2 A TEORIA DA DESCONSTRUÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO
Hodiernamente a teoria do regime jurídico-administrativo, erigida por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO e acolhida pela grande maioria da doutrina publicista brasileira, sofre contemperamentos. Juristas de renome vêm sustentando que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, um dos pilares do regime jurídico-administrativo não merece acolhida perante o ordenamento jurídico-constitucional pátrio, e deve ser “desconstruído”.
Os argumentos invocados pela teoria da desconstrução são de três ordens principais, podendo assim ser resumidos:
2.1 A supremacia do interesse público sobre o particular não é princípio-norma
Dentre os críticos que se destacam pelo ataque ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado sob este fundamento, se pode citar HUMBERTO ÁVILA. Em sua análise o autor parte da distinção entre três dos possíveis conceitos de princípio encontrados na doutrina: (a) princípio como axioma, ou proposição inquestionável, verdade aceita por todos; (b) princípio como postulado normativo, ou seja, condição para que se conheça determinada matéria ou objeto; e (c) princípio como norma (ÁVILA, 1998, 161/164).
Segundo o autor a doutrina criticada trata o princípio ora como axioma, ora como postulado normativo, e até como um princípio-norma. Contudo, segundo expõe, há grande equívoco em se considerar a supremacia do interesse público sobre o privado como princípio-norma.
O argumento baseia-se nas concepções de princípios formuladas por ROBERT ALEXY e RONALD DWORKIN que, apesar de não serem absolutamente idênticas, complementam-se e conduzem a um resultado prático único, razão pela qual serão considerados, para os efeitos dialéticos aqui pretendidos, como aplicáveis de forma uníssona.
A doutrina ora analisada preconiza, em linhas gerais, que os princípios, ao lado das regras, são espécies de normas jurídicas. Neste sentido, apresentam a estrutura lógica em que se descreve uma hipótese no antecedente, a qual, uma vez ocorrida, implica na incidência dos efeitos previstos no conseqüente. Regras e princípios diferem, no entanto, quanto à sua incidência. Conforme explica RICARDO MARCONDES MARTINS, “tanto as regras quanto os princípios são padrões que apontam para decisões particulares, distinguindo-se, entretanto, na natureza da orientação que oferecem” (2005, p. 241).
Tal distinção consiste na incidência da regra do tudo-ou-nada, à qual estão suscetíveis somente as regras, não os princípios. Na descrição desta regra, explica DWORKIN que:
[...] as regras são aplicadas à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos, que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, apud MARTINS, 2005, p. 241).
A noção apresentada evidencia que não há meio termo na aplicação da regra. Ou a mesma é válida ou não. Em sendo válida, uma vez ocorridos os fatos descritos na hipótese, deverá ser aplicada, a menos que incida em exceção previamente estabelecida pelo sistema. Ao contrário, se for inválida, não deverá ser aplicada.
O mesmo não acontece com os princípios, pois estes, conforme MARTINS, sintetizando o pensamento de DWORKIN, “não descrevem eventos que, se ocorridos no mundo fenomênico, impliquem na necessária aplicação do exigido pelo princípio”, pois “diante do caso concreto pode haver outro princípio ou outra política que conduza o argumento em direção oposta” (2005, p. 242). Para uma melhor elucidação, cumpre transcrever as palavras do próprio DWORKIN:
Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio de nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como se fosse uma razão que inclina numa ou noutra direção (DWORKIN, apud MARTINS, 2005, p. 242).
Do enunciado já se pode antever a segunda característica que diferencia regras e princípios, atinente às diferentes dimensões de peso atribuídas aos princípios. Assim, se as regras têm sempre pesos idênticos, em eventual conflito entre duas delas, necessariamente uma terá de ser declarada inválida. Diferentemente ocorre com os princípios, os quais podem ter pesos diferentes e, em eventual contraposição, o princípio mais pesado ou mais relevante afastará a incidência do outro sem, contudo, implicar na exclusão deste último do sistema jurídico ou a existência de exceção previamente estabelecida.
Após a análise da doutrina de DWORKIN, já é possível identificar com clareza a distinção entre regras e princípios. Para a consecução dos objetivos do presente trabalho, cumpre afastar a análise das regras e concentrar como objeto do estudo os princípios. Neste mister, cumpre associar às características dos princípios até o momento identificadas, outro traço marcante em sua aplicação, estabelecido por ALEXY, consistente na lei da ponderação.
Para ALEXY, “princípios são mandados de optimização que ordenam que algo deva ser realizado na maior medida possível de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas” (ALEXY, apud MARTINS, 2005, p. 252). Assim, num eventual conflito entre princípios a solução será atingida por meio de um juízo de ponderação em que “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, apud MARTINS, p. 252). A decisão, que sempre envolverá juízo de valor do aplicador, deve ser fundamentada, motivada de forma racional, para que seja reduzido o grau de subjetivismo.
Estas são as notas básicas da moderna teoria dos princípios que, obviamente, é bem mais rica e detalhada do que a forma como aqui foi exposta. No entanto, as questões suscitadas, de forma sintética, correspondem às noções que interessam ao presente estudo.
Nesta senda, e voltando à linha de raciocínio central do trabalho, é com base nas idéias supramencionadas, que apresentam a concepção vigorante na moderna Teoria Geral do Direito, que os defensores da “desconstrução” afirmam que a supremacia do interesse público sobre o privado, em verdade, não se trata de princípio, pois denota em sua aplicação uma situação rígida: sempre prevalece o interesse público sobre o privado. Em outros termos, não admite ponderação, não podendo ser considerado princípio-norma.
2.2 Supremacia do interesse público não condiz com a idéia de bem comum
O segundo argumento contra o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado consiste na afirmação de que a noção de interesse público não se coaduna com a de bem comum. Este argumento decorre do primeiro, em que, conforme restou demonstrado, para que se tenha um princípio, é necessária a existência prévia de dois ou mais valores a serem ponderáveis no caso concreto. Neste sentido, afirma ÁVILA:
Ele (o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado), tal como vem sendo descrito pela doutrina, não se identifica com o bem comum. Bem comum é a própria composição harmônica do bem de cada um com o de todos, não o direcionamento dessa composição em favor do interesse público (1998, p. 160).
O autor pressupõe que a concepção da supremacia do interesse público defendida por BANDEIRA DE MELLO, e aceita pela maioria da doutrina brasileira, parte da premissa de que interesses públicos e privados são passíveis de entrar em choque entre si. Daí, em situação de conflito, sempre prevalece o interesse público.
Este pressuposto utilizado de base para a crítica, infirma a idéia de bem comum como finalidade do Estado, pois esta exige a harmonização entre interesse público e interesse privado e não uma norma de supremacia dos primeiros diante dos últimos.
2.3 Supremacia do interesse público conflita com os direitos fundamentais
Por fim, uma terceira linha de argumentação culmina com a conclusão de que a supremacia do interesse público não é compatível com o sistema jurídico-constitucional vigente, pois, ao colocar em conflito os interesses públicos e privados, predetermina a prevalência daqueles sobre estes últimos.
Esta idéia, além de não se coadunar com o conceito de bem comum, conforme demonstrado no item acima, implica em demasiado risco – segundo a crítica – aos direitos fundamentais individuais, quando somada à indeterminação do conceito de interesse público.
Explica-se: como conseqüência desta indeterminação, caberia ao subjetivismo do aplicador do Direito, especialmente o Administrador Público, delimitar o alcance da expressão interesse público, o que poderia resultar em alargamento do conceito, inclusive em detrimento dos direitos individuais fundamentais, que assim estariam submetidos a restrições cada vez mais severas, denotando “uma absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira” (SARMENTO, 2007, p. 27).
O argumento ora esposado, relativo ao choque entre a supremacia do interesse público sobre particular e os direitos fundamentais, juntamente com o argumento relativo à incompatibilidade entre os conceitos de interesse público e bem comum, decorrem do primeiro, que preconiza a impossibilidade de aceitação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular como princípio-norma, nos termos da classificação usualmente adotada pela Teoria Geral do Direito.
Em conjunto, e de uma forma geral, os três argumentos tendem à “desconstrução” da supremacia como princípio fundamental do regime jurídico-administrativo e até mesmo do próprio Direito Público. Com base nesta construção teórica, ALEXANDRE SANTOS ARAGÃO conclui que o “direito público não pode mais ser visto como garantidor do ‘interesse público’ titularizado pelo Estado, mas sim como o instrumento de garantia, pelo estado, dos direitos fundamentais positivos ou negativos” (2007, p. 2).
Com base nesta idéia, os respeitáveis autores propõem a mudança do regime jurídico-administrativo, com a exclusão do primado da supremacia como modelador das relações entre interesses públicos e interesses privados. Tais relações passariam a ser regidas pelo princípio da proporcionalidade.
3 A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO
Na linha do que se propõe como objetivo para este trabalho seguir-se-á com a análise do princípio da supremacia do interesse publico sobre o privado, agora com o cotejo entre os argumentos que o indicam como pilar do regime jurídico-administrativo e os argumentos esposados pela doutrina da “desconstrução”. Ao final, espera-se demonstrar a subsistência do princípio da supremacia.
3.1 Natureza jurídica: princípio?
Para a teoria da “desconstrução”, da qual se pode citar como expoente HUMBERTO ÁVILA, a supremacia do interesse público sobre o privado não pode ser considerada princípio-norma, nos termos da classificação aceita pela Teoria Geral do Direito.
Conforme já explicitado, a teoria crítica assevera que um princípio é uma espécie de norma, que tem como características (a) a possibilidade de ter afastada a sua incidência sem que isso represente, contudo, sua exclusão do sistema ou uma exceção; (b) a possibilidade de representar valores menos ou mais relevantes em relação a outros princípios; e (c) a aplicação mediante a lei da ponderação, em detrimento da regra do tudo-ou-nada – esta exclusiva das regras.
A supremacia do interesse público, segundo a teoria da “desconstrução”, não apresenta tais características, pois para seus defensores sua aplicação é sempre devida, não podendo ser afastada pela incidência de qualquer outro princípio, seu valor é absoluto, bem como, em eventual caso de conflito, sempre representaria a preponderância dos interesses públicos de forma predeterminada, ou seja, prescindiria de ponderação. Em síntese, a supremacia do interesse público sobre o privado é um axioma e não um princípio. Daí se desencadeiam os demais argumentos que visam a sua “desconstrução”.
A análise é bem pertinente. Com efeito, à luz da teoria de DWORKIN e ALEXY, a conclusão parece correta. Entretanto, não é suficiente para afastar a o uso da expressão “princípio” para rotular a supremacia do interesse público sobre o privado. Por uma razão bastante simples: o conceito utilizado por BANDEIRA DE MELLO e aceito para os adeptos de sua teoria é diverso. Para o autor:
Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico (2010, p. 53).
Efetivamente, o conceito mais caracteriza um axioma do que propriamente um princípio-norma descrito pela Teoria Geral do Direito. O que, no entanto, de forma alguma afasta a possibilidade de utilização da terminologia princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Em primeiro lugar, porque, como na lição amplamente reconhecida de AGUSTÍN GORDILLO, a taxonomia não suplanta a dogmática. Com efeito, uma palavra pode ter diversas acepções. Como também é possível denominar determinada noção, idéia ou coisa, por meio de qualquer palavra. Basta que haja uma explicação lógica, capaz de expedir um sentido útil, de forma que possa ser aceita por outros membros do corpo social. Neste sentido, vale anotar as palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] é preciso ter em mente – recordando – que as coisas não mudam de nome, nós é que mudamos o modo de nomear as coisas” (2009, p. 121/122).
Nesta senda, vale esclarecer sobre as três fases do conceito de princípios jurídicos no âmbito da Ciência do Direito. Para tal empreitada, é de todo conveniente fazer uso da exposição de MARTINS, in litteris:
Na primeira fase aproximava-se do significado comum da palavra: princípios eram os fundamentos de uma dada disciplina jurídica, seus aspectos mais importantes. Na segunda fase adquire significado técnico: princípios deixam de ser todo assunto importante e geral, e passam a ser determinados enunciados do direito positivo, dotados de extraordinária importância para o entendimento de todo o sistema, diante da alta carga valorativa a eles atribuída. Têm conteúdo normativo, pois fazem parte do sistema jurídico, são diretrizes ou vetores de interpretação de todas as normas jurídicas extraídas do sistema, mas não são normas jurídicas autônomas, não têm a estrutura própria das normas jurídicas. Vigora na Teoria Geral do Direito a terceira fase do conceito de princípios jurídicos: estes têm estrutura lógica de normas jurídicas (2008, p. 27/28).
Observa-se, portanto, que a terceira fase aludida corresponde à concepção de princípio utilizada pela doutrina crítica da supremacia do interesse público sobre o privado, a qual já foi caracterizada de forma suficiente para os desideratos do presente trabalho. Nota-se ainda, que a teoria preconizada por BANDEIRA DE MELLO, jamais pretendeu dar o sentido de norma jurídica à expressão princípio. É visível, até pelo conceito de princípio apresentado pelo autor baseia-se no conceito de princípio jurídico atinente à segunda fase, que claramente se baseia no conceito de princípio jurídico atinente à segunda fase.
O que BANDEIRA DE MELLO pretendeu ao formular a sua acepção de regime jurídico-administrativo, atribuindo ao mesmo como pilares os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público, muito mais do que indicar padrões obrigatórios de conduta para a Administração Pública ou qualquer aplicador do Direito, foi descrever o ordenamento jurídico brasileiro, identificar suas características, sobretudo no que diz respeito à disciplina das relações entre o Estado e a sociedade e, desta forma, encontrar nos dois princípios – implícitos – os fundamentos de legitimidade das prerrogativas e sujeições a que o Estado está submetido, que inegavelmente existem na ordem jurídica pátria.
Assim analisada, a supremacia do interesse público sobre o privado se adequa perfeitamente ao conceito de princípio utilizado por BANDEIRA DE MELLO, como alicerce, como disposição fundamental, como mandamento nuclear do sistema, que serve de base para a elaboração e inteligência das normas que o regem.
É dizer, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não visa a servir de comando para a adoção de comportamentos. Sua função é basilar, e está ligada às diretrizes, aos vetores fundamentais do ordenamento. Em verdade, serve de fundamento para que as normas sejam elaboradas e interpretadas. Outrossim, é no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado que se encontra o fundamento de validade das normas introdutoras das prerrogativas da Administração Pública no ordenamento jurídico, na sua tarefa de moldar o exercício dos interesses privados. Uma vez introduzidas, estas prerrogativas são limitadas pelo princípio da indisponibilidade do interesse público.
Em segundo lugar, porque a divisão das normas jurídicas em regras e princípios proposta por DWORKIN e ALEXY, e utilizada como ponto de partida para a pretendida derrocada do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, nada mais é do que uma classificação e, portanto, não pode ser valorada como certa ou errada, válida ou não válida, mas, e apenas, como útil ou inútil. A este propósito podem ser colhidas as lições de CARVALHO, verbis:
É princípio fundamental em Lógica que a faculdade de estabelecer classes é ilimitada enquanto existir uma diferença, pequena que seja, para ensejar a distinção. O número de classes possíveis é, por conseguinte, infinito; [...] Por outro lado, o expediente classificatório pode dar sentido artificial a uma palavra em decorrência da necessidade técnica de uma Ciência particular. (2009, p. 119).
Significa que a adoção de outra classificação que também apresente uma lógica aceitável do ponto de vista científico poderá ter tanto ou mais valor que a classificação dos renomados juristas. Desta feita, pode-se supremacia do interesse público sobre o privado encaixa-se perfeitamente no conceito de norma de estrutura
Desta feita, pode-se, por exemplo, encaixar a concepção do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, nos termos como cunhado por BANDEIRA DE MELLO, como uma norma de estrutura, com base na clássica divisão de NORBERTO BOBBIO – sem prejuízo da crítica sobre tal classificação, segundo a qual todas as normas são de comportamento e a expressão normas de estrutura serviria apenas para diferenciar as normas que regulam comportamentos indiretamente das que regulam diretamente, estas normas de comportamento propriamente ditas (MARTINS, 2005, p. 235).
Com efeito, e tendo por base os argumentos já expostos neste mesmo item alhures, a supremacia do interesse público sobre o privado pode perfeitamente ser classificada como norma de estrutura, ou seja, como norma que disciplina a feitura de outras normas jurídicas, pois, conforme já demonstrado, é dela que se extrai o fundamento para a edição de normas que veiculam prerrogativas da Administração Pública, extremamente necessárias para a consecução dos fins estatais.
Quer-se com isto concluir que, classificá-la como princípio jurídico, com base na segunda fase do conceito, ou como norma de estrutura, ou denominá-la como axioma ou postulado, nada tem o condão de retirar da supremacia do interesse público sobre o privado seu conteúdo e sua elevada importância para a Ciência do Direito Administrativo.
3.2 Fundamento: Interesse público ou bem comum?
A doutrina da “desconstrução” faz o seguinte raciocínio: como BANDEIRA DE MELLO e adeptos de sua teoria denominam a supremacia de interesse público sobre o privado de “princípio”, e o conceito de princípio consiste em espécie de norma jurídica caracterizada pelos diferentes pesos que pode ter e pela aplicação por meio de ponderação, pressupondo assim valores que se chocam, então é porque esta teoria considera interesse público e interesse privado como bens jurídicos diferentes e quase sempre antagônicos.
Partindo desta premissa, os adeptos da doutrina crítica trilhada concluem que o interesse público não se coaduna com o bem comum, como fim do Estado, tendo em vista que o Estado não pode ter por finalidade sempre a preponderância do interesse público. Neste sentido, a opinião de GUSTAVO BINENBOJM, para quem, sendo o interesse público um conceito indeterminado, somente aferível por juízos de ponderação entre direitos individuais e interesses coletivos, não haveria sentido em considerá-lo um princípio jurídico (2007, p.167).
Entretanto, mais uma vez a teoria da desconstrução parte de premissas equivocadas para, após, criticar e propor a exclusão do primado da supremacia do ordenamento jurídico pátrio. Sobre a impossibilidade de classificação como princípio-norma, restou assentado no item anterior que em nada obsta a adoção da terminologia “princípio”, como também não infirma o conteúdo material atribuído à supremacia, tendo em vista que o propósito visado por BANDEIRA DE MELLO consiste em apresentar a supremacia como fundamento para a instituição das prerrogativas da Administração Pública na ordem jurídica e não servir de parâmetro de conduta para o aplicador do Direito.
Cumpre então impugnar mais este argumento contrário ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, consistente na afirmação de que, tal como apontado na doutrina, a supremacia propõe a dissociação entre interesse público e bem comum. Para isto, necessário se faz recorrer às bases do Estado Moderno e do regime jurídico-administrativo, cujas noções fundamentais foram apontadas no capítulo 1 deste trabalho.
BANDEIRA DE MELLO, quando trilhou o caminho que resultou na eleição dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público como pilares do regime jurídico-administrativo, o fez com base nos fundamentos do Estado Moderno. Conforme demonstrado alhures, a teoria do autor se funda no entendimento de que o interesse público não significa nada além do que o resultado dos direitos individuais na sua dimensão pública. Observa-se de forma bastante clara a intenção de fundir a idéia de interesse público à de interesse privado.
Como visto no conceito proposto por BANDEIRA DE MELLO, o interesse público não é autônomo ao interesse privado, não pode deste ser desvinculado, pois a única razão de existir daquele – e isto implica também em reafirmar o fim último do Estado – é a garantia da ordem e da estabilidade social para que todos os indivíduos possam dispor, na maior medida possível, de seus direitos exclusivamente particulares. Esta noção guarda íntima relação com o conceito de bem comum. Segundo DALLARI:
Ao se afirmar, portanto, que a sociedade humana tem por finalidade o bem comum, isso quer dizer que ela busca a criação de condições que permitam a cada homem e a cada grupo social a consecução de seus respectivos fins particulares. Quando uma sociedade está organizada de tal modo que só promove o bem de uma parte de seus integrantes, é sinal de que ela está mal organizada e afastada dos objetivos que justificam a sua existência (2009, p. 24).
O enunciado de DALLARI alude à ideologia estatal. Conforme já esclarecido alhures, o Estado de Direito e o próprio Direito Administrativo nasceram por ocasião do fim do Absolutismo. A era do liberalismo econômico e do individualismo. O momento histórico demandava a imediata libertação do povo dos desmandos do monarca e a conseqüente afirmação dos homens como livres e iguais. À época, a finalidade do Estado representava a busca pela garantia dos direitos individuais fundamentais que, no entanto, após conquistados, ocasionaram sérios problemas.
Neste sentido, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO assevera que “com o advento das teses individualistas, a liberdade de uns acabou por gerar a opressão de outros. A situação agravou-se com a Revolução Industrial, provocando profunda desigualdade social” (2010, p. 90). Na época, a inexistência do intervencionismo estatal, tornou a liberdade e a propriedade – únicos direitos supostamente garantidos – privilégios dos detentores do poder econômico.
A evolução do Estado, desencadeada pela necessidade de sanar os problemas ocasionados pelo liberalismo econômico, acabou por gerar a concomitante evolução dos direitos fundamentais, que passaram da esfera individualista, para o âmbito nitidamente coletivo. Constatou-se, neste período, que os homens não eram absolutamente livres, pois lhes faltava para o gozo pleno desta liberdade a igualdade, até então idealizada, mas não efetivada.
Surgiu a concepção de que o Estado deveria intervir nas relações econômicas, bem como prestar materialmente os serviços públicos e uma série de outras atividades, a fim de garantir a igualdade, junto à liberdade, para que esta pudesse atingir grau satisfatório de incidência, com a abrangência de todos os indivíduos, não apenas os integrantes das classes economicamente abonadas. Esta mudança de ideologia se refletiu nos ordenamentos jurídicos, em cujas normas passou a constar, como finalidade do Estado – ou como bem comum –, a proteção não apenas dos direitos individuais, mas também dos direitos coletivos ou sociais. Desta maneira, surgiu o Estado Social.
A idéia fundamental a ser captada neste momento da exposição é: a liberdade total, ou seja, o gozo ilimitado dos direitos fundamentais individuais, liberdade e propriedade, dá ensejo à exploração do homem pelo homem, mormente dentro do sistema capitalista. Por isso, o Estado deve intervir, seja na criação, seja na aplicação de normas que evitem a tragédia social.
Por esta razão se afirmou, no início da presente exposição que os elementos do conceito de Estado mais relevantes para o trabalho residem nas noções de ordem jurídica e a finalidade de atingir o bem comum. Com efeito, as finalidades do Estado devem estar previstas no ordenamento jurídico. O bem comum consiste no que o próprio Estado, enquanto ordem jurídica, elege como prioridades, como fins a serem alcançados.
Neste sentido, é visível que o bem comum refletido na maioria dos ordenamentos jurídicos atuais consiste na busca pela garantia dos direitos coletivos – aqui colocados de forma genérica, para abranger as demais classes de direitos que transbordam a titularidade do ser humano individualmente considerado –, concomitantemente à proteção dos direitos individuais. PAULO BONAVIDES retrata de forma bastante clara a existência desta evolução dos direitos fundamentais, ao aludir o que denomina de nova universalidade daqueles. Sobre o tema, assim se manifesta o autor:
Os direitos de primeira, segunda e terceira gerações abriram caminho ao advento de uma nova concepção de universalidade dos direitos humanos fundamentais [...] A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficiência. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade (BONAVIDES, 2010, p. 573).
Sem adentrar ao tema pertinente ao Direito Constitucional, posto não ser o objeto primordial deste trabalho, pode-se anotar que esta evolução é observada na própria Constituição da República Federativa do Brasil, outorgada em 1988, na qual estão protegidos desde os direitos fundamentais individuais (artigo 5º.), próprios da primeira geração, até os direitos de quarta geração, como o direito à democracia, passando pelos direito de segunda (direito sociais previstos no artigo 6º.) e de terceira (por exemplo, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado preconizado no artigo 225).
Disto resulta a conclusão: à medida do avanço da humanidade, torna-se cada vez mais forte a noção segundo a qual somente mediante o respeito aos direitos que transbordam a pessoa humana como ser exclusivamente individual, poderá cada indivíduo ser atendido de forma plena em todas as esferas do seu bem estar. Em outros termos, é patente a necessidade de limitar os direitos individuais, como condição para a boa convivência em sociedade. Disto resultam os direitos coletivos (no sentido amplo), que também compõem o plexo de direitos de cada um.
A harmonização entre os direitos individuais e os direitos coletivos, como forma de garantir a estabilidade e a ordem sociais e, desta maneira, possibilitar a cada indivíduo o bem estar pleno, consiste justamente no fundamento e na finalidade do interesse público. Esta é a idéia que o conceito fornecido por BANDEIRA DE MELLO retrata perfeitamente.
Do que se infere estar absolutamente equivocada a premissa de onde partiu a crítica ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, ao afirmar que o conceito de interesse público não se coaduna com o de bem comum. Ao contrário, se o interesse público visa a harmonia entre os direitos individuais e os direitos coletivos, - ambos previstos no ordenamento jurídico -, como forma de garantir a paz social e o bem estar dos indivíduos, sendo estas as finalidades estatais fundamentais; e se o bem comum consiste nas finalidades do Estado erigidas pelo ordenamento jurídico; então, o interesse público visa a nada mais do que alcançar o bem comum, na maior medida possível.
3.3 Finalidade: supressão ou salvaguarda dos direitos fundamentais?
O terceiro argumento levantado contra o princípio da supremacia do interesse público sobre particular, diz respeito à indeterminabilidade do conceito de interesse público. Em virtude desta, estaria o aplicador do Direito, sobretudo o administrador público, tendente a estender a abrangência do conceito em determinadas situações para, de forma abusiva, restringir os direitos fundamentais, com fundamento na supremacia.
O argumento, contudo, não merece subsistir, pois o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, como já colocado, integra um sistema, o regime jurídico-administrativo, e somente pode ser interpretado neste contexto. Qualquer extensão do conceito de supremacia do interesse público que transborde os limites fixados pelo Direito Administrativo é abusiva.
Conforme restou anotado, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado consiste em um dos pilares do regime jurídico-administrativo. O outro pilar é o princípio da indisponibilidade do interesse público. Ambos encerram um sistema fechado, em que as prerrogativas estatais, fundadas no primeiro, equilibram-se com as sujeições, erigidas a partir do segundo. Deste modo, disciplinam satisfatoriamente as relações havidas entre Administração Pública e administrados.
A construção de BANDEIRA DE MELLO é absolutamente coerente neste sentido, pois preconiza que os poderes da Administração somente poderão ser exercitados na medida exata para a satisfação dos deveres que àquela competem, que por sua vez consistem na persecução do interesse público, na busca do bem comum. Interpretação que permita os abusos do Poder Público, em detrimento dos direitos e interesses particulares sob o manto da supremacia é ilegal, e está sujeita ao controle pelo Judiciário, com fundamento nos princípios da legalidade e da finalidade, ambos decorrentes do princípio da indisponibilidade do interesse público.
Neste contexto, cumpre esclarecer que mesmo quando se trata do exercício de competência discricionária, em que o grau de subjetivismo do administrador interfere diretamente no ato ou decisão a ser praticado e a indeterminabilidade do conceito poderia ser explorada ao máximo, a proteção aos direitos fundamentais está garantida pelo próprio ordenamento. Neste sentido, os comentários de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO:
A limitação do subjetivismo de julgadores e administradores já se vem consolidando com o próprio desenvolvimento da noção moderna de discricionariedade, pela qual, diversamente dos antigos parâmetros de liberdade desses agentes, condutores a situações de arbítrio sob a capa do interesse público, se permite investigar mais acuradamente os motivos e a finalidade das condutas administrativas (2010, p. 79).
Diante dos argumentos esposados, pode-se concluir pela perfeita possibilidade de convivência num mesmo ordenamento jurídico, inclusive o brasileiro, entre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e os direitos fundamentais. Não será o princípio da supremacia que servirá de fundamento para abusos e arbitrariedades contra os últimos, mesmo diante da indeterminabilidade do conceito de interesse público. Em todo caso, para coibir eventuais tentativas de ilícitos fundamentados impropriamente no princípio em voga, será sempre possível o controle mediante o princípio da legalidade.