados com menores alíquotas de IPVA por:

a)            pessoa natural que, mais por desconhecimento da lei do que por má-fé, entendia possuir domicílios ou residências no Estado de São Paulo e em outro Estado;

b)            empresa locadora que alterou seu contrato social, a fim de registrar a abertura de novo estabelecimento no Estado do Paraná ou do Tocantins, mas simulado, já que localizado no endereço de despachante conhecido como Rosa Negra, com escritórios em Curitiba e em Palmas;

c)            empresa locadora com estabelecimentos no Estado de São Paulo e em outro Estado, por entender que o registro do veículo deve ou pode ser feito no órgão de trânsito do Estado em que se situa respectivamente a sede da empresa ou o estabelecimento que escolheu como domicílio tributário.

De acordo com o disposto no inc. I do § 6º do art. 155 da CF, o IPVA terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal. Essas alíquotas mínimas, porém, ainda não foram fixadas. Se o Senado Federal as tivesse fixado, poderia não ter havido perda de arrecadação do IPVA pelo Estado de São Paulo ou poderia a perda ter sido de menor monta.

A fim de impedir a perda de arrecadação do IPVA para outros Estados, o Estado de São Paulo editou a Lei 13.296/2008[2], que tratou diretamente e de forma mais bem elaborada do domicílio do proprietário do veículo, uma vez que, nos termos do disposto no caput do art. 4º da Lei, o imposto será devido no local desse domicílio.

Além disso, o § 1º do art. 9º da Lei prescreve redução em 50% (cinquenta por cento) da alíquota para automóveis flex ou com motor especificado para funcionar à gasolina, destinados à locação, de propriedade de empresas locadoras, ou de que estas sejam possuidoras em decorrência de contrato de arrendamento mercantil, desde que a atividade de locação de veículos represente no mínimo 50% (cinquenta por cento) de sua receita bruta, mediante reconhecimento, segundo disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda (§ 2º do artigo). Assim, a alíquota daqueles veículos passa de 4% (quatro por cento) – cf. o inc. IV do art. 9º da Lei – para 2% (dois por cento)[3]. No entanto, a redução foi insuficiente para que locadoras passassem a registrar no órgão de trânsito do Estado de São Paulo veículos colocados à disposição para locação neste Estado. É que, por exemplo, as alíquotas de IPVA de veículos de propriedade ou posse de locadoras são de 1% (um por cento) nos Estados do Rio Grande do Sul[4], Santa Catarina[5], Paraná[6], Minas Gerais[7], e Tocantins[8], e de 0,5% (meio por cento) no Estado do Rio de Janeiro[9].

O critério material da hipótese de incidência do IPVA é estado do sujeito passivo (“ser proprietário de veículo automotor”) e não ação por ele executada (como, p. ex., “vender mercadorias”, “industrializar produtos”). Porque aquele estado existe em qualquer local que o veículo esteja, o legislador paulista editou regras sobre domicílio tributário do proprietário do veículo, em vez de regras sobre critério espacial da hipótese de incidência.

“Ser proprietário de veículo automotor” é situação jurídica que, relatada no antecedente de norma individual e concreta de lançamento, torna-se fato jurídico tributário. É estado, do sujeito passivo, não vinculado a determinado local. No entanto, ele se materializa por atos que denotam o efetivo exercício de um ou mais direitos constitutivos da propriedade (de usar, de gozar e de dispor do bem), esses sim vinculados a um ou mais locais determinados ou determináveis.


5.    Da propriedade

O direito de propriedade é “o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência” (MONTEIRO, 1993, p. 88).

Direito real é o exercido sobre uma coisa erga omnes, isto é, “em face de qualquer um ou perante todos indeterminadamente”. Não é uma relação entre pessoa e coisa, mas uma relação entre pessoas. O proprietário exerce uma faculdade perante todos, que se refere à obrigação universal e negativa de todos em absterem-se, de não perturbarem o uso e gozo da coisa, pelo proprietário (FERRAZ JR., 1990, p. 146-147).

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O conteúdo positivo do direito de propriedade é constituído por direitos elementares: de usar, de gozar e de dispor do bem, que correspondem ao jus utendi, jus fruendi e jus abutendi, atributos da propriedade romana (MONTEIRO, 1993, p. 91).

“O direito de usar compreende o de exigir da coisa todos os serviços que ela pode prestar, sem alterar-lhe a substância”. O direito de gozar é fazer frutificar a coisa, para auferir-lhe os produtos. O direito de dispor é poder consumir a coisa, aliená-la, gravá-la de ônus e submetê-la ao serviço de outrem (MONTEIRO, 1993, p. 91). Assim, usar de um veículo é utilizá-lo como meio de transporte de pessoas ou coisas de um lugar para outro; dele gozar é arrendá-lo ou alugá-lo; dele dispor é aliená-lo ou dá-lo a outrem, em usufruto.

A propriedade é plena, quando todos os seus direitos elementares estão reunidos no direito do proprietário; limitada, quando tem ônus real ou é resolúvel.

Alf Ross, apud Ferraz Jr. (1990, p. 144), assinala que a função primeira do direito subjetivo de propriedade “é a de um instrumento teórico que permite apresentar situações reguladas por normas de uma forma operacional”.

A expressão “transferir o direito de propriedade” funciona como uma espécie de abreviatura teórica que evita o árduo trabalho de descrever todas as normas aplicáveis à situação (FERRAZ JR., 1990, p. 144). Quando se diz “o indivíduo A tem a propriedade do bem imóvel ou móvel”, a impressão que se tem é a de que o conceito identifica conjunto determinado de normas que outorgam direitos ao indivíduo e lhe impõem obrigações. No entanto, o conjunto de normas não será o mesmo se A tiver a propriedade plena, a propriedade resolúvel[10] ou a nua propriedade[11]. Na propriedade de veículo automotor, portanto, é preciso examinar, em cada caso, que direitos elementares constitutivos da propriedade tem o proprietário ou possuidor e em que local, ou locais, esses direitos estarão sendo exercidos durante o ano civil.

5.1.    Diferença entre propriedade e domínio

Propriedade e domínio são conceitos que não devem ser confundidos. Propriedade é o gênero de que domínio é espécie. Propriedade é o conjunto de direitos reais e pessoais. Domínio, porém, compreende somente os direitos reais, ou seja, o direito de propriedade em relação às coisas materiais ou corpóreas (SILVA, 1973, p. 565).

Tal como o direito de propriedade, o domínio é direito absoluto, porque oponível erga omnes. Excluído seu titular, todas as demais pessoas estão na condição de sujeito passivo de uma obrigação negativa, ou seja, “no dever jurídico de abster-se de qualquer ato que possa embaraçar ou impedir o uso, gozo e disposição da propriedade sobre que recai” (SILVA, 1973, p. 566).

5.2.    Correlação entre propriedade e posse

De acordo com Ihering, apud Monteiro (1993, p. 19), há estreita correlação entre propriedade e posse. Para Ihering, a posse é a exteriorização da propriedade, a visibilidade do domínio. Possuidor é todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196 do Código Civil – CC). “A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto” (art. 1.197 do CC).

Durante a vigência de contrato de locação, o locatário tem o direito pessoal de usar o veículo, a posse direta. Ele tem o poder físico sobre o veículo, o corpus, que, segundo a teoria objetiva de Ihering, é o quanto basta para constituir a posse. Para Ihering é dispensável o animus, “a intenção de ter a coisa como sua” e segundo elemento constitutivo da posse pela teoria subjetiva de Savigny, pois ele está implícito no poder de fato exercido sobre a coisa (MONTEIRO, 1993, p. 17-19). Na realidade, porém, Ihering não eliminou o elemento volitivo em sua concepção de posse. Para ele, basta a vontade de proceder como proprietário (a affectio tenendi), independentemente da intenção de ter a coisa como sua (LEITE, 2009). Assim, para Ihering, o locatário é possuidor; para Savigny, é mero detentor.


6.    Do domicílio

6.1.    Do domicílio tributário

Domicílio tributário é o local em que o contribuinte manterá suas relações com o fisco (MACHADO, 2009, p. 149). A Fazenda Pública enviará comunicações, intimações e notificações ao domicílio tributário, pois é nesse lugar que espera encontrar o sujeito passivo, para a satisfação dos mútuos interesses (CARVALHO, 2008, p. 334-335).

Todas as regras sobre domicílio tributário estão previstas no art. 127 do CTN, que tem a seguinte redação:

“Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:

I - quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;

II - quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;

III - quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante.

§ 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.

§ 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior”.

Pela leitura isolada do caput do art. 127, parece haver liberdade de escolha do domicílio tributário pelo contribuinte ou responsável. No entanto, o sentido da regra do caput deve ser construído em harmonia com o da regra do § 2º do artigo, que prevê a possibilidade de a autoridade administrativa recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, situação em que se deve aplicar a regra do § 1º. Logo, “existem tributos cuja legislação específica exclui ou restringe a faculdade de escolha, pelo sujeito passivo, de seu domicílio tributário” (MACHADO, 2009, p. 150). É o que ocorre com o IPVA do Estado de São Paulo, cuja Lei 13.296/2008 tem regras que determinam o domicílio tributário do proprietário do veículo, aplicáveis, sobretudo, aos casos de ele também ter domicílio ou residência em outro Estado.

O local do domicílio tributário do contribuinte do IPVA deve estar no âmbito espacial de validade da lei tributária aplicável. Definida essa lei, identificado estará o sujeito ativo da relação tributária. Por ser o lugar onde deve ocorrer o fato descrito na hipótese de incidência, o critério espacial identifica, no caso do IPTU e do ITR, o sujeito competente para a exação. Há, portanto, estreita correlação do domicílio tributário com o critério espacial (CARVALHO, 2008, p. 336).

Por tais razões, o legislador do CTN criou regras para definir apenas 1 (um) domicílio para a pessoa natural ou jurídica. Nesse aspecto, o CTN aproxima-se mais do direito francês, que não admite a inexistência ou a pluralidade de domicílios. Essas regras estão na escolha:

a)            do centro habitual de atividade da pessoa natural, se sua residência habitual for incerta ou desconhecida (segunda parte do inc. I do art. 127);

b)            do lugar da sede da pessoa jurídica de direito privado (primeira parte do inc. II do art. 127);

c)            do lugar do estabelecimento em que ocorreram os atos ou fatos que deram origem à obrigação, em caso de pluralidade de estabelecimentos (segunda parte do inc. II do art. 127);

d)            do lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação, se inaplicáveis as regras dos incisos I e II do art. 127 (§ 1º do art. 127).

6.2.    Da inexistência de regras gerais sobre domicílio tributário do sujeito passivo do IPVA

O IPVA foi instituído durante a vigência do CTN. Na época de edição do Código, havia os seguintes impostos sobre o patrimônio: IPTU, de competência dos Municípios; ITR, de competência da União; e imposto sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos (ITBI), de competência dos Estados e do Distrito Federal[12]. Para os três impostos, domicílio tributário do contribuinte é o lugar de situação do bem imóvel (primeira parte do § 1º do art. 127 do CTN). O local do imóvel é o critério espacial da hipótese de incidência do IPTU (parte final do caput do art. 32 do CTN) e do ITR (parte final do art. 29 do CTN)[13].

Se o IPVA fosse de competência da União, não haveria conflito de competências. Apesar de o IPVA ser de competência dos Estados e do Distrito Federal e de incidir sobre a relação de propriedade de bem móvel, não foram acrescentadas ao CTN regras gerais sobre domicílio tributário do sujeito passivo desse imposto, principalmente para o caso de o contribuinte ter domicílios ou residências em mais de um Estado, ou para o caso de contribuinte e responsável terem domicílios em diferentes Estados. Assim, por inexistirem regras gerais sobre domicílio tributário do sujeito passivo do IPVA, poderá haver incompatibilidade entre regras das leis dos Estados e do Distrito Federal que dispuserem sobre a matéria.

6.3.    Do domicílio

De acordo com Silva (1973, p. 564), domicílio

“indica o centro ou sede de atividades de uma pessoa, o lugar em que mantém o seu estabelecimento ou fixa sua residência com ânimo definitivo.

É a residência mantida com o animus manendi, capaz de gerar uma situação de direito, objetivada pelo domicílio.

Daí porque entre domicílio e residência há certa diferença.

A residência, apresentando uma situação meramente de fato, é o local em que a pessoa vive, sem esse caráter definitivo ou de tê-lo como centro de atividades, advindo da permanência ou efetividade, e a intenção de mantê-la nesse sentido.

O domicílio, assim, pode compreender a residência.

Mas, esta nem sempre indica o domicílio, por vezes tido como a sede legal, ou eleita, da pessoa, para nele centralizar todos os seus negócios ou atividades”.

Por ser o centro ou sede de atividades da pessoa natural ou jurídica, domicílio é imperativo da segurança jurídica (LEITE, 2006). Por exemplo: a regra geral de competência territorial é o foro do domicílio do réu (caput do art. 94 do Código de Processo Civil – CPC); no direito das obrigações, o pagamento será efetuado no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias (art. 327 do CC).

No direito civil, domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo (art. 70 do CC); se tiver diversas residências onde, alternadamente, viva, cada uma delas será considerada domicílio (art. 71 do CC); para relações concernentes à profissão, domicílio será o lugar onde esta é exercida (caput do art. 72); se exercer profissão em lugares diversos, cada um deles será domicilio para as relações que lhe corresponderem (parágrafo único do art. 72); se não tiver residência habitual, domicílio será o lugar onde for encontrada (art. 73).

Domicílio da pessoa jurídica de direito privado é o lugar onde funciona a respectiva diretoria e administração, ou onde ela elege domicílio especial no seu estatuto ou atos constitutivos (inc. IV do art. 75); se tiver estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados (§ 1º do art. 75); se a administração ou diretoria da pessoa jurídica tiver sede no estrangeiro, o lugar do estabelecimento de cada agência será considerado domicílio para as obrigações por ela contraídas (§ 2º do art. 75).

O Código Civil brasileiro adotou o sistema do direito alemão, que admite a inexistência de domicílio ou residência (vide art. 73 do CC), a unicidade daquele ou desta, bem como a pluralidade de domicílios ou residências, para a pessoa natural (vide art. 71 do CC), e de (somente) domicílios, para a pessoa jurídica (vide §§ 1º e 2º do art. 75 do CC).

No entanto, é flexível o conceito de domicílio da pessoa natural ou jurídica adotado pelo Código Civil, conforme se depreende da análise das regras do art. 71, do caput e do parágrafo único do art. 72 e dos §§ 1º e 2º do art. 75.

6.4.    Domicílio do contribuinte do IPVA

Para escolha do domicílio tributário do contribuinte do IPVA, regra posta por lei tributária deve prevalecer sobre regra do Código Civil. É a aplicação do critério da especialidade. Afinal, obrigações tributárias decorrem da lei (são ex lege), enquanto obrigações do direito privado decorrem da autonomia da vontade (são ex voluntate). Carvalho (2008, p. 26-27) não concorda com a divisão das obrigações em ex lege e ex voluntate, visto que não se pode imaginar, no direito brasileiro, obrigações que não tenham resultado da lei. No entanto, o autor reconhece que “algumas requerem, de fato, a presença do elemento ‘vontade’ na configuração típica do acontecimento, enquanto outras não”.

Por dispor sobre normas gerais de direito tributário, o CTN tem status de lei complementar a que se refere o inc. III do art. 146 da Constituição Federal – CF. Conforme vimos, não há no CTN regras sobre domicílio tributário do sujeito passivo do IPVA. Podem os Estados e o Distrito Federal, portanto, legislar sobre a matéria (inc. I do art. 24 da CF, combinado com o seu § 3º), até que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenda a eficácia das regras da lei estadual que forem contrárias às da lei federal (§ 4º do art. 24 da CF). Além disso, os Estados e o Distrito Federal podem editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional previsto na Constituição (§ 3º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da CF).

No entanto, não pode regra posta por lei tributária ordinária alterar a definição, o conteúdo e o alcance que o conceito domicílio tem no direito privado (art. 110 do CTN[14]), pena de ter de ser aplicada regra sobre domicílio do Código Civil.

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Sobre o autor
Wagner Pechi

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. IPVA: do domicílio tributário do sujeito passivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3169, 5 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21219. Acesso em: 29 mar. 2024.

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