INTRODUÇÃO
Historicamente, o Estado Legislativo de Direito assentava-se sobre o princípio da legalidade e sobre o monopólio estatal na produção normativa, em vista da preponderância do parlamento. Esse Estado consolidou-se, na Europa, ao longo do século XIX, pela universalização dos paradigmas de separação de poderes e garantia dos direitos individuais, engendrada pela revolução francesa[1]. Nele, prevaleciam os valores da estabilidade e unidade do direito, sob o manto legalista[2].
Com o fim da II Guerra Mundial, fortificou-se o desenvolvimento do Estado Constitucional de Direito, baseado numa Constituição rígida e no princípio da supremacia da norma constitucional. Nesse contexto, a ascendência do neoconstitucionalismo caracterizou-se pelo reconhecimento da força normativa da Constituição, não mais considerada apenas um documento político. Igualmente, a redemocratização dos Estados ditatoriais e o marco filosófico do pós-positivismo reintroduziram ideias de legitimidade e justiça ao ordenamento jurídico sem adentrar nas intempéries metafísicas do jusnaturalismo.
Em relação a esse Estado Constitucional de Direito, ocorreu um alargamento do bloco de constitucionalidade[3], visto que as Constituições implantaram cláusulas de abertura ao sistema internacional. Desse modo, essas Constituições se harmonizam com o princípio pro homine ou princípio pro personaes que orienta a aplicação da norma mais benéfica ao ser humano em caso de conflito aparente. Estabelece-se, assim, um diálogo de fontes através de normas de reenvio, tais como as cláusulas de abertura.
No âmbito interno, o princípio da prevalência dos direitos humanos, nos termos do art. 4º[4], inc. II, CRFB, e o princípio da dignidade da pessoa humana, art. 1º, inc. III[5], CRFB, embasam a primazia da norma mais favorável em matéria de direitos humanos. No âmbito externo, o princípio pro persona está previsto no artigo 29 da CADH. O princípio internacional pro homine é um princípio geral de direito que concilia produções normativas antitéticas para dar preferência àquela que, no caso concreto, privilegia mais a pessoa.
Exemplificativamente, se numa mesma situação, forem aplicáveis a Convenção Americana de Direitos Humanos e outro tratado internacional, deverá prevalecer a norma mais favorável à pessoa. Tendo isso em vista, percebe-se que o princípio pro homine não é apenas uma diretriz de preferência de interpretações, mas também uma diretriz de preferência de normas jurídicas. Isso porque o princípio pro homine tem o condão de fazer prevalecer, nos casos de discrepância entre uma norma que institua maiores garantias e amplos direitos cotejada com outra menos avançada na temática, a norma mais benéfica ao ser humano, independente das regras hierárquicas assentadas em cada país.
Diante do exposto, propõe-se, com a presente monografia, um Estado Constitucional de Direito, em caráter universalista, que utilize os tratados de direitos humanos ratificados como novo parâmetro de controle de compatibilidade vertical. Assim, esse Estado reconhecerá o caráter axiológico dos direitos humanos, bem como sua complementariedade, indivisibilidade e universalidade.
Mais do que isso, o controle de convencionalidade é uma obrigação imposta pelas novas decisões do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a matéria analisadas ao longo do presente trabalho, conquanto calcados em fundamentos diversos. Trata-se de um controle de compatibilidade material, em que se analisa o respeito da legislação doméstica ao sistema do bloco de constitucionalidade, integrado pelos tratados de direitos humanos devidamente ratificados.
No âmbito externo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos surge no horizonte como órgão internacional competente para realizar o controle de convencionalidade sobre atos judiciais, legislativos e executivos, caso esses impliquem violação aos direitos humanos. A Corte já realiza o controle de convencionalidade há algum tempo, mas, a partir de 2006, elegeu tal nomenclatura.
De conseguinte, a Corte Interamericana de Direitos Humanos aplica o “direito comum latino-americano”, formado pelas diversas convenções americanas de direitos humanos, sobressaindo-se, dentre elas, a Convenção Americana de Direitos Humanos. Esses tratados de direitos humanos consagram matéria adstrita ao campo do direito imperativo, tendo, por consequência, vocação universal. Ademais, os direitos humanos são imediatamente exigíveis, justiciáveis, inter-relacionados, indivisíveis e geram obrigações com oponibilidade contra todos.
Desse modo, ressalta-se que o tema do controle de convencionalidade no Brasil, além de pouco explorado, é deveras recente. Assim, a presente monografia servirá não somente como contribuição à sistematização da matéria, mas também para levar ao conhecimento do público a nova temática. Isso sem se esquecer de realizar uma análise crítica da doutrina e das decisões a respeito. Igualmente, a monografia pretende colaborar com o crescimento da consciência jurídico-científica nacional dos futuros operadores do direito na tutela dos direitos humanos e no dever de realizar essa nova espécie de controle.
1. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
1.1. Pacto: artigo 1º e artigo 2º
A proteção internacional dos direitos humanos obedece ao princípio da complementariedade, isto é, somente quando esgotados os recursos internos ou inacessíveis esses [6], será admissível petição à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nada obstante, notório realçar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem competência em razão da matéria para realizar o controle de convencionalidade, verificado o requisito do esgotamento ou ineficácia dos recursos internos. Isso porque tem o dever de verificar o cumprimento de compromissos assumidos pelos Estados-Partes. Nesse sentido, Flávia Piovesan[7] elucida:
[...] qualquer membro da OEA – parte ou não da Convenção – pode solicitar o parecer da Corte relativamente à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos. A Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efetuando, assim, o ‘controle de convencionalidade das leis’.
Ainda nesse tom, existem obrigações internacionais gerais, tais como: a) garantir o efeito útil (efetividade ou eficácia social) da Convenção; b) realizar o controle de convencionalidade (art. 1.1 e art. 2. da CADH); e c) obrigações específicas (demais artigos). Essas obrigações devem ser interpretadas à luz do princípio do efeito útil, o qual determina que haja uma interpretação focando à máxima efetividade das disposições normativas, a fim de que haja real transformação fática.
No que concerne à origem da nomenclatura “controle de convencionalidade”, cabe citar José de Souza Alves Neto[8], quando ensina que:
[...] a despeito da importância da jurisprudência da Corte Interamericana para a sedimentação do controle de convencionalidade, há que se esclarecer que a origem dessa concepção é francesa e data do início da década de 1970, quando por conta da Decisão nº 74-54 DC (de 15 de janeiro de 1975), o Conselho Constitucional francês, deu-se por incompetente para analisar a convencionalidade preventiva das leis internas com os tratados ratificados pela França, por considerar que não se tratava de um controle de constitucionalidade propriamente dito [...].
Nesse contexto de atuação efetiva de convenções sobre direitos humanos no plano interno, nota-se que o princípio da supremacia da Constituição sofre erosão autorregulada pelo reconhecimento de uma Convenção Internacional de Direitos Humanos. Assim, renova-se a pirâmide jurídica tradicional construída pela doutrina e jurisprudência nacional, já que o próprio Hans Kelsen colocava o Direito Internacional acima das Constituições. Desse modo, têm-se, em ordem ascendente, atos administrativos, lei e a Constituição paralelamente às convenções de direitos humanos[9] ratificadas devidamente pelo Estado.
Essa erosão relaciona-se com a afirmação do direito internacional dos direitos humanos e com o controle de convencionalidade. Assim, as teorias da soberania, da divisão de poderes e do poder constituinte entram em crise e relativização, porque ganham em complexidade e sofrem influências externas. A visão da soberania como absoluta é mitigada, pelo influxo dos direitos humanos que a limitam, embora ainda haja limitações do voluntarismo estatal acerca de grande parte da nomogênese internacional.
Quanto à divisão de poderes, pode-se recordar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão não previsto no texto formal da Constituição de 1988, influencia nas declarações produzidas por órgãos constitucionais ao afetar vigência de leis e decisões do Poder Judiciário, por exemplo. No que se refere ao poder constituinte originário, este é que permite, por meio de cláusulas de abertura, que as convenções internacionais de direitos humanos vigorem com hierarquia constitucional. Apenas partindo dessa premissa seria possível a realização do controle de convencionalidade no âmbito interno.
A despeito disso, no âmbito externo, essa ideia não tem guarida, visto que o fundamento do controle de convencionalidade, na visão da CIDH, consubstancia-se nos artigos 1.1 e 2º da CADH . Então, nessa concepção, mesmo o poder constituinte originário restaria limitado, desde que o Estado assume o compromisso internacional. A CIDH entende que o Estado deve cumprir suas obrigações de boa-fé e promover as alterações necessárias ao devido cumprimento da CADH.
No caso Caesar contra Trinidad e Tobago[10], por exemplo, a Corte consignou que o Estado, mesmo após a denúncia, não poderia se desencarregar das obrigações internacionais assumidas enquanto estava em vigência o tratado. Nesse caso, ordenou-se a reforma da Constituição, de modo a adequá-la aos ditames da Convenção Americana de Direitos Humanos. A CADH funciona, portanto, como limite heterônomo ao poder constituinte, quando aplicada pela Corte, o que resulta bastante controverso. Ainda que haja boa vontade política, isso é inaplicável, na ordem constitucional brasileira, caso a matéria que a Corte entenda ser inconvencional esteja protegida por força das cláusulas pétreas enumeradas no art. 60, § 4, da Constituição de 1988[11].
Nesse contexto, é de se notar a relevância da realização de um controle prévio de constitucionalidade, antes de assumir um compromisso internacional. Nesse ponto, importante ressaltar que o decreto-legislativo que aprova um instrumento internacional é passível de impugnação por ação direta de inconstitucionalidade ou ação direta de constitucionalidade, sendo uma espécie de controle prévio de constitucionalidade.
Após esse momento, é dever estatal realizar um controle prévio de convencionalidade, diverso do controle prévio de constitucionalidade, pelo exame de compatibilidade de leis ou reformas constitucionais, antes da finalização de seu processo de formação. Isso porque a produção de leis anticonvencionais poderá implicar por si só uma violação à CADH, a depender do caso concreto. Em vista disso, a CIDH veicula a ideia de supremacia convencional que cria um sistema garantista pelo exame de confrontação normativa.
Nesse diapasão, a previsão do artigo 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos, sob a epígrafe “obrigação de respeitar os direitos”, combinada com o artigo 2º, sob a epígrafe “dever de adotar disposições de direito interno”, deu origem a doutrina do controle de convencionalidade como uma obrigação estatal. O artigo 1º e artigo 2º preveem, respectivamente:
Artigo 1º - Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. [...]
Artigo 2º - Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
Retornando a ideia de que essas disposições normativas fundamentam o controle de convencionalidade, explica-se: a uma, o artigo primeiro gera a obrigação de respeitar (obrigação negativa e positiva a depender da natureza do direito envolvido) e garantir o livre e pleno exercício dos direitos humanos reconhecidos. A duas, o artigo segundo consagra o dever de adotar disposições internas compatíveis com a Convenção e o dever de efetivar os direitos nela contemplados.
Portanto, extrai-se dessas obrigações o dever de realizar o controle de convencionalidade, de modo a extirpar do ordenamento jurídico nacional possíveis violações aos direitos humanos consagrados na CADH. Todavia, a possibilidade de concretização do controle de convencionalidade, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos, é uma opção do Estado, na medida em que a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos é facultativa, em princípio.
Assim, quando o Estado é parte da Convenção Americana de Direitos Humanos, pode reconhecer, expressamente, como obrigatória de pleno direito a competência da Corte, por declaração especial (art. 62 da CADH ). Essa declaração especial pode se dar para casos específicos, de modo incondicionado, condicionado à reciprocidade ou até mesmo por prazo determinado, sendo tal rol taxativo.
No que toca à classificação das normas em autoaplicáveis e não autoaplicáveis, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não a considera, tendo em vista aplicar todas as normas de modo imediato e direto. Contudo, no controle de convencionalidade interno, os juízes somente aplicam as normas autoaplicáveis ou aquelas em que já exista ato normativo regulando ou internalizando, visto que existem artigos da CADH, como o artigo 10º e o artigo 14º, os quais contém o elemento “conforme a lei”.
Para resolver essa dissonância, o ideal seria verificar, dentro do plexo de normatizações abstratas constantes da CADH, o núcleo de concretude, isto é, se a norma possui todos os elementos necessários a sua aplicação no caso concreto. Isso porque não se podem viabilizar ao julgador arbitrariedades na complementação dos elementos faltantes, carecedores de regulamentação, já que ocasionaria julgados muito diversos sem parâmetros de validade fixos.
No entanto, deve-se extrair, igualmente, da normativa internacional de direitos humanos a maior efetividade possível, em obediência ao princípio do efeito útil, já visto brevemente. Por isso, é de extrema importância a verificação de elementos concretos de possível incidência no mundo fático para, então, aplicar a norma ao caso.
Retornando à questão da necessidade ou não de aplicação da lei anticonvencional para que ocorra uma violação à CADH, pode-se citar a jurisprudência tradicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos rememorada no caso Genie Lacayo vs. Nicarágua[12]. Nele, a Corte não admitiu o exame de confrontação entre a CADH e normas internas estatais não aplicadas ao caso concreto. No entanto, houve uma mutação jurisprudencial no caso Suárez Rosero vs. Equador e Castillo Petruzi vs. Peru[13], no qual a Corte sustentou que a mera expedição de norma contrária à Convenção já implica violação, por si só, ainda que não ocasione danos.
No caso Raxcacó Reyes vs. Guatemala[14], por sua vez, a Corte afirmou que a simples existência do artigo 201 do Código Penal Guatemalteco, o qual prevê a sanção de pena de morte obrigatória para qualquer forma de plágio ou sequestro, viola a CADH. Ainda, no caso Caesar contra Trinidad e Tobago[15], a Corte consignou que a mera existência da possibilidade de aplicação de penas corporais, na legislação, violava o art. 5º e art. 2º da CADH e, inclusive, ressaltou ser uma obrigação de resultado a do art. 2º.
No entanto, no caso El Amparo contra Venezuela[16], o juiz A.A. Cançado Trindade, em voto dissidente, não concorda com a necessidade de se esperar a ocorrência do dano, não só pelo dever de prevenção, mas também pela ameaça real aos direitos humanos, ainda que disso advenha o controle abstrato de convencionalidade em processo contencioso. Asseverou-se que a modificação do ordenamento interno de um Estado pode ser uma espécie de reparação não pecuniária.
Nesse mesmo voto dissidente mencionado, Cançado Trindade considera crucial a conduta objetiva estatal na produção da lei, a qual figura como ameaça contínua de danos irreparáveis. E, para a configuração da responsabilidade do Estado, não entende ser necessária análise de culpa, tampouco ocorrência de um dano.
Nada obstante, no caso Las palmeras contra Colômbia[17], aplicou-se o controle de convencionalidade, ressaltando que, a definição da questão controversa na ordem interna, não obsta o confronto normativo. Dessarte, mitigou-se o caráter absoluto da coisa julgada interna, por ser contrária aos direitos humanos. Importante ressaltar que na apreciação de decisões judiciais definitivas, no entanto, não se pretende a revisão da sentença transitada em julgado e sim a condenação do Estado pelos danos inerentes à ilicitude internacional, mesmo quando não há dano material a ser reparado.
Nesse sentido, já que todos os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) podem gerar responsabilidade internacional do Estado, o controle de convencionalidade poderá ser feito em relação à sentença, decreto ou lei (variação do objeto controlado). Inobstante, não basta que ocorra a violação para que incorra em responsabilização, pois nem sempre o Estado falhou em prevenir, ainda que sejam atos de particulares ou atos fora da competência dos agentes.
Não exigindo a configuração do dano, a jurisprudência europeia, por exemplo, já aplica o conceito de vítima potencial para a responsabilização preventiva do Estado. Ramos (2004)[18], em deferência ao controle de convencionalidade em abstrato, leciona que:
[...] a doutrina admite o crivo direto e abstrato de leis internas em face da normatividade internacional de direitos humanos, na medida em que sua aplicação possa constituir uma violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Essa análise constitui-se em verdade fórmula de controle de convencionalidade, desvinculada da existência de um litígio concreto entre o Estado e uma pretensa vítima.
Sobre a temática, Ramos (2002)[19] discorre sobre o controle de convencionalidade em abstrato. De acordo com o autor:
Além disso, tendo em vista a aceitação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da visão ampliativa de controle em abstrato da convencionalidade de lei ou ato normativo interno, esta deverá ser implementada internamente. De fato, é decerto restritivo ao espírito protetivo de direitos humanos não permitir o controle abstrato, já que o mesmo pode ser útil para evitar lesões em potencial. Caso aceito esse posicionamento, já ventilado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, então, a execução dessa decisão internacional em abstrato (ou seja, sem que haja um vítima identificada) caberá a entes legitimados para a defesa da sociedade pela ordem jurídica interna. [...] Ora, quando a lei for considerada, em abstrato, incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, é certo que é também incompatível com a Constituição brasileira, o que permite, em tese, a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, de acordo com o artigo 103 da Constituição.
Contudo, no caso Genie Lacayo contra Nicarágua[20], já mencionado, foi firmado que a Corte não tem competência para realizar o controle abstrato de convencionalidade de ofício. Portanto, preferível a proposição de medidas cautelares pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, solicitando ao Estado a suspensão provisória dos efeitos jurídicos da lei. Nada obsta tal diligência. Nesse caso, Cançado Trindade, com base na noção de situação continuada, perfaz a tese de que só o fato de manter em vigência leis internas incompatíveis com a Convenção implica violações aos direitos humanos.
Enquanto que, no caso Fermín Ramírez contra Guatemala[21], a CIDH, a despeito da declaração de constitucionalidade do respectivo Código Penal feita pela Corte Nacional, declarou-o inconvencional. Assim, destacou-se que o artigo 132 do Código Penal violava o art. 9º e art. 2º da CADH , por violar a legalidade e o devido processo legal. A violação se consuma no momento em que o Estado torna-se parte do tratado, após a ratificação, e mantém vigente legislação incompatível com a Constituição.
Em seguida, importante ressaltar o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que a aceitação refere-se tanto à aplicação quanto à interpretação da CADH conferida pela Corte. Destarte, as consultas não são vinculantes juridicamente, por ser exercício de competência não contenciosa. Essas consultas criam, nada obstante, uma vinculação argumentativa, isto é, os tribunais internos têm o ônus argumentativo de superação, caso queiram afastar-lhe aplicação.
Paralelamente, a coisa julgada vincula apenas o Estado demandado, porém todos os Estados que aceitaram a competência da CIDH, são vinculados argumentativamente, em virtude da formação da “coisa interpretada” a cada caso julgado. Esclareça-se: a eficácia jurídica da coisa julgada permanece entre as partes, e não contra todos. Sem embargo, a interpretação dada pela Corte deve ser estendida e observada em sua totalidade pelos demais Estados-Partes, devido ao princípio da igualdade (art. 24 da CADH).
Após a explicação de que a coisa interpretada cria um ônus argumentativo para os juízes nacionais, pode-se realizar um paralelo com a tese de Gilmar Ferreira Mendes[22] sobre a abstrativização ou objetivação do controle incidental. Essa teoria afirma que, aos próprios fundamentos determinantes, é conferida força vinculante, não somente à sua parte dispositiva, mas à razão de decidir, inclusive. Relacionam-se, embora não haja identificação, visto que, a vinculação a que se propõe, no presente trabalho, é meramente argumentativa e não jurídica como Gilmar Mendes sugere.