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União poliafetiva: ousadia ou irresponsabilidade?

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A recente lavratura de uma Escritura de União Estável entre três pessoas na cidade de Tupã, Estado de São Paulo, está fulminada pela nulidade absoluta, haja vista a vedação expressa contida no ordenamento normativo quanto à manutenção plúrima de vínculos de convivência civil.

A comunidade jurídica foi surpreendida com inusitada situação advinda da lavratura de uma Escritura de União Estável entre três pessoas[1], fato este ocorrido na cidade de Tupã, interior do Estado de São Paulo.

Embora não haja consenso sobre a natureza do referido documento, se pretendia regularizar uma mera sociedade de fato, ou inovar a ordem jurídica com a institucionalização da poligamia, segundo informações obtidas na internet[2], trata-se, efetivamente, de uma declaração de convivência plural entre um homem e duas mulheres.

Curioso notar, que tal ato foi lavrado perante um Tabelião de Notas, delegado do Poder Público, nos termos do artigo 236 da Constituição Federal, responsável civil e criminalmente perante as partes e terceiros, eventualmente prejudicados pelo ato praticado, conforme disposto nos artigos 22 a 24 da Lei nº 8935/1994.

Cumpre notar que não se pretende censurar a postura da referida profissional, haja vista a existência de órgãos correcionais voltados à apuração funcional dos eventuais excessos cometidos, todavia, o debate sobre tema de tão graves repercussões sociais merece atenção redobrada por parte da comunidade jurídica.

A Doutrina familiarista evolui a passos largos, atravessando a reformulação de clássicos conceitos sedimentados no Direito Civil por décadas, a ponto de não se reconhecer mais unidade, coerência e integridade no ordenamento vigente.

Se por um lado tais inovações vanguardistas buscam assegurar direitos a uma minoria, até então marginalizada pelo direito posto, de outra parte, surgem, inevitavelmente, questões que desafiam a criatividade de doutrinadores, juristas e magistrados, na busca de soluções viáveis para pacificar conflitos oriundos de uma “sociedade líquida”.[3]

Confesso que me causa certa apreensão o nível de permissividade das relações pessoais construídas nesta sociedade hedonista, volúvel e imediatista, em que pessoas e produtos se confundem, alheias a valores e significados.

O direito, definitivamente, não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, sob pena de se subverter a ordem democrática vigente, subordinando relações sociais ao arbítrio de cada um, a ponto de não se justificar mais a existência de um Estado organizado, dotado de soberania e supremacia perante o cidadão.      

Parafraseando o Professor Lênio Streck[4], o “Direito acaba sendo conceitos sem coisas”, um emaranhado de subjetividades plasmadas por vaidade intelectual que acabam por desaguar na desordem e insegurança jurídica.

“O Direito não está ao nosso dispor. Ou seríamos pequenos tiranos, ao estilo le droit c'est moi. Interpretação não é ato de vontade. Os sentidos dos textos não estão ao nosso dispor. A interpretação é um encontro. Uma fusão de horizontes (o do texto — inteiro alerte-se — e o do intérprete).[5]

Neste aspecto, convém ressaltar a inexistência de quaisquer postulados de ordem moral ou religiosa para a análise da viabilidade jurídica de eventuais “uniões livres”, limitando-se aos aspectos sociais e jurídicos da nova formatação do conceito de família no Direito Civil brasileiro.

Despido de todo e qualquer pré-conceito (ou preconceito) arraigado no âmago de uma sociedade em eterna (re) construção, o fato é que, não se pode aceitar, passivamente, a máxima que se transformou na grande bandeira de parte da Doutrina no que tange ao Direito de Família.

Afirmar irresponsavelmente de que “onde houver afeto, haverá família”, é simplesmente ignorar a existência de balizas conceituais mínimas, necessárias para a viabilização do saudável desenvolvimento dos seres humanos.

Com a devida e melhor vênia de entendimento contrário, não se pode obrigar o Estado a conceder proteção jurídica a todo e qualquer arranjo de pessoas unidas por víinculo de afeto, sob o risco de se institucionalizar o caos nas relações sociais, retornando-se à barbárie inconseqüente.

Apenas como exemplo, um homem de 32 anos pode  perfeitamente nutrir sentimentos por uma garota de 13 anos, mantendo com esta, vínculo afetivo e sexual, todavia, tal arranjo não merece a chancela estatal, não sendo reconhecido como família, mas como estupro de vulnerável, tipificado no artigo 217-A, do Código Penal, cuja presunção de violência é absoluta conforme recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça[6].

No mesmo sentido, não há de se duvidar da existência inúmeros relacionamentos afetivos extravagantes em meio à vastidão do território nacional, nos quais, pais e filhas, mães e filhos, irmãos e irmãs, homens e animais, convivem conjugalmente, todavia, tais uniões alheias ao ordenamento em vigor jamais gozarão de proteção jurídica, merecendo atenção de outros profissionais da psicologia ou mesmo da psiquiatria.

 O que se pretende afirmar, é que as pessoas possuem sim livre arbítrio fundamentado na autonomia da vontade privada para manterem relacionamentos afetivos (e sexuais) da melhor maneira que lhes convier, e quanto a isso, inexistem restrições a serem feitas pelo Estado, desde que tais escolhas limitem-se à esfera da intimidade pessoal.

Todavia, a partir do momento que tais uniões desbordem os modelos tipificados pela legislação em vigor, inexistirá a obrigação estatal em conceder reconhecimento jurídico aos mais variados e imprevisíveis arranjos denominados “familiares”.

O caso descrito pela imprensa nos últimos dias amolda-se perfeitamente a  uma espécie de “relacionamento atípico”, cujas partes pretendem obter uma chancela estatal, de modo a se reconhecer validade jurídica numa situação que, efetivamente, ofende os pressupostos mais fundamentais  do Direito Civil brasileiro.

A poligamia, entendida como a possibilidade da manutenção de múltiplos vínculos afetivos simultâneos, independentemente da nomenclatura do estado civil, consiste em prática aceita em algumas regiões da África, países do Oriente Médio e comunidades isoladas de mórmons fundamentalistas, residentes em Utah, Estados Unidos, sendo, vedada na quase totalidade dos países ocidentais.

Neste aspecto, convém ressaltar que a redação do artigo 1514 do Código Civil, não possibilita interpretações exóticas, no sentido de se aferir viabilidade jurídica a casamentos múltiplos entre mais de duas pessoas.

No mesmo sentido, o artigo 1723 do Código Civil, bem como o artigo 1º da Lei nº 9278/1996,  ao disciplinar a união estável, não fazem qualquer menção à possibilidade de manutenção plúrima de vínculos de convivência, donde se conclui, sem grande esforço, que o Brasil adotou o sistema monogâmico, seja para o matrimônio, seja para a união estável.

Outrossim, não se pode perder de vista o disposto no § 5º do artigo 226 da Constituição Federal, que, ao disciplinar os deveres referentes à sociedade conjugal, faz expressa menção ao homem e mulher, não havendo flexão plural dos substantivos.

A conversibilidade da união estável em casamento também é requisito fixado no § 3º do mesmo artigo 226 da Carta Federal, de modo que, em não havendo tal possibilidade, não há, sequer, de se falar na caracterização de uma união afetiva para fins legais.

Quanto aos parceiros homossexuais, conforme recente entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal franqueou-se aos mesmos a possibilidade de constituição de união estável, sendo sua conversibilidade em casamento, tema ainda não enfrentado pela Corte Suprema, embora já exista precedente do Superior Tribunal de Justiça em sentido afirmativo.[7]

Ademais, a redação dos artigos 104 e 166 do Código Civil, salvo interpretação contra legem, não outorga validade ao negócio jurídico na hipótese de ilicitude do objeto ou desobediência à forma fixada (ou proibida) pelo legislador, sendo forçoso concluir que a referida Escritura lavrada restou fulminada pela nulidade absoluta.

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A disposição do artigo 166, VI mostra-se ainda mais contundente, ao nulificar o negócio jurídico quando o mesmo “tiver por finalidade fraudar lei imperativa”, pretensão esta buscada pelos conviventes ao firmarem documento em violação direta aos deveres fixados no artigo 1724 do Código Civil.

Ademais, a união estável sequer se trata de negócio jurídico, mas de ato-fato  jurídico, cujos efeitos são definidos pelo legislador, não podendo as partes flexibilizar, tampouco dispor das conseqüências jurídicas oriundas da convivência, quiçá para efeitos sucessórios.

E nem se argumente que a referida relação afetiva interessa apenas aos conviventes, posto que, os reflexos sociais e patrimoniais perante terceiros é fato incontroverso, bastando mencionar a presunção de propriedade fixada no artigo 5º da Lei nº 9278/1996 e os eventuais prejuízos causados a credores na hipótese de uma execução civil.

Também inviável a pretendida manutenção de vínculos plúrimos perante entidades públicas (Receita Federal, Previdência Social, Prefeitura) ou privadas (registro de imóveis, bancos, seguradoras, financiadoras, etc), de modo a se institucionalizar a balbúrdia, prestigiando-se a insegurança nas relações jurídicas.

Nossos Tribunais Superiores, em mais de uma oportunidade, sedimentaram o entendimento sobre a inviabilidade da manutenção de uniões estáveis paralelas[8], razão pela qual, inexistem fundamentos jurídicos para se outorgar validade ao pretendido “poliamor”, advindo da convivência entres três pessoas.

Na eventual (e remota) possibilidade de subsistência da declaração de vontade manifestada pelas partes, teremos, no máximo, o reconhecimento de uma sociedade de fato (ou sociedade em comum), cujos efeitos restringem-se aos aspectos patrimoniais, sem quaisquer reflexos no âmbito sucessório, previdenciário, alimentar, ou familiar, sendo eventuais conflitos dirimidos pelo juízo cível, em conformidade com o direito obrigacional.

O que deve ficar bastante claro para as pessoas é que estas são livres para firmar entre si os mais variados e inusitados vínculos afetivos, todavia, não se pode exigir do Estado proteção jurídica a tais situações fáticas extravagantes, mormente, quando persistem princípios estruturantes no sistema normativo em que vedações expressas delimitam a autonomia privada dos casais.

Mais grave ainda é o efeito propagador da mídia impressa e televisiva, em que os veículos de comunicação preocupam-se muito mais em divulgar do que esclarecer as pessoas das repercussões sociais e jurídicas de tais comportamentos atípicos, dando-se a entender que tal prática encontraria abrigo na legislação em vigor.

Pondere-se, por oportuno, a responsabilidade do profissional envolvido na redação do referido instrumento, vez que, enquanto delegado da função notarial estatal deve zelar pela licitude e regularidade das declarações emanadas dos particulares, não sendo razoável admitir a lavratura de escritura, cujo potencial de nulidade mostra-se extremamente elevado.

O particular, enquanto leigo, deposita confiança no instrumento lavrado perante um Tabelião de Notas, edificando legítima expectativa e boa fé quanto à validade jurídica do documento, não sendo lícito ao Estado perpetuar a insegurança jurídica das próprias partes e dos terceiros eventualmente atingidos pelo ato praticado.  

De todo o exposto acima, concluímos que tal pretendida declaração de união poliafetiva encontra-se fulminada pela nulidade absoluta, não produzindo qualquer efeito jurídico seja entre as partes, seja perante terceiros, haja vista a vedação expressa contida no ordenamento normativo quanto à manutenção plúrima de vínculos de convivência civil.


Notas

[1] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-08-23/uniao-afetiva-entre-tres-pessoas-e-reconhecida-em-tupa-no-interior-de-sao-paulo.html - acesso em 25.08.2012

[2] http://www.ibdfam.org.br/novosite/imprensa/noticias-do-ibdfam/detalhe/4862 - acesso em 25.08.2012

[3] Zygmunt Bauman

[4] http://www.conjur.com.br/2012-jul-26/senso-incomum-perigos-neopentecostalismo-juridico-parte-ii acesso em 25.08.2012

[5] IBDEM, autor citado supra

[6] http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106593 – acesso em 25.08.2012

[7] Recurso Especial nº 1.183.378/RS

[8] Recurso Extraordinário nº 397.762-8/BA, Recurso Especial nº 789.293/RJ, Recurso Especial nº 1.157.273-RN,  Recurso Especial nº 1.096.539/RS, Recurso Especial nº 912.926/RS, Recurso Especial nº 1.185.653/PE, Recurso Especial nº 1.104.316/RS

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Sobre o autor
Cesar Augusto de Oliveira Queiroz Rosalino

Juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro, ex- Procurador Municipal de Santo André - SP, Especialista em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina - Unisul, Especialista em Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito-EPD.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSALINO, Cesar Augusto Oliveira Queiroz. União poliafetiva: ousadia ou irresponsabilidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3344, 27 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22501. Acesso em: 26 nov. 2024.

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