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As ações afirmativas como efetivação do princípio da igualdade

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26/05/2012 às 14:59
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A situação de marginalização em que se encontram os negros, mulheres, deficientes e homoafetivos não se baseia em retórica, mas em dados alarmantes. Um país que tem como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária não pode se esquivar de intervir diretamente nesses problemas sociais.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição brasileira de 1988, assim como outras Constituições de democracias consolidadas pelo mundo, tem como princípio a igualdade. Esta é alicerce para todos os direitos humanos. Não há que se falar em democracia sem se ter como fundamento o princípio da igualdade. Em nosso ordenamento jurídico, o princípio supracitado está inserto no art. 5º, caput, que prescreve: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”, além de estar previsto no art. 3°, inciso IV, que coloca como fundamento da República a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O conceito de igualdade, assim como os outros conceitos científicos, evolui com o tempo. A igualdade defendida pelo liberalismo era a igualdade formal, que tinha como fim abolir os privilégios existentes na própria lei. Os liberais defendiam que todos deveriam ser iguais perante a lei, possuindo os mesmos direitos garantidos no ordenamento jurídico. Com o passar dos anos, com a evolução da sociedade e dos seus anseios, a igualdade meramente formal passou a ser insuficiente. O princípio da igualdade passou a conter a previsão de ações que o afirmasse, que o tornasse efetivo não apenas na letra da lei, mas também na realidade fática. Nesse contexto, surgiu a igualdade material, que visa garantir a justiça social, proporcionando a igualdade de oportunidades, bem como condições reais de vida. Ademais, passou-se a não mais reconhecer apenas uma igualdade estática, negativa, mas uma igualdade dinâmica, positiva, que possui a intrínseca missão de promover uma igualação jurídica. Assim, começou-se a exigir não apenas o tratamento igual ao igual, mas o desigual aos desiguais na medida de sua desigualdade.

A própria existência de um princípio constitucional que garante a igualdade em nosso ordenamento jurídico já nos leva a concluir que existem desigualdades. Por isso, cabe ao poder público criar mecanismos que façam com que essas desigualdades sejam atenuadas. Dentre esses mecanismos, estão as ações afirmativas. Tais ações são, grosso modo, instrumentos criados pelo poder público que, de forma transitória, visam corrigir deformações sociais, tentando incluir socialmente os grupos taxados como minorias, tais como negros, mulheres, homoafetivos, portadores de deficiência física.

O objetivo principal do presente trabalho é fazer uma análise da legitimidade das ações afirmativas por meio do princípio da igualdade. Para tanto, será feito um estudosobre a constitucionalidade do instituto no ordenamento jurídico brasileiro e sobre a legitimidade do mesmo em relação aos principais tratados e convenções internacionais acerca do tema. Ao final, apresentaremos um breve panorama sobre a situação dos negros, homoafetivos, mulheres, portadores de deficiência no país, bem como os desafios e as perspectivas da aplicação das ações afirmativas no Brasil.


2. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

2. 1. CONCEITO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

A expressão princípio possui múltiplos sentidos,além de ser um tema bastante controverso no Direito. Apesar disso, iremos apresentar um conceito que irá nos ajudar na compreensão do princípio da igualdade, em seu sentido formal e material, e na sua aplicação ao caso concreto, sem ter o intuito, porém, de problematizar ou aprofundar na questão.

Os princípios são

ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] “‘núcleos de compensação’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Mas, como disseram os mesmo autores, “os princípios que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivadamente incorporados, transformando-se em normas-princípios e constituindo preceitos básicos da organização constitucional. (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006)

Canotilho divide os princípios constitucionais em político-constitucionais e jurídico-constitucionais. Os princípios político-constitucionais “traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição”. Na CF/88, esses princípios estão contidos nos artigos 1° ao 4°. Já os jurídico-constitucionais “são princípios constitucionais gerais informadores da ordem nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais (...)”. De acordo com o constitucionalista português, os direitos fundamentais, assim como o princípio da igualdade, fazem parte dos político-constitucionais (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006).

2. 2. CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A efetivação do princípio da igualdade é de fundamental importância para a garantia da existência do Estado Democrático de Direito. Não se concebe uma sociedade democrática sem a aplicação desse princípio, que é um dos seus fundamentos. José Luiz Quadros de Magalhães defende ser a igualdade jurídica o alicerce dos direitos individuais, tendo como função a transformação dos direitos dos privilegiados em direitos de todos os seres humanos. O constitucionalista acredita que esse princípio não se restringe aos direitos individuais, fundamentando também todos os direitos humanos (MAGALHÃES, 2004). Nessa mesma linha está José Joaquim Gomes Canotilho, que coloca o princípio da igualdade como “um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais (...)” (1993).

Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que a Lei não pode assegurar privilégios ou perseguições, deve, porém, ser instrumento que regula a vida social tratando de forma equitativa todos os cidadãos. O autor afirma que esse deve ser o conteúdo “político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes” (MELLO, 1999).

O princípio em tela tem como fundamento na Constituição da República Federativa do Brasil o art. 5º, caput, qual seja: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, (...)" e, além disso, tem como referência o art. 3°, inciso IV, para o qual “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um fundamento da República.Assim, percebe-se a importância dada pelos constituintes brasileiros ao princípio da igualdade, colocando-o como base, estrutura para a formação da república (MAGALHÃES, 2004).

ManoelGonçalves Ferreira Filho, dando a sua interpretação sobre o princípio da igualdade, defende que o tratamento dos iguais deve ser diferente em relação aos que se encontra em estado de desigualdade:

O princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual ao que se acham em desigualdade de situações. A justiça que proclama tratamento igual aos para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Ora, a necessidade de se desigualar os homens em certos momentos para estabelecer no plano do fundamental a sua igualdade cria problemas delicados que nem sempre a razão humana resolve adequadamente“(FERREIRA FILHO, 1986 apud MAGALHÃES, 2004, p.91).

Com efeito, percebe-se a importância do postulado aristotélico que conceitua a igualdade como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Canotilhotambém defende a importância de se tratar de forma igual os indivíduos de mesmas característicasno que tange à aplicação e previsão da lei. Apesar disso, o autor português afirma que

o princípio da igualdade, reduzido a um postulado de universalização, pouco adiantaria, já que ele permite discriminação quanto ao conteúdo (exemplo: todos os indivíduos de raça judaica devem ter sinalização na testa; todos os indivíduos de raça negra devem ser tratados igualmente em escolas separadas dos brancos) (1993, p.563).

Assim, a igualdade reduzida ao seu sentido formal, pode implicarno “simples princípio da prevalência da lei em face da jurisdição e da administração”. A fim de resolver o problema acima mencionado, Canotilho afirma ser importante delimitar os contornos do princípio da igualdade em seu sentido material, não ignorando, claro, a importância do seu sentido formal (1993, p.564).

A justiça formal, que se relaciona com a igualdade formal, consiste em “um princípio de ação, segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” (PERELMAN, 1963 apud SILVA, P.213), já a justiça material, intrinsecamente ligada à igualdade material, é “a especificação da justiça formal, indicando a característica constitutiva da categoria essencial, chegando-se às formas: a cada um segundo a sua necessidade; a cada um segundo os seus méritos; a cada um a mesma coisa”. Assim, por existir desigualdades, é que se busca a igualdade material, tendo como objetivo “realizar a igualização das condições desiguais” (SILVA, 2006, p.214)

O art. 1° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescreve que os homens nascem e crescem iguais em direito. Tal declaração consagra a igualdade formal no campo político, de caráter negativo, com o intuito de simplesmente abolir os privilégios de classe. Tal norma implicou sérias desigualdades econômicas, haja vista que se pautava numa visão individualista, vinda de uma sociedade liberal. Desde o império, nossas constituições também se baseavam na igualdade perante a lei, tratando todos igualmente sem levar em consideração a distinção entre os diferentes grupos (SILVA, 2006).

A atual Constituição da República Federativa do Brasil garante reais promessas de igualdade material. Isso se dá no art. 5°, I, quando tenta igualar em direitos e obrigações os homens e as mulheres; no art. 7°, XXX e XXXI, que veda distinções fundadas em certos valores tais como “diferenças de salários, de exercícios de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.Prevê ainda, de forma programática, a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III), repulsa à discriminação (art. 3°, IV), dentre outros (SILVA, 2006, p.211/212).

Kildare Gonçalves Carvalho acredita que a igualdade formal, vista como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, é insuficiente para que se efetive a igualdade material, definida pelo autor como “igualdade de todos os homens perante os bens da vida (...)”. O constitucionalista, por acreditar que os homens são desiguais em capacidade, ao lado de fatores como compleição física e estrutura psicológica, acredita ser difícil a efetivação da igualdade formal (CARVALHO, 2004, p.402). Assim, ele crê ser incorreto o enunciado do art. 5° da CF/88, quando diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”, haja vista que “prever simetria onde há desproporção visível não é garantir igualdade real, mas consagrar desigualdade palpitante e condenável”(MARINHO, 1992 apud CARVALHO, 2004, p.402).

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Canotilho defende que o sentido material deve se aliar à ideia de igualdade relacional,

pois ela pressupõe uma relação tripolar (PODLECH):  o indivíduo a é igual ao indivíduo b, tendo em conta certas características. Um exemplo extraído da jurisprudência portuguesa: o indivíduo a(casado) é igual ao indivíduo b(solteiro) quanto ao acesso ao serviço militar na Marinha, desde que reúna as condições de admissão legal e regularmente exigidas (características C1, C2 E C3). (CfrAc TC 336/86 e, mais recentemente, Acs. TC 186/91 e 400/91) (CANOTILHO, 1993, p.564).

A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente” não contém critério material para que se realize um juízo de valor em relação à igualdade ou desigualdade. Uma das maneiras de se valorar a relação de igualdade é por meio da proibição geral do arbítrio, que é a violação arbitrária da igualdade, ou melhor, quando a diferenciação entre indivíduos ou a desigualdade de tratamento tem origem na arbitrariedade. Apesar disso, a proibição geral do arbítrio é insuficiente caso não seja fundada em critérios que possibilitem a valoração das relações de igualdade. Assim, deve-se existir um critério material objetivo para se analisar o tratamento igual ou desigual. A proibição geral do arbítrio não deve ser a única forma de se interpretar a igualdade, deve ser apenas uma autolimitação da atuação do juiz, não impossibilitando, pois, a busca por formas mais adequadas ao caso concreto. Para se buscar uma análise mais adequada, deve-se aliar a necessidade de valoração ou de critérios de qualificação com a necessidade de encontrar elementos de comparação subjacentes ao caráter relacional do princípio da igualdade.  (CANOTILHO, 1993).

Celso Antônio Bandeira de Mello acredita que para que ocorra uma discriminação legal, respeitando o princípio da isonomia, deve se aliar quatro elementos, que são: a) que a diferenciação não atinja apenas a um indivíduo; b) que as situações ou pessoas afetadas pela diferenciação sejam realmente distintas entre si; c) “que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecidas pela norma jurídica”; d)

“que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público” (MELLO, 1990 apudCARVALHO, 2004, p. 403).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho também defende que o princípio da igualdade proporciona uma limitação ao legislador e uma regra de interpretação:

Como limitação ao legislador, proíbe-o de editar regras que estabeleçam privilégios, especialmente em razão da classe ou posição social, da raça, da religião, da fortuna ou do sexo do indivíduo. É também um princípio de interpretação. O juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie privilégios de espécie alguma. E, como juiz, assim deverá proceder todo aquele que tiver de praticar uma lei. (FERREIRA FILHO, 1990 apud CARVALHO, 2004, P.403)

O princípio da igualdade, sob o ponto de vista jurídico constitucional, “assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades (Equalityofopportunity) e de condições reais de vida”. Essa igualdade está comprometida com uma política de justiça social e com a garantia de normas constitucionais tendentes à efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como com o princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, deve ser visto não apenas como fundamento antropológico-axiológico contra discriminações, mas também como princípio “impositivo de compensação de desigualdade oportunidades e como princípio sancionador da violação da igualdade por comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissão)” (CANOTILHO,1993, P.568).

Nas palavras da ministra Cármem Lúcia Antunes Rocha, o que se busca não é uma igualdade que

frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tão grande e injusta que impeça  o homem de ser digno em sua existência e feliz em seu destino. O que se quer é a igualdade jurídica que embase a realização de todas as desigualdadeshumanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa se desenvolver. As desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhos singulares a cada ser humano único. (ROCHA, 1990 apud SILVA, 2006, p.213)

Marciano Seabra de Godoi esclarece que é melhor conceituar a igualdade como “tratar os indivíduos como iguais” do que tratar os indivíduos igualmente. O autor, citando Habermas, diz que não deve ocorrer necessariamente uma igualdade na forma de tratamento prevista em lei, deve existir, sim, uma equiparação nos direitos e “na forma efetiva em que participam do processo de elaboração da norma” (GODOI, 1999 apud SOUZA CRUZ, 2005, p.12).

Por fim, só se pode conceber uma sociedade como democrática a partir do momento em que se garante a igualdade. A possibilidade de se permitir a inclusão de diferentes projetos de vida numa sociedade pluralista, ainda que assim se permita a aplicação desigual do direito por meio de mecanismos de inclusão, é que permite a autocompreensão de uma sociedade como democrática (GALUPPO, 2002 apud SOUZA CRUZ, 2005).


3. DISCRIMINAÇÕES: CONCEITOS E (I)LEGITIMIDADE

3.1. DISCRIMINAÇÕES ILÍCITAS

Antes de se aprofundar no tema proposto, que é as ações afirmativas, é importante definir o conceito de discriminação e fazer uma diferenciação entre as possibilidades de se discriminar de forma lícita e ilícita. O constitucionalista Álvaro Ricardo de Souza Cruz, se valendo das convenções internacionais sobre a eliminação de todas as formas de discriminação, assim define a referida expressão:

Entendemos a discriminação como toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios como raça, cor da pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física, mental ou patogênica que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada (SOUZA CRUZ, 2005, p.15).

A discriminação,em suas diversas manifestações, se configura como forma de “valorização generalizada e definitiva de diferenças, reais ou imaginárias, em benefício de quem a pratica, não raro como meio de justificar um privilégio”. A discriminação é um apontamento ou uma invenção de uma diferença, que é valorizada ou absolutizada, por meio de uma atividade intelectual com o intuito de obter um privilégio ou praticar uma agressão (GOMES, 2001, p.18).

A discriminação intencional (ou tratamento discriminatório), de acordo com o ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, é a forma mais comum de se praticar essa agressão. A pessoa recebe um tratamento desigual e desfavorável na relação de emprego ou em outras atividades por causa de sua cor, raça, sexo, origem ou qualquer outro fator que a diferencie da maioria. Essa é uma modalidade que contém a maioria dos casos de discriminação e é a que grande parte das normas constitucionais ou infraconstitucionais antidiscriminatórias criadas se direcionam (GOMES, 2001).  

Ao se observar o Direito Comparado, percebe-se que a mera proibição dessas práticas discriminatórias não traz resultados satisfatórios. Essa medida é insuficiente haja vista ser praticada aliada à completa abstração de dois fatores importantes:

a) O aspecto cultural, psicológico, que faz com que certas práticas discriminatórias ingressem no imaginário coletivo, ora tornando-se banais, e, portanto, indignas de atenção salvo por aqueles que dela são vítimas, ora se dissimulando através de procedimentos corriqueiros, aparentemente protegidos pelo Direito; b) os efeitos presentes da discriminação do passado, cuja manifestação mais eloqüente consiste na tendência, facilmente observável em países de passado escravocrata e patriarcal, como o Brasil, de sempre reservar a negros e mulheres o posto menos atraente, mais servis do mercado do mercado (sic) de trabalho como um todo ou de um determinado ramo de atividade (GOMES, 2001, p.20).

Sob outro prisma, essa forma de discriminação, por ter como elemento a intenção, impõe a quem a alega o ônus da prova. Assim, em países como o Brasil, que possui uma manifestação discriminatória velada, dissimulada, ocorre um efeito nefasto nas políticas antidiscriminatórias adotadas, criando uma estigmatização do cidadão que tem a coragem de desafiar o status quo, gerando um isolamento e uma sensação de impotência em face do aparelho estatal que, “sendo por natureza hostil às suas reivindicações, utiliza-se do argumento processual da ausência da prova para tornar sem efeito as raras iniciativas individuais voltadas ao combate das práticas discriminatórias e racistas”(GOMES, 2001, p.20/21).

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, diferentemente do ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, acredita que a discriminação intencional é uma forma rara de se discriminar no Brasil. Apesar disso, afirma o autor, essas manifestações são tipificadas pela legislação penal brasileira. O constitucionalista assevera que a “tentativa de se extirpar o mal da discriminação pela via penal beira o ridículo, uma vez que não temos conhecimento de alguém que tenha cumprido pena por condenação criminal com amparo nesta legislação” (SOUZA CRUZ, 2005, p.30).

Assim como a discriminação intencional, existe a discriminação de fato, que é bastante comum no Brasil. Ela se configura quando o discriminador a comete sem ter a consciência de estar afetando o outro. As piadas politicamente incorretas são um exemplo disso e estão se tornando cada vez mais comuns no país, além da “política de neutralidade e de indiferença do aparato estatal para com as vítimas de discriminação”. O mito da democracia racial brasileira é reforçado por essa forma de manifestação preconceituosa (SOUZA CRUZ, 2005, p.30/31).

Em certas situações, como ocorre nas relações de emprego, a discriminação é tão incontestável, que o Direito a considera como presumida ou manifesta. Tal forma de manifestação é considerada como “Prima Facie Discrimination”pelo Direito americano. Nesses casos, deixa de se aplicar a obrigatoriedade do ônus da prova aos ofendidos, que vão ao judiciário para obter alguma medida de caráter injuntivo ou declaratório. A ausência do ônus da prova, porém, não se aplica nas postulações de caráter indenizatório. Uma das formas de se constatar a discriminação supra é por meio de dados estatísticos: demonstra-se, por exemplo, a sub-representação de uma determinada minoria em certos setores de atividades tendo como base a representação social dos grupos dentro da sociedade ou no mercado de trabalho. A técnica apresentada para combater a “Prima Facie Discrimination” não é utilizada pelo Direito brasileiro, sendo, contudo, um importante instrumento de inclusão social do sistema jurídico americano (GOMES, 2001).

A forma mais comum de se combater a discriminação é a coibição de tratamento discriminatório advindos de atos concretos ou manifestação expressamente ilícita. Apesar disso, existe a discriminação indireta, que se configura como “práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório”. Essas práticas são conhecidas como impacto desproporcional ou adverso, e são, à luz de um conjunto expressivo de doutrinadores americanos, a forma mais perversa,

eis que dissimula, quase invisível, raramente abordada pelos Compêndios de Direito, voltadas em sua maioria ao tratamento do amorfo conceito de igualdade perante a lei, sem levar na devida conta o fato de que muitas vezes a desigualdade advém da própria lei, do impacto desproporcional que os seus comandos normativos pode ter sobre certas pessoas ou grupos sociais (GOMES, 2001, p. 23).

A teoria da discriminação por impacto desproporcional é de origem norte-americana e se baseia no princípio da proporcionalidade. Essa discriminação viola o princípio da igualdade material quando a sua incidência resulta em efeitos nocivos a determinados grupos sociais. Diferentemente da discriminação intencional, ela não possui o elemento intencionalidade. O que ocorre é a violação da igualdade sem o intuito deliberado de discriminar. São práticas já aceitas socialmente no cotidiano e, por esse motivo, não são percebidas pelas pessoas, sendo legitimadas até mesmo por operadores do Direito (GOMES, 2001).

Um bom exemplo da utilização da teoria do impacto desproporcional é a avaliação para ingresso em universidades por exame de proveniência escolar, ou seja, de quais escolas vem o aluno. Em primeira leitura parece que isto é absolutamente aceitável, entretanto considerando que a maioria negra provém de escolas consideradas de péssimo ou baixo nível, a medida toma um novo cunho porque em resultado possibilitará o ingresso apenas de pessoas brancas, pelo menos em sua maioria esmagadora (...) (ALMEIDA, 2005).

Além das discriminações já descritas, existe outra grave modalidade de diferenciação ilícita, qual seja a discriminação na aplicação do direito. Assim como na discriminação por impacto desproporcional, naquela, pelo menos em sua forma mais ostensiva, não se configura o fator intencionalidade no ato normativo ou na decisão concreta questionada (GOMES, 2001).

São duas as modalidades de discriminação na aplicação do direito. Numa primeira forma, existe uma discriminação, apesar de a “norma aplicável à situação concreta ser facialmente neutra, isto é, não trazer nenhum indicativo de que tenha sido adotada com o propósito de discriminar este ou aquele grupo socialmente excluído”. Para que se conclua pela ilicitude, é necessário fazer uma análise dos resultados obtidos com a aplicação da norma, tendo como observação o favorecimento desproporcional de um grupo em face de outro. Outra forma se dá quando “a lei ou ato normativo de regência de uma determinada relação jurídica, embora facialmente neutro, isto é, vazado em linguagem destituída de qualquer conotação discriminatória, pode no entanto ter sido concebido com o propósito não declarado de prejudicar um determinado grupo social”(GOMES, 2001, p. 27).

3.2. DISCRIMINAÇÕES E INCONSTITUCIONALIDADE

A discriminação não autorizada na Constituição da República brasileira é considerada como ato inconstitucional. José Afonso da Silva (2006, p.228) divide essa inconstitucionalidade em duas formas:

a)   Conceder benefício legítimo a uma determina parcela de pessoas ou grupos, discriminando-os de forma favorável em face de não auxiliar outros grupos ou pessoas em situação equivalente. O ato é inconstitucional por não tratar de forma equânime ambos os casos. Contudo, o ato é constitucional em relação ao grupo que foi beneficiado, já que possuía o direito de recebê-lo. É necessário estender o benefício aos discriminados que requererem diante do judiciário, analisando caso a caso.

b)   “Impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer outro sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outras mesmas situações que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis”. O ato também é inconstitucional por ferir a isonomia, porém, deve ser considerado inconstitucional para quantas as pessoas o solicitarem, haja vista que não é admissível em direito impor uma situação jurídica detrimentosa a todos, sendo considerada uma forma de constrangimento não permitida (SILVA, 2006, p.228/229).

3.3. DISCRIMINAÇÕES LÍCITAS

Em situações excepcionais, a discriminação é prevista pelo Direito. Para que ocorra a discriminação legítima é preciso existir o caráter inevitabilidade, seja pela situação ou atividade que exige a diferenciação, separando por princípio e uma dose de razoabilidade alguns grupos sociais, seja também por certas característicasexistentes em determinado indivíduo. A justificativa de se separar em certas atividades é a existência de uma natureza que impossibilite a inclusão de todos os grupos. A exclusão de homens ou mulheres é um exemplo utilizado pelo ordenamento jurídico brasileiro para se fazer essa diferenciação: é legalmente admissível a exclusão de homens para exercerem o cargo de guarda em presídio feminino e é previsto a restrição às mulheres de trabalharem em alguns cargos das Forças Armadas do país (GOMES, 2001).

A discriminação positiva (“reverse discrimination”) ou ação afirmativa é outra forma de discriminação legítima. Consiste em discriminar de forma vantajosa um grupo historicamente marginalizado, de forma a inseri-lo no “mainstrean”, evitando que o princípio da igualdade formal funcione como mecanismo perpetuador da desigualdade.Tem como função tratar de maneira preferencial aqueles grupos tidos como minorias em direito, tentando colocá-los em patamar similar aos outros. Esse tipo de discriminação, “de caráter distributivo e restaurador, destinado a corrigir uma situação de desigualdade historicamente comprovada, em geral se justifica pela sua natureza temporária e pelos objetivos sociais que se visa com ela atingir” (GOMES, 2001, p.22).

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Sobre o autor
Giovanni Campanha de Oliveira

Analista Judiciário/Assistente de Juiz. Foi Advogado Trabalhista e Calculista. Bacharel e Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Giovanni Campanha. As ações afirmativas como efetivação do princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3251, 26 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21869. Acesso em: 16 abr. 2024.

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