O tema está novamente em voga, materializando-se como objeto atual de matérias de jornais[1], palestras institucionais[2], propostas de emenda constitucional[3] e ações judiciais de controle concentrado de constitucionalidade[4].
Apesar de repercutir como se novidade fosse, trata-se discussão que se arrasta desde a vigência da Constituição Federal de 1988 e que, de fato, precisa encontrar um ponto final. Todavia, a necessidade de encerrar a controvérsia em prol de estabilidade e de segurança jurídica não exonera doutrinadores, legisladores, operadores do direito e cidadãos da obrigação de refletir com cautela sobre o tema, antes que se adote posição definitiva. Qualquer decisão precipitada pode custar caro à sociedade brasileira.
Ao longo de mais de duas décadas, defensores dos poderes de investigação do Ministério Público clamam pelo respeito à teoria dos poderes implícitos[5]. Sob este viés, não faria qualquer sentido negar poderes de investigação àquele que detém constitucionalmente as funções de dominus litis. Se o Ministério Público é titular exclusivo da ação penal pública, deve, nessa linha de raciocínio, dispor de ferramentas indispensáveis ao manejo do processo-crime, com independência[6], se necessário. Costuma-se dizer, ainda, que a Constituição Federal, em seu artigo 144, não conferiu exclusividade à Polícia para a condução de atos de investigação criminal.
De outra mão, aqueles que se insurgem contra o acolhimento das atividades de investigação do parquet costumam bradar, de maneira abstrata, que se trataria de instrumento violador de direitos fundamentais[7]. O que não encontramos na bibliografia jurídica, contudo, é uma leitura da questão à luz das realidades histórica e social da República Federativa do Brasil.
Primeiramente, situemo-nos no tempo. No atual cenário deste embate, a ADEPOL do Brasil – Associação dos Delegados de Polícia - quer exclusividade à Polícia Judiciária na atividade investigativa e, por isso, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4271, que aguarda julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. Membros do Ministério Público naturalmente manifestam-se contra a PEC n.º 37/2011, já aprovada na CCJD da Câmara dos Deputados, cujo objeto é tornar indubitável a vedação dos poderes de investigação do parquet.
Entretanto, mais do que análises baseadas em lições de hermenêutica constitucional, o desfecho do debate exige leitura capaz de aferir os custos e os benefícios sociais decorrentes do acolhimento dos poderes de investigação do parquet no Brasil. À evidência, se for constatado um risco inaceitável de violação a direitos fundamentais com o reconhecimento de poderes de investigação do Ministério Público, será melhor deixar referida atribuição a cargo da Polícia, exclusivamente. Aqui, surge o primeiro ponto digno de análise à luz da nossa realidade social.
A República Federativa do Brasil ainda carrega as chagas de uma ditadura militar que tratou de trucidar os mais fundamentais direitos humanos. Prova disso é a recente criação da “Comissão Nacional da Verdade”, instituída com o fim de esclarecer as violações de direitos humanos praticadas no período compreendido entre 18 de setembro de 1946 e 10 de outubro de 1988, abrangendo, portanto, nossa última e mais violenta ditadura, instalada a partir de 1964. Desaparecimentos forçados, torturas infligidas a cidadãos tachados arbitrariamente de terroristas, execuções sumárias e outros abusos cometidos pelas forças policiais e militares marcaram o nosso “regime de exceção”. Tudo isso foi recompensado com uma controversa Lei de Anistia, mal interpretada para abranger não apenas crimes políticos propriamente ditos, mas atos brutais de violência praticados pelo próprio Estado contra o cidadão[8].
O aludido regime deixou seu legado: um modelo policial ultrapassado, ainda militarizado, alvo de críticas reiteradas da comunidade internacional – que já chegou a solicitar a extinção da Polícia Militar brasileira, conforme relatório exarado pela Organização das Nações Unidas[9] - e violador contumaz de direitos humanos. Nesse contexto, o Ministério Público carrega o denso fardo constitucional de promover o controle externo da atividade policial, de acordo com o artigo 129, VII, da Constituição Federal de 1988.
Historicamente, José Benedicto de Azevedo Marques nos lembra como a atuação do Ministério Público, dirigida por Hélio Bicudo, foi fundamental no desmantelamento de grupos policiais de extermínio no Estado de São Paulo, conhecidos como o Esquadrão da Morte[10]. Entretanto, o problema não está superado e se faz presente.
O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas publicou, em 23 de março de 2009, relatório de avaliação sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias ocorridas em território brasileiro[11]. Destacou-se que o número de homicídios praticados por agentes policiais em serviço vem crescendo a cada ano, inclusive no Estado de São Paulo, no qual a taxa de homicídios, em sentido inverso, apresentava significativa queda quando da conclusão do relatório[12]. No Estado do Rio de Janeiro, foi possível constatar que a Polícia foi responsável por 18% do número total de homicídios, ceifando a vida de 1.330 pessoas, apenas no ano de 2007. Esses números dizem pouco, caso considerados isoladamente, mas, se analisarmos de que forma essas mortes ocorreram e como seguiram eventuais investigações por excesso, o problema toma corpo.
O Relator Especial da ONU no Brasil, em novo relatório lançado em 28 de maio de 2010[13], constatou que os 11.000 homicídios praticados pelas Polícias do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre os anos de 2003 e 2009, foram, em maioria, ilegais. Não raro, nos termos do relatório, em vez de prender os suspeitos e submetê-los ao devido processo legal, agentes policiais praticavam execuções sumárias. Nessas ocasiões, lavravam-se os denominados “autos de resistência” sobre os quais havia uma deliberada negligência no que diz respeito à investigação. Ainda de acordo com a ONU, diversas técnicas seriam supostamente utilizadas pela própria Polícia para acobertar essa espécie de delito, tais como alterações maliciosas das “cenas do crime” e condução das vítimas já mortas a hospitais, em simulação de prestação de socorro.
A ONU não só critica, mas aponta para os defeitos que asseguram impunidade aos casos de brutalidade policial. Destaca-se o fato de que agentes da Corregedoria não possuem independência com relação à chefia Polícia, assim como os institutos de criminalística. Para o relator, foi possível constatar empiricamente que, nos casos em que houve avanços no combate à impunidade que naturalmente cerca os atos de violência policial no Brasil, o Ministério Público desempenhara papéis fundamentais. Para encerrar esse ponto sobre violência policial, destaque-se o principal alvo da crítica do Conselho de Direitos Humanos: a Polícia Civil, em casos da espécie, tem demorado a submeter os autos de resistência à análise do parquet, além do fato de ainda haver certa rejeição no país aos poderes de investigação do Ministério Público. Sobre a matéria, lançou-se a recomendação de número 19, nos seguintes termos: o envolvimento do Ministério Público na investigação criminal deve ser fortalecido, assegurando-se às autoridades da entidade coleta independente de provas e poderes para que possam conduzir suas próprias investigações, em casos da espécie. Os governos estaduais devem garantir que a Polícia Civil notifique o Ministério Público, logo no início de qualquer investigação, para que os Promotores possam fornecer eventuais diretrizes sobre colheita de provas necessárias ao embasamento de uma condenação[14].
Trata-se de um ponto de vista imparcial, que representa a consternação da comunidade internacional com os índices brasileiros de violência. É certo que essa visão internacional não pode ser atribuída apenas à cultura policial herdada dos tempos ditatoriais de passado próximo. A República Federativa do Brasil, em números absolutos, é o país em que mais se mata no mundo inteiro[15]. Pode-se afirmar, nesse sentido, que a cultura da violência é um mal presente em todo o meio social brasileiro, mas deve-se reconhecer que, quando cultivada pelo próprio Estado, apresenta-se como óbice intransponível à consolidação da democracia.
Flávia Piovesan (2012, p. 126) leciona que o processo de democratização abrange duas fases. A primeira consiste na transição do regime autoritário anterior para a instalação de um Governo democrático. A segunda transição, mais lenta e complexa, é deste Governo para a efetiva vigência do regime democrático. Fica claro que passamos pela primeira etapa, mas a consolidação da democracia ainda está em curso e jamais se concretizará com a conivência do Estado com atos de violações a direitos humanos. A República Federativa do Brasil carrega o desafio de romper em definitivo com o legado da cultura autoritária ditatorial[16]. Impunidade não parece ser o caminho adequado. Investigações parciais em casos de violência policial também não se mostram instrumentos eficazes, como comprovam estudos promovidos pelas entidades internacionais. Caso o Ministério Público tenha seus poderes investigatórios definitivamente tolhidos, institucionalizaremos o retrocesso, a impunidade e contrariaremos as recomendações internacionais supramencionadas.
O parquet tem se apresentado como forte entidade independente no Brasil, capaz de promover investigações imparciais sobre infrações que envolvem agentes do próprio Estado. Desta sorte, o acolhimento dos seus poderes de investigação não tem o condão de diminuir as atribuições da Polícia, mas tão somente de materializar o reconhecimento de legitimidade concorrente, fortalecendo as forças persecutórias do Estado.
Em casos vulneráveis à impunidade, bem como nos quais a falta de autonomia e de independência da autoridade policial transforma-se em fator de pressão sobre os atos de investigação por ela dirigidos, procedimentos de apuração independentes do Ministério Público tendem a obter maior sucesso.
Sobre a suposta violação de direitos fundamentais pelo reconhecimento de poderes de investigação ao Ministério Público, não parece que conferir exclusividade à Polícia implica assegurar maior observância a direitos e garantias fundamentais. A prática jurídica não tem mostrado o Ministério Público como violador de direitos.
Ademais, os membros do parquet, não é demais lembrar, devem observância às cláusulas constitucionais de reserva de jurisdição e estão sujeitos a controle externo. O argumento no sentido de que o risco de haver violações a direitos é menor com a exclusividade policial não procede, pois destoa da nossa realidade social.
Memore-se, por fim, que a Polícia é vinculada ao Poder Executivo. Em âmbito estadual, a Secretaria de Segurança Pública e o Governo do Estado a dirigem; em âmbito federal, o Ministério da Justiça e a Presidência da República. Por isso, em práticas criminais que envolvam agentes políticos, a atuação policial fica extremamente suscetível a pressões políticas. Apenas a título de ilustração, a Operação Monte Carlo, depois de concluída pela Polícia, deu ensejo à instauração de uma série de procedimentos investigatórios pelo Ministério Público de Goiás em desfavor de autoridades públicas daquele Estado, entre as quais o próprio secretário de Segurança Pública, delegados de Polícia, o ex-procurador-geral do Estado, o ex-chefe de gabinete do governador Marconi Perillo e o ex-presidente do Detran de Goiás[17]. Essas autoridades, como se nota, possuem grande poder de influência sobre a Polícia local.
Os malefícios do envolvimento de agentes públicos dessa espécie em redes de corrupção, fraudes a licitações e desvios de recursos públicos dispensam comentários. São esses os principais fatores que impedem que se consolide uma democracia em essência no Brasil. Privilégios ilegais e inconstitucionais que conduzem à total impunidade não podem ser compatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto histórico e social, apresentam-se os poderes de investigação do Ministério Público como a esperança de que a impunidade de maus agentes políticos e de agentes policiais perpetradores de brutais violações a direitos fundamentais pode acabar. A aprovação da PEC nº 37 pelo Congresso e eventual procedência da ADI 4271 pelo Supremo Tribunal Federal, caso ocorram, serão desleais ataques à democracia brasileira, garantindo-se a perpetuidade de privilégios indevidos, da intangibilidade de agentes políticos e da cultura policial de violência. É por isso que se afirma que os poderes investigatórios do Ministério Público são, hoje, em nossa realidade, uma ferramenta indispensável à consolidação da democracia na República Federativa do Brasil.
Referências:
ARRUDA, A. C. MP-GO instaura procedimentos para investigar citados na Operação Monte Carlo. Ministério Público de Goiás. 28.mai.2012
MARQUES, J.B. de A. Quem quer calar o MP? Folha de São Paulo. 23 jun. 2012, p. A3
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
UNITED NATIONS. Human Rights Council. Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions: follow-up to country recommendations - Brazil. 28 mai. 2010
UNITED NATIONS. Human Rights Council. Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions: mission to Brazil. 23 mar. 2009.
UNITED NATIONS. Office on Drugs and Crime. 2011 Global Study on Homicide. Viena: United Nations Office on Drugs and Crime, 2011.
WEICHERT, Marlon Alberto; FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Anistia, Tortura, República e Democracia. Revista Atualidades Jurídicas – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. N.º 09. P. 62/103. Jan/Set. 2010.
Notas
[1]O Ministério Público deve fazer investigações criminais? Folha de São Paulo. São Paulo, 23 de jun. 2012, p. A3.
[2] Como a promovida pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo em 22/06/2012.
[3] PEC n.º 37-A/2011 – em trâmite perante a Câmara dos Deputados.
[4] Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4271, proposta pela ADEPOL perante o Supremo Tribunal Federal.
[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 15ª Ed. p. 85. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[6] Eugênio Pacelli de Oliveira (op. cit. p. 87), v.g, menciona os casos em que o Ministério Público discorda da autoridade policial quanto à existência de crime. Nesse caso, deve o Ministério Público dispor dos meios de investigação admitidos em direito para afirmar seu convencimento.
[7] Nesse sentido, Alberto José Tavares Vieira da Silva, citado na justificativa da PEC n.º 37/2011 aduz que “não engrandece nem fortalece o Ministério Público o exercício da atividade investigatória de crimes, sem respaldo legal, revelador de perigoso arbítrio, a propiciar o sepultamento de direitos e garantias inalienáveis dos cidadãos”.
[8] Para uma revisão constitucionalmente adequada da Lei de Anistia, v. WEICHERT, Marlon Alberto; FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Anistia, Tortura, República e Democracia. Revista Atualidades Jurídicas – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. N.º 09. P. 62/103. Jan/Set. 2010.
[9] UNITED NATIONS – Human Rights Council –28 de maio de 2010. Recomendação A.4. Íntegra do relatório disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G10/137/66/PDF/G1013766.pdf?OpenElement Acesso em: 25/06/2012.
[10] MARQUES, J.B. de A. Quem quer calar o MP? Folha de São Paulo. 23 jun. 2012, p. A3.
[11] UNITED NATIONS – Human Rights Council – 23 de março de 2009. Item 09. Íntegra do relatório disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G09/126/22/PDF/G0912622.pdf?OpenElement Acesso em: 25/06/2012.
[12] Deve-se anotar, contudo, que os homicídios praticados pela Polícia não são considerados, para fins estatísticos, como homicídio.
[13] Trata-se do mesmo relatório mencionado na nota de n.º 09.
[14] Tradução livre. Original: 19. The involvement of the Public Prosecutor’s Office in building criminal cases
must be strengthened:
(a) State governments should ensure that the Civil Police notify public prosecutors
at the outset of investigations so that prosecutors can provide timely guidance on what
evidence must be gathered in order to obtain a conviction;
This recommendation has not been implemented.
(b) The legal authority of public prosecutors to independently gather evidence
admissible in court should be unequivocally affirmed;
This recommendation has not been implemented.
(c) Public prosecutors should routinely conduct their own investigations into the
lawfulness of killings by the police.
[15] Em 2009, foram 43.909 homicídios – sem contar os praticados pela Polícia. Em segundo lugar, conforme “Estudo Global sobre Homicídios”, realizado pela Organização das Nações Unidas em 2011, situa-se a Índia, com 40.752 homicídios. Não é demais ressaltar que a população da Índia é cinco vezes superior à nossa.
[16] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[17]ARRUDA, A. C. MP-GO instaura procedimentos para investigar citados na Operação Monte Carlo. Ministério Público de Goiás. 28.mai.2012 Disponível em:
http://www.mp.go.gov.br/portalweb/1/noticia/e57ac0e159d8420790d6b22107740f14.html?titulo=MP-GO%20instaura%20procedimentos%20para%20investigar%20citados%20na%20Opera%E7%E3o%20Monte%20Carlo Acesso em: 25/06/2012.