Resumo: Trata-se de ensaio cujo objetivo é discutir o “estado da arte” do direito das famílias no que concerne ao debate a filiação, sobretudo após quatro anos da decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal sobre a utilização de células embrionárias em pesquisas científicas. Nessa senda, discute-se, outrossim, a manipulação das células criopreservadas e as mudanças no direito civil e o uso da tecnologia e a certeza sobre a origem genética: o material humano criopreservado e a “filiação tecnológica”.
Palavras-chave: Células Criopreservadas. Direito de Família. Filiação.
1.INTRODUÇÃO
Já se vão quatro anos desde que a Corte Maior se debruçou sobre a problemática da utilização das células embrionárias. A postura adotada pelo STF acerca da questão que envolve os embriões humanos gerou discussões em todo o meio jurídico nacional. Partidários de ambas as posições defenderam teorias que se opõem intrinsecamente. Retornamos, naquele então, a um debate que, na história recente da nossa legislação e, guardadas as devidas proporções, somente havia ocorrido na década de 70 com a promulgação da Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77). Assim como naquela época, elevaram-se vozes em defesa da vida com base em dogmas religiosos, ressaltando, ainda mais, a já valorizada problemática da influência religiosa em nosso país. Debate, aliás, que nos acompanha desde a colonização, como parte integrante de nossa formação e identidade social.
O argumento fortíssimo no sentindo de que os embriões excedentários constituem vida humana a ser desperdiçada, ou, ainda, manipulada por investigações de ordem genética, está envolvido na atmosfera de duplicidades e radicalismos que tanto incomodam o imaginário popular: ou bem somos cristãos, e nos posicionamos fervorosamente contra a utilização de embriões para empreitadas científicas, ou bem somos ateus e não nos importaremos com o destino oferecido aos óvulos fertilizados e congelados em laboratórios espalhados pelo país.
Afora todo este entrevero cultural, importa acrescentar que o desígnio implementado aos embriões trará significativas interferências em outros ramos do Direito, especialmente do Direito de Família.
Em princípio, basta lembrar que os Direitos Personalíssimos encampados nos Arts. 11 e ss do CC/02 aplicam-se, também, aos nascituros. Embora não haja consenso, nem dos doutrinadores jurídicos, nem da classe médica sobre em que momento o desenvolvimento vital do embrião atinge o nível de nascituro, é imprescindível recordar que a lei trata do momento “desde a concepção”, como marco inicial de proteção jurídica e incidência dos citados Direitos Personalíssimos. Assim, além do elementar direito à vida, temos o direito à dignidade humana, o direito à integridade física, enfim, o direito à expectativa de ter direitos.
A pesquisa com células embrionárias galgou espaços normalmente intangíveis para temáticas do meio científico. Chegou-se à boca do povo, e a discussão tomou dimensão nacional. Os meios de comunicação fizeram coro ao debate travado no Supremo Tribunal Federal, e a questão a respeito da utilização das células-tronco virou matéria principal em jornais escritos e televisionados, além da ampla difusão via internet[1].
Além da grande e indiscutível relevância para a saúde humana, a pesquisa com células embrionárias traz no seu bojo fortíssimo conteúdo de caráter ético-jurídico e faz ressurgir um já antigo debate bastante pertinente tanto ao Direito Civil quanto aos Direitos Humanos, que é aquele relativo ao direito de Filiação, além do reconhecimento de paternidade, do registro civil e do direito sucessório.
O generalizado conclave que se seguiu em função da Lei de Biossegurança retomou histórica dúvida acadêmica acerca da formação familiar, de sua estrutura e de seu futuro, tomando por base a possibilidade de valer de inovações tecnológicas capazes de alterar desígnios até então não abrangidos pelas determinações terrenas, mas envoltos em legítima áurea divina.
Desse modo, propõe-se neste ensaio uma análise dessas questões ao longo dos últimos quatro anos que se sucederam à decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o uso de células embrionárias em pesquisas no Brasil, perpassando pela literatura a fim de estabelecer o “estado da arte” da questão no novel direito das famílias.
2. A MANIPULAÇÃO DAS CÉLULAS CRIOPRESERVADAS E AS MUDANÇAS NO DIREITO CIVIL
Células-tronco, segundo caracterização da literatura médico-científica, vêm a ser células neutras, não diferenciadas, que “apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido do organismo”[2]. As células-tronco existem em tecidos maduros de adultos e crianças, bem como no cordão umbilical e na medula óssea. O fato de serem células especializadas, concede-lhes fundamental poder transformativo, de modo que são capazes, segundo pesquisas científicas, de dar origem a qualquer tecido do organismo. Tal potencial reprodutivo só ocorre com as células-tronco embrionárias, por este motivo há tamanho interesse no material genético retirado de embriões humanos.
Importa esclarecer, também, que tais células-tronco podem ser retiradas de embriões especialmente criados para tal fim, mediante procedimento que se passou a chamar de “clonagem terapêutica”, ou seja, a que é realizada com a finalidade única de produção de células-tronco embrionárias.
Sabe-se, contudo, que a clonagem terapêutica para fins reprodutivos é expressamente proibida em nosso país, consoante determinação do art. 6º, IV da Lei de Biossegurança, cuja prática constitui crime apenado entre 2 e 5 anos de reclusão e multa.
Segundo determinação do art. 5º da citada Lei, em texto sobre o qual recaiu a dúvida acerca da sua constitucionalidade, é permitida a obtenção de células-tronco humanas embrionárias através da obtenção via fertilização in vitro e não utilizadas neste tipo de procedimento (ou seja, embriões fertilizados e descartados).
O elemento preponderante, portanto, de todo este debate está no fato de que a manipulação científica de células-tronco importará na destruição do embrião.[3] Se há vida na fase embrionária, ou não, é um tema delicado e circunstancialmente impreciso na nossa legislação.
Consoante lição de Paulo Lobo, tomando por base sólida construção doutrinária da matéria, a eficácia é o último plano de realização do ato jurídico, após os planos de existência (ingresso no mundo do direito como fato jurídico, com a concretização de todos os elementos do suporte fático) e da validade (o ato apto a realizar efeitos, imune a nulidades ou anulabilidades). Assim como todo ato jurídico, a relação de filiação também se denota no mundo do direito através de suas representações fáticas e de validade, de modo que é instituto capaz de irradiar efeitos próprios, com consequências legais.
O plano de eficácia das relações de filiação sofreu profunda transformação nas últimas décadas, mormente em face do apuro tecnológico que se aplica às hipóteses de inseminação artificial, seja ela homóloga ou heteróloga.
À família sempre se atribuiu, ao longo do tempo, funções distintas que se apresentavam de acordo com as necessidades históricas. A evolução dos parâmetros familiares, portanto, recebeu direta influência de conceitos religiosos, econômicos, políticos e procriacionais.
A mudança legislativa tem como base a própria Carta Federal de 1988, que elencou o princípio da paternidade responsável e o princípio da proteção total a crianças e adolescentes, de maneira que trazer filho ao mundo, seja ele por meios naturais ou por atuação médico-tecnológica em procedimentos de origem genética, constitui ato de extrema responsabilidade para os “pais”.
O paradigma atual, alicerçado na dignidade da pessoa humana de qualquer integrante da família (seja qual for sua origem e formação), na solidariedade, na convivência familiar, na afetividade, na liberdade e, sobretudo, na igualdade, preconiza a total ausência de distinção entre filiação de origem natural ou adotiva, com ou sem semelhança da identidade genética.
Esta mudança de parâmetro derrogou o fadado conceito que se perdurou por tanto tempo na legislação nacional, sob a base de que a filiação legítima era apenas aquela oriunda, por meios naturais, de casamento válido. A permissão legal para, primeiro, o reconhecimento de filhos que se chamaram duradouramente de “espúrios e adulterinos” e, até, em segundo momento, de filhos havidos de casamentos nulos ou anulados, revelou à sociedade a chance de transformação dos conceitos mais elementares relativos à filiação. Esta ascensão de novas possibilidades jurídicas culminou, em momento posterior, no que se passou a chamar atualmente de direitos oriundos da afetividade.
Esta mesma afetividade, palavra-chave do moderno Direito de Família e do próprio Direito Civil como um todo, carrega consigo um arcabouço fortíssimo de influência da égide dos Direitos Humanos[4]. Essa influência se deve, indubitavelmente, ao que se tem hoje alicerçado no valor intrínseco do princípio da dignidade. A dignidade impõe-se como valor incondicional, incomensurável, insubstituível, que não admite equivalente. Trata-se de algo que possui uma dimensão qualitativa, jamais quantitativa. É por essa razão que uma pessoa não pode gozar de mais dignidade que outra, e é também por esta mesma razão que características meramente formais não podem jamais se sobrepor em face de característica individuais, íntimas e personalíssimas.
A colocação da família dentro do chamado Estado Social explica, em parte, esta transformação. A alteração e perfil entre a constituição matrimonializada do Estado liberal e a hodierna composição do Estado Social é entrecortada pela crença significativa da possibilidade de se encontrar um perfil humano do sujeito (e, em consequência, também um perfil familiar) que ceda espaço ao desenvolvimento das garantias e das liberdades históricas conquistadas pela civilização ocidental, ao longo das revoluções burguesas do século XVII e XVIII. Esta recolocação do sujeito dentro do espaço social agregou características das modificações liberais de cunho econômico e social[5].
Enquanto o Estado Liberal preconiza a não intervenção nas relações privadas e do poder econômico, terminou por gerar desigualdades latentes e fortíssimas, algumas ainda profundamente arraigadas na nossa civilização. O Estado Social, por outro lado, buscou o sentido inverso, posto que o controle sobre as relações econômicas e a direta intervenção nas relações privadas, conseguiu minorar as disparidades sociais e a discriminação fundada em diferenças de sexo, de raça, de classe social, de opção sexual, de consciência política, dentre outras. No plano estritamente familiar, a possibilidade de alteração dos conceitos de filiação agiu no mesmo sentido. O surgimento de filhos geneticamente produzidos, artificialmente inseminados ou mesmo de embriões excedentários, não assusta o interprete moderno, porquanto a influência dos conceitos do Estado Social autorizam a aceitação desses sujeitos como sendo partes do Estado Democrático de Direito que nos rege.
A família constitucionalizada, portanto, é fruto máximo desse movimento, por apresentar contornos originados, diretamente, dos próprios Direitos humanos. Nunca é demais recordar que o Código Civil de 1916 proibia o reconhecimento de filhos não legítimos e que os mesmos passavam a funcionar como “nada jurídico”, vivendo numa espécie de “limbo existencial”, haja vista que, embora pessoas humanas, não podiam fazer parte do mundo jurídico. Atualmente, ao contrário, temos a possibilidade de reconhecimento de paternidade para filhos oriundos de inseminação artificial heteróloga (por exemplo, a fecundação do gameta da mãe com o gameta de um terceiro que não seja o seu marido ou companheiro), desde que esse marido ou companheiro tenha autorizado expressamente essa manipulação genética.
É nessa configuração jurídica que se enquadra o direito dos embriões. Eles são parte do interesse do Direito de Família e, consequentemente, de todo o Direito Privado, porquanto a aceitação de formação de famílias plurais passou a ser a tônica do nosso atual Estado de Direito, herança direta do modelo do Estado Social.
O modelo igualitário de família constitucionalizada, portanto, se contrapõe ao modelo autoritário do “Código Beviláqua” e abre espaço para manifestações singularmente democráticas e inclusivas, como é o caso, dos embriões geneticamente manipulados e criopreservados. O respeito à dignidade das pessoas que integram, ou que possam vir a integrar a composição familiar[6], soma-se à busca pelo consenso, pela solidariedade e pela premissa absoluta de tratamento igualitário previsto em toda a Carta Federal de 1988, especialmente nos artigos 226 a 230[7].
A Constituição Federal brasileira expandiu, sobremaneira, a proteção do Estado à família, construindo uma das mais profundas transformações de que se tem notícia acerca da legislação aplicável ao tema.
Segundo Paulo Lobo, alguns aspectos não podem ser desconsiderados nessa transformação, quais sejam: a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições; a família, entendida esta como entidade jurídica, assume claramente a posição de sujeito de direitos; os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes; a natureza sócio-afetiva da filiação torna-se gênero, abrangente das espécies biológica e não biológica e a família configura-se como espaço de realização pessoal e da dignidade humana daqueles que lhe constituem[8].
Do ponto de vista da filiação, especialmente em face da filiação embrionárias, importa destacar que a transformação constitucional, por meio do fenômeno que se passou a chamar na doutrina especializada de “repersonalização”[9], gerou o deslocamento do núcleo jurídico da família, do consentimento matrimonializado, para a proteção pública. Ou seja, a premissa passou a ser a proteção das composições existentes ou de suas possibilidades, ao invés da mera formalização da constituição familiar. Os embriões excedentários são, necessariamente, incluídos da categoria das “possibilidades”. A filiação passou a ser destacada e potencializada como categoria jurídica, de modo bem mais abrangente que própria discussão do matrimônio como instituição, assim como deu-se maior atenção ao conflito paterno-filial que ao conjugal. Enfim, a livre manifestação e desenvolvimento da afetividade gerou premissas absolutamente inovadoras em face das possibilidades jurídicas advindas das novas hipóteses de constituição familiar e, por consequência, da estruturação do direito de filiação. Os embriões excedentários enquadram-se na possibilidade de realização de interesses afetivos, tão caros ao moderno estudioso do direito privado, e consolidam a tendência no sentido de que a família passa a ser cada vez mais um espaço/instrumento para a realização pessoas dos seus membros.
Direitos novos surgiram na evolução dos conceitos de família e de filiação, assim como outros ainda estão por surgir, não apenas aqueles entendidos como exercidos pela família em conjunto, mas por seus membros atuais ou futuros, em situações hoje concretas ou de circunstancias eventuais, de modo direito ou indiretamente relacionado aos atuais conceitos de filiação.
3. O USO DA TECNOLOGIA E A CERTEZA SOBRE A ORIGEM GENÉTICA: O MATERIAL HUMANO CRIOPRESERVADO E A “FILIAÇÃO TECNOLÓGICA”.
Fazer coincidir a filiação com a origem genética é transformar aquela, de fato cultural e social, em determinismo biológico, o que não contempla suas dimensões existenciais. Ao tempo da família eminentemente patriarcal, era possível afirmar, com legitimidade, que a origem biológica era realmente indispensável, posto que esta se fundava em formação substancialmente matrimonializada. Daí a necessidade, acima apontada, de se dissociar os filhos entre legítimos e ilegítimos, a fim de que fossem cumpridas suas funções tradicionais, inclusive segundo determinações de caráter religioso.
Atualmente, a construção familiar foi moldada na vinculação de mote afetivo, na qual o ser humana constrói entre a impulsos liberaritários e impulsos de desejo. No decurso do estado Liberal, a família perdeu suas funções tradicionais, passando a reaver sua configuração, apenas, na comunhão de afeto, característica, repita-se, da pós-modernidade.
Inicialmente estudada em face de critérios educacionais, psicológicos, pedagógicos ou sociológicos, foi no ambiente jurisdicional que a afetividade demonstrou sua força e sua influência. Atualmente seria impossível tratar de conceitos como uniões homoafetivas, paternidade sócio-afetiva, guarda compartilhada, adoção, dentre muitos outros, sem a premente discussão sobre a influência do valor da afetividade no âmago do ambiente jurídico. Do mesmo modo, opera-se com a discussão acerca dos embriões excedentários, com a inseminação artificial e com a manipulação genética: ora, desfeita a construção histórica que apregoava a égide do formalismo, cede-se espaço para construções de modelos de família que sejam partícipes do protótipo da afetividade, desde que essa seja a única (ou pelo menos a primordial) razão de ser e existir dessas entidades familiares.
Ao longo do tempo, com a evolução de conceitos, chegou-se à conclusão de que a chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido construída na convivência duradoura com os pais sócio-afetivos ou quando derivar de adoção.[10]
O desenvolvimento tecnológico autoriza mais de 99% da certeza da origem genética. Como se tem alardeado, com razão, o exame de DNA mudou significativamente o próprio Direito de Família, porque, por mais estranho que aparente ser, a confiança na certeza biológica e na origem genética pouco ou quase nada contribuem para a boa relação entre pais e filhos. A verdade genética não cria laços afetivos, não impõe carinho, nem respeito, nem amor[11].
É bem verdade que, face o avanço atual das relações de família, mormente diante das plurais manifestações de formação familiar/de filiação, e tomando por base o atual estágio do desenvolvimento científico, a tendência é que se encontre o ponto de equilíbrio entre o conhecimento de origem genética e o próprio direito da personalidade. Destacam-se, nesse sentido, as razões de ordem sanguínea, os motivos de caráter de parentesco, os impedimentos matrimoniais, as proibições de constituição de família por adoção e, com destaque, as relações de afetividade. Tal harmonização, se ainda não é possível, está bem próxima de sua realização.[12]
Esta busca pela verdade genética termina por desenvolver um outro elemento de importância para a caracterização da filiação, que é posse do estado de filho.[13] Baseado no princípio romano do pater is est (a paternidade é certa quando se tratar de filiação oriunda de união legítima), o Direito Privado tradicionalmente firmou-se em relações de filiação baseada em hipóteses de convivência formalizada. Esta realidade foi profundamente alterada pela égide do exame de DNA, que passou a trazer a certeza biológica para as relações de paternidade[14].
Essa mudança, por sua vez, abriu caminho para que as técnicas de inseminação artificial pudessem fazer uso de material genético criopreservado, gerando, assim, novas modalidades de direito de filiação. O princípio do pater is est recebeu importantes ponderações acadêmicas.[15] Inclusive, há a possibilidade de a certeza genética desfazer laços sanguíneos e, ato contínuo, a de constituir atos afetivos, para as situações em que, já criado o filho, descobre-se que não se trata de fruto de relação sanguínea verdadeira. Ou, ainda,para o caso de inseminação artificial heteróloga com consentimento do marido/companheiro. Em ambas as circunstâncias, existirá liame de filiação sócio-afetivo. A utilização, em larga escala de células congeladas, portanto, parece ser capaz de operar significativa transformação em todo o Direito Civil.
A plena possibilidade de atestar a verdade biológica, em percentuais elevados de confirmação da paternidade pela via do exame de DNA, traduz consigo mesma um paradoxo: a verdade biológica pode não expressar a verdadeira paternidade. Cogita-se, então, que, mesmo sem desprezar o conteúdo biológico, passa-se a uma filiação totalmente baseada na teoria da afetividade.[16] O elemento sanguíneo, que por longo espaço de tempo serviu de alicerce para a constituição da relação de filiação,[17] cede espaço para aquilo que poderíamos chamar de “filiação tecnológica”.
Do mesmo modo, faz-se importante lembrar que essa alteração de paradigmas fez surgir em nosso direito positivo duas ações processuais atualmente em larga difusão: a ação de investigação de paternidade e a ação negatória de paternidade. A investigatória, já conhecida pelo público especializado, redesenhou-se após a utilização da certeza biológica, gerando, até, situações vexatórias para o Poder Judiciário diante de ações transitadas em julgado cujo resultado fora invertido pelo resultado do exame de DNA[18].
Já a ação negatória de paternidade, cujos efeitos mais se aproximam da problemática das células embrionárias humanas, tem trazido fortes conflitos ao ambiente jurídico[19]. Com a possibilidade de utilização de material genético humano preservado mediante consentimento do casal, é possível a criação de um vínculo jurídico capaz de unir a criança, fruto dessa intervenção tecnológica, e os seus pais. Este vínculo, segundo entendemos, não pode ser outro senão o afetivo.
O problema desse belo raciocínio jurídico, intentado com louvor pela doutrina nacional, é exatamente o fato de poder haver a inocorrência de vício de consentimento, de um ou de ambos os cônjuges/companheiros no momento do reconhecimento desse filho. Em havendo erro, portanto, significa dizer que o reconhecimento, embora voluntário, seja viciado, sendo passível, assim, de nulidade pelas regras regais do Código Civil em vigor. Poderíamos, então, questionar, por exemplo, qual seria a natureza jurídica de uma relação de filiação gerada pela inseminação artificial de material embrionário humano no ventre materno sem a devida outorga de seu esposo ou companheiro? Seria sanguínea, posto que a criança será gerada e ganhará a luz pelos meios normais, na barriga da mãe? Seria sócio-afetiva, posto que este pai estaria registrando um filho que fora constituído sem seu material genético? E em havendo negatória de paternidade, com fulcro no art. 1604 do CC/02[20], em que consistirá o período em que suposto “pai” e suposto “filhos” reconheceram-se mutuamente com tais?
Segundo a doutrina da ilustre Profa. Maria Helena Diniz, temos que: “Num sentido geral, erro é uma noção inexata, não verdadeira sobre alguma coisa, objeto ou pessoa, que influencia a formação da vontade do declarante, impede que se forme em consonância com sua verdadeira motivação; tendo sobre um fato ou sobre um preceito noção incompleta, o agente emite sua vontade de modo diverso da que se dele tivesse conhecimento exato ou completo.”[21] Será, portanto, este erro tal que enseje a desconstrução de um vínculo tão forte quanto o de filiação? Ou, utilizando argumento típico da Igreja Católica, poder-se-ia questionar que culpa terá este filho que não pediu para ser gerado, para que seja penalizado com tal demanda de desfazimento de vinculo de paternidade?
Tornou-se assentado em nossa legislação o entendimento no sentido de que o reconhecimento voluntário é irrevogável, inclusive para situações de utilização de material genético criopreservado para fins de gravidez, abrangidos no reconhecimento o termo e a condição nele porventura opostos. Entretanto, não se confunde tal reconhecimento voluntário por essência com a conduta cuja vontade é viciada ou defeituosa como, verbi gratia, sucede com o homem que é levado a crer que o filho seria realmente seu e o registra como tal, caso em que se torna possível a ação negatória de paternidade a qual se baseia logicamente no defeito de manifestação da vontade do requerente que registrou a criança sob sua paternidade[22].
Ainda em relação à aplicação de células embrionárias e de material genético humano, importa mencionar as transformações no instituto jurídico do parentesco.