Sumário: 1- Introdução. 2- O caráter relativo da publicidade. 3- A divulgação de tais dados no âmbito dos Estados e Municípios: necessidade de lei específica em cada unidade federativa. 4- Inviolabilidade dos dados pessoais (contracheque): CF, art. 5º, XII. 5- Conclusões. Bibliografia.
1- Introdução
Não há dúvida que existe um profundo débito político da Administração Pública brasileira com a sociedade, principalmente na questão da transparência. Por anos a fio, convivemos com uma Administração patrimonialista e avessa às luzes da publicidade. Com a edição e a entrada em vigor de uma nova lei (de n. 12.527, de 18.11.2011) sobre acesso a informações, mais profunda e mais rigorosa, grassou entre algumas autoridades administrativas o desejo de exibir um espírito republicano antenado com as últimas novidades legislativas.
Neste sentido, a Ministra do STF Carmen Lúcia, em atitude pioneira e num gesto de despojamento, exibiu seu contracheque em todos os pormenores. Como movimento voluntário e pessoal de abrir mão de seus direitos (plenamente disponíveis), na medida em que acredita toleráveis os desdobramentos, o gesto da ministra é louvável e magnânimo, embora alguns o acusem de midiático.
A questão assume outra conotação quando deriva de uma decisão administrativa extensível a todos os servidores, sendo obrigados a verem divulgados na rede mundial de computadores seus contracheques de forma individualizada e, de roldão, dados pessoais que compõem seu patrimônio material e moral.
Diante dessa celeuma anunciada e pelos claros reflexos constitucionais da matéria, resolvemos analisar a questão tanto pelo seu viés jurídico quanto pelos aspectos práticos.
2- O caráter relativo da publicidade
Nada no Direito é absoluto (Donizetti, 2009:361) e não há direito absoluto à luz da Constituição. E o princípio da publicidade compartilha dessa natureza relativa (as restrições constitucionais e legais o relativizam), comportando exceções válidas dentro da Administração Pública.
O inciso XXXIII, do art. 5º., da Constituição Federal restringe a publicidade de algumas informações por medida de segurança da sociedade e do Estado. Informações que possam atingir esses bens têm caráter sigiloso.
Além da segurança da sociedade e do Estado, outros limites ou restrições se impõem à publicidade e à informação como “o respeito aos direitos ou à reputação dos demais” ou “a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas” (art. 13.2, Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 25.09.1992 e promulgada através do Decreto n.º 678, de 06.11.92, publicado no Diário Oficial de 09.11.92).
A publicidade também deve respeitar informações relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas (CF, art. 5º., X), impondo a lei que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais...(e) terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo (e) poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem” (Lei n. 12.527/2012, art. 31, § 1º. incs. I e II).
Entre o público e o privado surgem tensões a exigir um trabalho de sopesamento de valores ou de bens jurídicos que aparecem, quase sempre, em aparente conflito. Este conflito cria incerteza quanto à licitude de divulgar informações que estão no limiar do público/privado (Egaña, 1992:13), mas acima de tudo, serve para realçar o caráter relativo da publicidade.
3- A divulgação de tais dados no âmbito dos Estados e Municípios: necessidade de lei específica em cada unidade federativa
A Lei n. 12.527/2011 estabelece normas gerais sobre o direito de acesso às informações com o fim de conferir uniformidade de tratamento da matéria no âmbito da federação. Tanto isso é verdade que no art. 45 diz caber “aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em legislação própria, obedecidas as normas gerais estabelecidas nesta Lei, definir regras específicas, especialmente quanto ao disposto no art. 9º e na Seção II do Capítulo III”.
A atual Lei de Acesso à Informação estabelece normas gerais, como refere em seu próprio texto, mas em alguns pontos desce a minúcias, restringindo a competência suplementar dos demais entes políticos. Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 308) registra esse fenômeno:
“A experiência já havida sobre uma legislação de normas gerais tem mostrado que a concepção que faz a União de que sejam normas geras é bastante ampla. Então, hoje, temos normas gerais de direito tributário, normas gerais de educação, e todas essas leis são bastante amplas, a ponto de tolherem quase que por completo a atuação livre dos Estados”.
Todavia, no que tange especificamente à publicidade de dados remuneratórios pessoais (exposição individualizada de contracheques), a Lei n. 12.527/2011 não faz nenhuma referência, embora estabeleça normas gerais sobre o tratamento de informações ou dados pessoais (cap. IV, Seção V, art. 31).
O Decreto n. 7.724, de 16.05.2012 (que regulamenta a Lei n. 12.527/2011) determina que sejam divulgadas na internet as informações sobre “remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão” (art. 7º, §3º., inc. VI).
Esse Decreto, entretanto, só se aplica no âmbito do Poder Executivo Federal, nos termos do seu art. 1º.
Isso significa que a divulgação de contracheques para ter aplicação no âmbito dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, depende de lei específica própria, tal como definido no art. 45 da Lei n. 12.527/2011 e remarcado em decisão do Min. Gilmar Mendes na Suspensão de Segurança n. 3902/2009:
“A forma como a concretização do princípio da publicidade, do direito de informação e do dever de transparência será satisfeita constitui tarefa dos órgãos estatais, nos diferentes níveis federativos, que dispõem de liberdade de conformação, dentro dos limites constitucionais, sobretudo aqueles que se vinculem à divulgação de dados pessoais do cidadão em geral e de informações e dados públicos que podem estar justapostos a dados pessoais ou individualmente identificados de servidores públicos que, a depender da forma de organização e divulgação, podem atingir a sua esfera da vida privada, da intimidade, da honra, da imagem e da segurança pessoal”.
4- Inviolabilidade dos dados pessoais (contracheque): CF, art. 5º, XII
De acordo com a Lei n. 12.527/2011 (art. 4º., IV) e o Decreto n. 7.724/2012 (art. 3º, IV) considera-se informação pessoal aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável, relativa à intimidade, vida privada, honra e imagem. As informações pessoais têm seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e podem ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem (Lei n. 12.527/2011, art. 31, § 1º. incs. I e II).
A Administração Pública, no que tange aos dados remuneratórios de seus servidores, não tem disponibilidade absoluta na divulgação ou publicidade, visto que em jogo o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo dos dados pessoais dos respectivos servidores. É possível conferir publicidade aos dados remuneratórios genéricos, por categoria funcional, pois neste caso não colide com os aludidos direitos personalíssimos (situação esta, inclusive, já consagrada constitucionalmente – art. 39, §6º).
O sigilo dos dados pessoais, tal como previsto no art. 5º., inc. XII, da CF, não pode ser divulgado, já que o dispositivo constitucional que o hospeda proíbe, de forma absoluta, a quebra do sigilo de correspondências, das comunicações telegráficas e dos dados (pessoais):
“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Ademais disso, a remuneração ou o subsídio dos servidores são depositados em contas correntes no sistema financeiro, e a exibição dos respectivos contracheques implicaria, por um movimento de dedução lógica, numa violação prévia e indireta, do sigilo bancário, igualmente protegido pelo art. 5º., inc. XII, da Constituição Federal.
E se, por hipótese nada improvável, o servidor tiver como única fonte de renda os recursos recebidos da Administração Pública, sua divulgação implicaria também numa violação, apriorística, de seu sigilo fiscal. Essas informações serão as mesmas que abastecerão a declaração de imposto de renda ficando, então, acobertadas pelo sigilo fiscal, espécie do gênero dados pessoais (CF, art. 5º., XII) e espécie de direito à privacidade (CF, art. 5º., X).
Os dados pessoais devem ser objeto de um tratamento leal e lícito, e ser divulgados para finalidades determinadas, explícitas e legítimas. A Administração Pública, ao produzir e custodiar (Lei n. 12.527/2011, art. 8º., caput), é responsável pelos dados pessoais e sigilosos constantes nos contracheques, não devendo fornecê-los a ninguém, salvo nos casos previstos em lei (art. 31, §3º., incs. I a V, da Lei n. 12.527/2011). A divulgação ex officio, fora das hipóteses legais, viola direito ao sigilo de tais dados.
A Lei n. 12.527, de 18.11.2011 (que regula o acesso a informações), dispõe no art. 3º que os procedimentos previstos em seu texto “destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública...”.
Os princípios básicos da administração pública são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, tal como previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal.
Os atos de divulgação e publicidade da administração pública não podem, portanto, revestir-se de caráter pessoal, isto é, não podem ser elaborados tendo em vista o rosto determinado, seja de servidores ou de administrados. O princípio da impessoalidade está relacionado ao princípio da finalidade que se traduz na busca da satisfação do interesse público, sem prejudicar, injustificadamente, interesses particulares.
Uma das diretrizes traçadas pela Lei n. 12.527/2011 é que a divulgação de informações de interesse público independem de solicitação ou requerimento (art. 3º., inc. II). Ou seja, aquelas informações que se refiram a dados pessoais inerentes à intimidade ou à vida privada, passam a depender de requerimento específico e atendimento de certas condições previstas em lei (art. 10).
Qual o “interesse público e geral preponderante” em saber o que o servidor X, Y ou Z ganha? Se tal interesse, sem qualquer motivo justo (como suspeita de enriquecimento ilícito ou de auferir vantagens indevidas, repressão a infrações penais etc., tal como previsto no art. 31, §4º, da Lei n. 12.527/2011), for guindado à natureza de “público” e “geral” deixará de existir, neste país, a proteção aos sigilos bancários e fiscais de todos os servidores públicos.
O interesse público e geral restringe-se em saber dos valores despendidos com cada categoria funcional (em todos os seus pormenores remuneratórios), não em saber quanto ganha, mês a mês, fulano ou sicrano. Isso pode atender a uma curiosidade gratuita e mal sã de alguns, servindo para o deleite fútil de quem acessa, não ao interesse superior do povo e da sociedade de controlar e fiscalizar os gastos públicos.
E esses valores despendidos por categoria funcional já têm sua publicidade atendida na própria Constituição Federal, art. 39, §6º:
“Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário publicarão anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos”.
Em essência, as informações constantes nos contracheques dos servidores têm caráter pessoal e são, portanto, informações protegidas da curiosidade gratuita ou malévola de outros particulares (arts. 6º., III e 31, §1º, I, da Lei n. 12.527/2011). Não constituem informações de interesse público, sendo o seu acesso, portanto, restrito.
A publicidade, a par de suas restrições, é um dever de conteúdo plural (Perez, 2006:93-94) porque tem duas vertentes: o dever de informar e o dever de calar. O dever de calar exterioriza-se por duas formas: o dever de segredo que trata de assuntos específicos e concretos aos quais se confere o caráter de reservados e o dever de sigilo que expressa um dever pessoal de discrição no manuseio dos dados, de forma a impedir danos aos cidadãos e ao poder público.
Se na vida pública predomina o direito à informação, na vida privada prevalece o direito à intimidade. No âmbito privado protege-se a intimidade como atributo personalíssimo inalienável, sobre o qual não cabe a publicidade, porque esta, em tal caso, busca satisfazer a simples curiosidade pública, sem propósitos de informação legítima.
Se a liberdade dos antigos consistia no direito de participar da vida pública (com seu bônus e ônus), a liberdade dos modernos consiste no direito de refugiar-se na vida privada (na esfera de intimidade), sem ser molestado por ninguém (to be let alone ou diritto di essere lasciato soli).
5- Conclusões
As restrições à publicidade se apresentam como necessárias numa sociedade democrática, sendo orientadas por direitos sócio-políticos supraindividuais como segurança nacional, da sociedade ou do Estado (no âmbito público) ou direitos personalíssimos como honra, intimidade ou vida privada (no âmbito privado). Entre as várias opções para alcançar esse objetivo, deve ser eleita aquela que restrinja em menor escala o direito protegido. Ou seja, a restrição deve ser proporcional ao interesse que a justifica e deve ser apta a alcançar o objetivo legítimo, interferindo o mínimo possível no efetivo exercício do direito (González, 2011).
A partir disso, algumas conclusões podem ser alinhadas:
1- Apesar de ampla, a publicidade não pode ser ilimitada ou absoluta. Por isso, constitui-se num direito fundamental instrumental e relativo, sendo restringido por direitos sócio-políticos supraindividuais (segurança da sociedade e do Estado) ou direitos personalíssimos (intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas).
2- O sigilo, em todas as suas gradações (ultrassecreto, secreto e reservado) tem um caráter inextensível, excepcional e restritivo, devendo ficar confinado aos casos especificados.
3- A divulgação de dados remuneratórios pessoais (exposição individualizada de remuneração ou subsídio vinculado ao nome do servidor) para ter aplicação no âmbito dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, depende de lei específica própria, no exercício da competência legislativa suplementar (CF, arts. 24, § 2º; 30, inc. II).
4- A Administração Pública no que tange aos dados remuneratórios de seus servidores não tem disponibilidade absoluta na divulgação ou publicidade, em face do direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo dos dados pessoais dos respectivos servidores (CF, art. 5º., incs. X e XII).
5- Além de inconstitucional, a medida é politicamente desastrosa por expor os servidores (e suas famílias) à indústria do sequestro relâmpago, extorsões, constrangimentos e a toda espécie de parasitismo social.
Bibliografia:
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro:Lúmen Júris, 11ª edição, 2009.
EGAÑA, José Luis Cea. Vida pública, vida privada y derecho a la información: acerca del secreto y su reverso. Chile:Revista de Derecho, vol. III, n. 1-2, 1992, pp. 13-23.
GONZÁLEZ, Miguel Angel Fernandez. El Principio Constitucional de Publicidad. Web ‹http://www.derecho.uchile.cl/jornadasdp/archivos/el_principio_constitutional_de_publicidad.pdf›. Acesso em: 10.06.2012.
PEREZ, Jesús Gonzalez. Corrupción, ética y moral en las Administraciones Públicas. Madrid:Thomson, 2006.