1. INTRODUÇÃO.
As decisões proferidas pelo Tribunal de Contas da União – TCU – a respeito da legalidade da concessão de aposentadorias a servidores públicos frequentemente têm sido alvo de questionamentos no Judiciário, questão essa que já aportou inclusive no Supremo Tribunal Federal.
Dentre essas discussões, tem-se a irresignação dos servidores públicos quanto à necessidade de indenização do período rural para fins de cômputo como tempo de contribuição e posterior averbação no Regime Próprio de Previdência Social para fins de aposentação.
O presente estudo tem o objetivo de trazer a posição consolidada do Supremo Tribunal Federal a respeito da análise da legalidade dos atos praticados pelo Tribunal de Contas da União, bem como no que tange à necessidade ou não de se indenizar o período de atividade rural para fins de cômputo para a concessão de aposentadoria no Regime Próprio de Previdência Social, todavia, sem qualquer pretensão de esgotar a discussão.
2. O CUMPRIMENTO DO MISTER CONSTITUCIONAL PELO TCU QUANDO DA ANÁLISE DA LEGALIDADE NA CONCESSÃO DE APOSENTADORIA A SERVIDORES PÚBLICOS. INEXISTÊNCIA DE PRAZO DECADENCIAL QUANDO O TCU ANALISA A CONCESSÃO DE APOSENTADORIAS PELOS ENTES PÚBLICOS. A SÚMULA VINCULANTE Nº 03 E O ATUAL ENTENDIMENTO DO STF.
Frequentemente, os jurisdicionados têm requerido, no Judiciário, o reconhecimento da decadência do direito de a Administração reconhecer a ilegalidade do ato concessório da aposentadoria anteriormente firmada pelo ente público, sobretudo alegando a aplicabilidade do art. 54 da Lei 9.784/99.
O que ocorre, de fato, é que o servidor público aposenta-se no ente público e tem a impressão de que aquele ato está consolidado. Após anos de aposentadoria, em determinadas situações, pode ser notificado pelo TCU, que demonstra que a concessão de sua aposentadoria fora irregular, devendo suprir aquele vício ou, até mesmo, retornar às atividades.
Essa verificação, pelo TCU, da irregularidade da concessão da aposentadoria pelo ente público, mesmo que passados mais de cinco anos, não encontra impeditivo no ordenamento jurídico pátrio.
A concessão de aposentadoria aos servidores públicos é ato administrativo complexo, o qual só se aperfeiçoa depois do registro, que se dá após duas manifestações: uma do ente público ao qual se encontra vinculado o servidor; e outra do Tribunal de Contas da União. Portanto, apenas a partir dessa segunda manifestação é que a contagem do prazo decadencial inicia seu curso. (STF. 1ª Turma. MS 28.953/DF. Rel. Min. Cármen Lúcia. J. em 28/02/2012).
O TCU efetua o controle de legalidade, nos exatos termos do art. 71, inc. III, da CR/88, que preceitua competir ao Tribunal de Contas “apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório”.
Nesse sentido, convém transcrever o entendimento consolidado do c. Supremo Tribunal Federal, in verbis:
“A aposentadoria é ato administrativo sujeito ao controle do Tribunal de Contas, que detém competência constitucional para examinar a legalidade do ato e recusar o registro quando lhe faltar base legal” (RE nº 197227-1/ES, Pleno, Rel. Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 07/02/97).
Assim, a concessão da aposentadoria pela Administração dá-se de forma precária, aguardando-se o controle de legalidade pelo TCU, momento no qual haverá o aperfeiçoamento do ato administrativo.
Por outro lado, não há se falar na aplicação do prazo de cinco anos de decadência para a Administração rever os atos concessórios da aposentadoria. Quanto à inocorrência da decadência em casos deste jaez, assim decidiu o c. Supremo Tribunal Federal, ipsis litteris:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PENSÃO. TCU: JULGAMENTO DA LEGALIDADE: CONTRADITÓRIO. MANDADO DE SEGURANÇA: FATOS CONTROVERTIDOS. I. - O Tribunal de Contas, no julgamento a legalidade de concessão de aposentadoria ou pensão, exercita o controle externo que lhe atribui a Constituição Federal, art. 71, III, no qual não está jungido a um processo contraditório ou contestatório. Precedentes do STF. II. - Inaplicabilidade, no caso, da decadência do art. 54 da Lei 9.784/99. III. - Fatos controvertidos desautorizam o ajuizamento do mandado de segurança. IV. - MS indeferido. (STF. Pleno. MS 25440. Rel. Min. Carlos Velloso. J. em 15/12/05).
Recentemente, o STF reafirmou o entendimento no sentido da inaplicabilidade do art. 54, da lei nº 9784/99, quando o Tribunal de Contas da União exercer o controle externo da legalidade dos atos de concessão inicial de aposentadorias e pensões, nos termos do art. 71, inc. III, da Constituição da República (Pleno. MS nº 25.612, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 1º/06/2011).
Dessarte, não há se falar na ocorrência da decadência do direito de o Tribunal de Contas da União verificar a legalidade da concessão de aposentadoria aos servidores públicos.
O Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante nº 03 que preconiza que “nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”.
Em razão de questionamentos posteriores que aportaram no Supremo Tribunal Federal, esse c. Tribunal efetuou verdadeiro temperamento quanto a essa súmula, determinando que, acaso a análise do ato concessório da aposentadoria pelo TCU dê-se em lapso temporal superior a cinco anos, a parte interessada deverá ser intimada para que possa exercer o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa (vide, dentre outros, Pleno, MS 25116, Rel. Min. Ayres Britto; Pleno, MS 25403, Rel. Min. Ayres Britto; Pleno, MS 26053. Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Nesse sentido, embora o TCU possa exercer seu mister constitucional mesmo após decorridos mais de cinco anos da concessão da aposentadoria pelo ente público ao qual se encontra vinculado o servidor, não se pode descurar da observância do princípio do contraditório e da ampla defesa, a fim de que o administrado possa participar e, de certa forma, influir na decisão a ser dada pela Corte de Contas.
3. A IMPOSSIBILIDADE DO CÔMPUTO DO PERÍODO DE EXERCÍCIO DE ATIVIDADE RURAL SEM O RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS PARA FINS DE AVERBAÇÃO NO REGIME PRÓPRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL.
Dispõe o art. 201, §9º, da CR/88, que “para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei”.
Disciplinando tal questão, o art. 94, da lei nº 8.213/91, preceitua que “para efeito dos benefícios previstos no Regime Geral de Previdência Social ou no serviço público é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na atividade privada, rural e urbana, e do tempo de contribuição ou de serviço na administração pública, hipótese em que os diferentes sistemas de previdência social se compensarão financeiramente”.
Nesse sentido, o art. 96, inc. IV, da lei nº 8.213/91, preconiza que “o tempo de serviço anterior ou posterior à obrigatoriedade de filiação à Previdência Social só será contado mediante indenização da contribuição correspondente ao período respectivo, com acréscimo de juros moratórios de um por cento ao mês e multa de dez por cento”.
Assim, o aproveitamento de tempo de serviço rural para a concessão de aposentadoria de servidor público que possua regime próprio de previdência dependerá da comprovação do recolhimento das contribuições previdenciárias.
Desse modo, para fins de expedição de Certidão de Tempo de Serviço para a concessão de aposentadoria em regime próprio, é exigível a indenização das contribuições previdenciárias relativas ao tempo de serviço rural, porquanto a Constituição da República, em seu art. 201, § 9º, exige a compensação financeira entre os regimes, para fins de contagem recíproca.
A isenção preconizada no artigo 55, §2º, da lei nº 8.213/91, relativa ao recolhimento de contribuições previdenciárias anteriores ao ano de 1991, para fins de contagem de tempo rural, restringe-se ao âmbito do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, não se admitindo que o tempo de serviço rural anterior a 1991, sem recolhimento de contribuições, seja acrescido, para fins de fruição no Regime Próprio da Previdência Social, ou seja, contagem recíproca entre Regimes Previdenciários distintos, até mesmo porque o artigo 96, da lei nº 8.213/91, regra de caráter especial, deve prevalecer sobre o artigo 55, §2º, da Lei de Benefícios, regra geral[1].
Assim, especificamente ao tratar da averbação de tempo de serviço para fins de contagem recíproca, a própria lei nº 8.213/91, nos arts. 94 e 96, inc. IV, exige o recolhimento da contribuição devida.
Dessarte, o período de trabalho rural prestado por servidor público anteriormente ao ingresso no Regime Próprio só pode ser contado como tempo de serviço se efetuados os devidos recolhimentos previdenciários.
Ao analisar a questão, o e. Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou:
"PREVIDENCIÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. APOSENTADORIA ESTATUTÁRIA. TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO COMO TRABALHADOR RURAL. CONTAGEM RECÍPROCA. CF, ART. 202, § 2º. LEI 8.213/91. ART. 55, §2º. ALTERADO PELA MP 1.523/96. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. RECURSO ORDINÁRIO.
1. Para fins de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na Administração Pública e na atividade privada, rural ou urbana. Regra contida na CF art. 202, § 2º.
2. O STF, apreciando a ADIN 1.664/UF, deferiu medida cautelar para suspender a eficácia da expressão "exclusivamente para fins de concessão do benefício previsto no art. 143 desta Lei e dos benefícios de valor mínimo", contida na Lei 8.213/91, art. 55, § 2º, com a redação dada pela MP 1.523/96 mantendo a parte final do dispositivo que veda a utilização do tempo de serviço rural anterior à data mencionada para efeito de contagem recíproca sem a comprovação das respectivas contribuições.
3. Não comprovadas as contribuições previdenciárias devidas no período a que se pretende averbar como de efetivo serviço rural, inexiste violação a direito líquido e certo a ser amparado pelo Mandado de Segurança.
4. Recurso não provido." (STJ. RMS 10.953/SC. Rel. Min. Edson Vidigal).
Da mesma forma decidiu, por unanimidade, o c. Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.664-0, in verbis:
"PREVIDÊNCIA SOCIAL. Relevância jurídica da impugnação, perante os arts. 194, parágrafo único, I, 201 "caput" e § 1º, e 201, I, todos da Constituição, da proibição de acumular a aposentadoria por idade, do regime geral da previdência, com a de qualquer outro regime (redação dada, ao art. 48 da Lei nº 8.213/91, pela Medida Provisória nº 1.523-13/1997).
Trabalhador rural. Plausibilidade da argüição de inconstitucionalidade da exigência de contribuições anteriores ao período em que passou ela a ser exigível, justificando-se ao primeiro exame essa restrição apenas em relação à contagem recíproca de tempo de serviço público (artigo 194, parágrafo único, I e II, e 202, § 2º, da Constituição e redação dada aos artigos 55, § 2º, 96, IV e 107 da Lei 8.213/91, pela Medida Provisória nº 1523/13/97)..
Medida cautelar parcialmente deferida." (STF. ADIN 1.664-0. Rel. Min. Octavio Gallotti. DJU de 19.12.97).
Recentemente, o próprio Supremo Tribunal Federal reafirmou o seu entendimento, como se extrai da ementa abaixo transcrita:
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ILEGALIDADE DA APOSENTAÇÃO. INCORPORAÇÃO DE PARCELA DENOMINADA “OPÇÃO”. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 193 DA LEI N. 8.112/1990 ATÉ 19.1.1995. IMPOSSIBILIDADE. CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO EM ATIVIDADE RURAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DAS RESPECTIVAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE CONTRARIEDADE A COISA JULGADA. SEGURANÇA DENEGADA. (STF. 1ª Turma. MS 30558/DF. Rel. Min. Carmen Lúcia. Publicado no DJ de 30/04/12).
Tal entendimento encontra-se consolidado também na Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, que editou a súmula nº 10, nos seguintes termos:
“Tempo de Serviço Rural. Contagem Recíproca. O tempo de serviço rural anterior à vigência da Lei nº. 8.213/91 pode ser utilizado para fins de contagem recíproca, assim entendida aquela que soma tempo de atividade privada, rural ou urbana, ao de serviço público estatutário, desde que sejam recolhidas as respectivas contribuições previdenciárias”.
Assim, o entendimento jurisprudencial[2] encontra-se consolidado no sentido da necessidade da indenização quando o serviço foi prestado anteriormente à filiação obrigatória à previdência social e se destina à contagem recíproca.
De se consignar que a averbação do tempo de serviço sem o recolhimento da contribuição respectiva, além de violar o art. 96, inc. IV, da lei nº 8.213/91, traz gravíssima lesão aos cofres previdenciários.
Com efeito, por determinação constitucional (CF, art. 201, § 9º) e legal (art. 94, lei nº 8.213/91), está o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS – obrigado a indenizar o ente público que conceder aposentadoria à parte autora, relativamente ao período de trabalho prestado sob o Regime Geral da Previdência Social.
Nesse sentido, é necessário que o servidor público indenize o INSS o período de trabalho rural para, então, poder computar tal período como tempo de contribuição, nos termos da legislação e jurisprudência pátrias.
Muitas vezes, o tempo de segurado especial, sem qualquer contribuição previdenciária, consta na certidão de tempo de contribuição emitida pelo Regime Geral de Previdência Social, sendo posteriormente averbado junto ao Regime Próprio. Todavia, embora esteja constando na CTC, não pode ser computado no regime próprio quando inexistir contribuição previdenciária naquele período, de acordo com o entendimento jurisprudencial consolidado.
Quando essa situação for verificada no âmbito do TCU, é dizer, quando essa Corte de Contas constatar que a concessão da aposentadoria foi irregular em razão da inexistência de contribuição previdenciária quanto ao período de atividade rural, esse Tribunal deve intimar o administrado para corrigir a irregularidade, de forma a indenizar o período computado na contagem do tempo de contribuição na condição de segurado especial[3],[4] e, caso tal pagamento não seja feito, aí sim deve o Tribunal de Contas determinar o retorno do servidor às atividades no órgão público.
4. CONCLUSÃO
Feitas essas ponderações, conclui-se que, segundo o consolidado entendimento jurisprudencial, não só é permitido como é dever constitucional do Tribunal de Contas da União verificar a legalidade da concessão de aposentadorias a servidores públicos, sendo que a aposentadoria, por tratar-se de ato administrativo complexo, só se aperfeiçoa após a análise da Corte de Contas, não havendo que se cogitar do transcurso do prazo decadencial anteriormente à análise desse Tribunal.
Outra discussão bastante em voga quando da análise da regularidade da concessão de aposentadorias pelo TCU diz respeito à necessidade de efetuar-se o recolhimento das contribuições previdenciárias do tempo de serviço averbado na condição de segurado especial, sendo norma cogente a necessidade de indenização de tal período, o que restou consagrado também pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, conforme demonstrado supra.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social. Ltr, 2010.
- CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Curso de Direito da Seguridade Social. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002.
- PERSIANI, Mattia. Direito da Previdência Social. Quartier Latin, 2009.
- ROCHA, Daniel Machado da; Baltazar Jr., José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. Ed. Livraria do Advogado. 2011.
Notas
[1] TRF-3. 3ª Seção. AC 527390. Autos 199903990852598. Rel. Des. Fed. Marianina Galante. Publicado no DJ de 26/06/06.
[2] Nesse sentido, cumpre citar os seguintes precedentes: ADIn 1664/DF, ROMS 11.583/SC, RE 220.821/RS, RESP 409.563/RS, RESP 202.580/RS, RESP 497.143/RS, RESP 416.995/RS, RMS 11.135/SC, PU n. 2002.60.84.000047-5/MS - Turma de Uniformização (Publicado no DJU de 17/10/2003).
[3] Artigo 11, inciso VII, e §1º, da lei nº 8213/91.
[4] O TCU admite a comprovação do recolhimento das contribuições previdenciárias, ainda que a posteriori, consoante o Acórdão nº 740/2006-Plenário, modificado pelo Acórdão nº 1.893/2006-Plenário.