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O meio ambiente do trabalho.

Conceito, responsabilidade civil e tutela

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29/09/2012 às 11:13
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2 – A RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS DECORRENTES DA POLUIÇÃO LABOR-AMBIENTAL.

   Sendo o meio-ambiente do trabalho uma parte integrante do amplo concento de “meio-ambiente”, afigura-se lógico que os danos decorrentes dos desequilíbrios labor-ambientais ocasionados pelos empregadores e pelos detentores dos fatores de produção sigam o mesmo regime da responsabilidade civil objetiva decorrente da poluição, a teor do art 225, § 3º c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.

Dentre tais disfunções verificadas nos lambientes laborais a ocasionarem danos à integridade física e à própria vida dos obreiros, os exemplos mais corriqueiros são representados pelas doenças profissionais e pelos acidentes do trabalho. São estes últimos, em grande parte, o resultado de um meio-ambiente do trabalho desequilibrado (ou, na linguagem da Lei nº 6.938/81, “poluído”) em razão da própria natureza das atividades desempenhadas pelo empresário.   

No entanto, em que pese a concatenação lógica a permear o binômio “poluição labor-ambiental – responsabilidade objetiva”, o regime da reparação pelos acidentes do trabalho e pelas doenças profissionais é, atualmente, objeto de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. A razão para tal cizânia, a nosso ver, decorre das dificuldades em se compreender a questão como um consectário do sistema de tutela do “meio-ambiente do trabalho”,de superar as concepções tradicionalmente formuladas a respeito da matéria e da resistência à formulação de análises mais detidas das nuances dos casos concretos. 

Diante disso, procurar-se-á, no presente tópico, a formulação de subsídios para a exata compreensão do tema à luz dos dispositivos que atualmente regem a matéria, no fito de demonstrar em que medida a responsabilidade objetiva pela poluição labor-ambiental terá aplicabilidade, sem descartar, contudo, a subsistência de situações a denotarem a incidência do modelo aquiliano clássica, a teor do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal. 

2.1. Breve histórico da responsabilidade civil pelos acidentes do trabalho e doenças profissionais na legislação brasileira.

Já no final do Século XIX nos países industrializados da Europa, as discussões em torno da elaboração de uma legislação protetiva dos trabalhadores fizeram-se acompanhadas de acalorados debates a respeito da elaboração de um regime específico para a reparação dos acidentes do trabalho, em superação ao vetusto sistema da responsabilidade aquiliana consagrado nos códigos civis, cujo advento encontrava como principal justificativa a necessidade de adaptação da teoria clássica às relações laborais calcadas na produção em massa e no maquinismo.

Concebeu-se, dessa forma, a teoria do risco profissional, a preconizar a responsabilidade do empregador pela escorreita manutenção de seu maquinário e pela organização salubre dos fatores de produção, de modo a presumir-lhe a culpa pelos sinistros ocorridos no ambiente laboral, conforme sintetiza Evaristo de Moraes em obra pioneira sobre o tema no Brasil: 

E´ obrigação patronal tomar todas as precauções para que permaneçam em bom estado e funccionem bem os instrumentos do trabalho, o machinismo, tudo, emfim, de que se serve o operario. Desde que se dê um accidente por causa de tais apparelhos, presumida fica a responsabilidade do patrão; elle tem, para se evadir a ella, de provar que o accidente não resultou do máo estado ou de máo funccionamento dos mesmos apparelhos. Por outras palavras: ou o patrão deixa fóra de dúvida ter havido caso fortuito, ou deve indemnização.[16]

A teoria do risco profissional, nos moldes descritos por Evaristo de Moraes, serviu de inspiração para a primeira legislação brasileira sobre o tema, qual seja, o Decreto nº 3.764, de 15.1.1919, cujo texto presumia a responsabilidade patronal pelos acidentes do trabalho, impondo-lhe indenizações tarifadas, a variarem em função do tipo de lesão, sujeitas, em qualquer caso, a um limite máximo.

Sob a égide do Decreto nº 3.764/19, instaurou-se na doutrina e na jurisprudência considerável celeuma em torno da cumulatividade ou não da indenização tarifada ali prevista com a reparação de direito comum estabelecida, em termos gerais, no art. 159 do Código Civil de 1916, sob a égide da responsabilidade aquiliana. A questão em apreço viria a ter  crucial  importância para a regência do tema nos anos vindouros.[17]

Quinze anos mais tarde, já durante o governo de Getúlio Vargas, editou-se o Decreto nº 24.637, de 10.7.1934, que manteve a regência do tema sob a égide da teoria do risco profissional, estabelecendo, todavia, um detalhamento mais elaborado a respeito das hipóteses a caracterizarem o acidente de trabalho, bem como da tarifação. Cumpre destacar, por oportuno, que o texto legal em referência vedou expressamente, em seu art. 12, a cumulação entre a indenização acidentária e a reparação civil, pondo termo – ao menos por certo tempo – à cizânia instaurada a partir de 1919.

No entanto, o Decreto-Lei nº 7.046, de 10.11.1944, que tornaria a regulamentar a matéria revogando a legislação anterior, deixou assente em seu art. 31 que a cumulação entre a indenização tarifada dos acidentes de trabalho e a reparação do direito comum teria lugar apenas nas hipóteses em que o empregador agira com dolo.

Criou-se, desse modo, com o Decreto-Lei nº 7.046/44 um sistema dúplice de indenização pelos danos decorrentes de acidentes de trabalho, caracterizado pela culpa presumida, no que concerne à reparação acidentária, e pela responsabilidade aquiliana limitada ao dolo, no que diz respeito à indenização do direito comum, a teor do art. 159 do Código Civil de 1916.

Diante disso, as discussões travadas a partir da promulgação do Decreto-Lei nº 7.066/44 foram pautadas pela possibilidade ou não de extensão da cumulatividade indenizatória nas hipóteses em que os acidentes de trabalho decorreram de culpa em grau grave por parte do empregador. A matéria foi objeto de análise por parte do Supremo Tribunal Federal na década de 1960, que veio a responder afirmativamente à indagação em sucessivos julgados, culminando, mais tarde, com a edição da Súmula nº 229, lavrada nos seguintes termos: 

Súmula 229 – A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador.

Com o posicionamento consagrado na Súmula nº 229 do Supremo Tribunal Federal, o sistema dúplice de indenização (acidentária + cível) consagrado no Decreto-Lei nº 7.046/44 foi estendido para abranger, a partir de então, também as lesões ocasionadas pela culpa grave dos empregadores, não mais se limitando ao dolo em seu sentido estrito.[18]

O sistema dúplice perdurou até 19.10.1976, quando a Lei nº 6.367/76, a pretexto de formular um novo regime jurídico para o seguro social contra os acidentes de trabalho, revogou expressamente  o Decreto-Lei nº 7.046/44 (art. 22), sem estabelecer, em sua substituição, um novo sistema de reparação especícica para os acidentes de trabalho.

A partir de então, as reparações decorrentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais a eles equiparadas passaram a depender, exclusivamente, da sistemática da responsabilidade aquiliana estabelecida em termos gerais no art. 159 do Código Civil de 1916, e, por conseguinte, da demonstração efetiva do dolo e da culpa grave do empregador ou de seus prepostos na ocorrência do sinistro.  

No entanto, em que pese a lacuna estabelecida quando do advento da Lei nº 6.367/76, a jurisprudência dos tribunais superiores vislumbrou no referido diploma um avanço na matéria, porquanto a responsabilidade civil do empregador não mais estaria sujeita à demonstração em torno de dolo ou culpa grave, bastando, agora, a constatação de culpa em qualquer grau (levíssima, leve ou grave), em superação à sistemática da Súmula nº 229 do Supremo Tribunal Federal.[19]

Paralelamente às discussões em torno da sistemática jurídica dos acidentes do trabalho e de sua reparação, as questões atinentes ao meio-ambiente e à sua tutela começaram a ganhar paulatino destaque nos planos internacional e doméstico, mormente nos anos que se seguiram à Conferência de Estocolmo, de 1972. Assim que, em 31.8.1981, foi promulgada a Lei nº 6.938/81, cujo teor não só incorporou o conceito amplo conferido à expressão “meio-ambiente”, como também consagrou como regra, em seu art. 14, § 1º, a responsabilidade civil objetiva do poluidor pelos danos ambientais.

No entanto, a despeito da vigência da Lei nº 6.938/81, a resistência em torno do reconhecimento dos acidentes do trabalho como um problema eminentemente ambiental, aliado à visão segmentária dos ramos do direito sob matizes tipicamente positivistas, dificultou sobremaneira a aplicação da regra da responsabilização objetiva do poluidor (art. 14, § 1º) aos empregadores responsáveis pela organização dos fatores de produção nos locais de trabalho. Desse modo, a aplicação da culpa aquiliana permaneceu a reger as questões relacionadas à reparação acidentária.     

Mais tarde, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a redação conferida ao art. 7º, XXVIII pareceu consagrar de forma peremptória o condicionamento das indenizações acidentárias à demonstração em torno do dolo ou da culpa dos empregadores.  Ao mesmo tempo, contudo, o art. 225, § 3º da Carta Magna, lido em conjunto com o já vigente (e recepcionado) art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, reiterou a responsabilidade objetiva dos poluidores (em sentido amplo) pelas lesões ocasionadas ao meio-ambiente em todas as suas acepções, aí incluído, naturalmente, o do trabalho.

Pode-se dizer, portanto, que a consagração constitucional da tutela do meio-ambiente com a correspondente responsabilidade objetiva dos poluidores pelos danos ocasionados ao meio-ambiente laboral, nos termos do art. 225, caput, e § 3º, não só manteve em aberto as discissões em torno da aplicabilidade de tal sistemática à reparação dos acidentes do trabalho, como também a reforçou, haja vista o caráter amplo de suas diretrizes.

Diante da coexistência dos dois regimes no texto constitucional, poder-se-ia  cogitar na existência de uma antinomia entre o art. 7º, XXVIII e o art. 225, § 3º, da Carta Magna. No entanto, o conflito ora indicado é apenas aparente, porquanto a aplicabilidade de uma ou de outra diretriz às hipóteses surgidas na realidade fática será determinada pelas nuances do caso concreto, conforme ver-se-á mais adiante.

E como se já não bastasse a controvérsia subjacente ao texto constitucional, a questão em torno da responsabilidade civil dos empregadores pelos acidentes de trabalho adquiriu um grau maior de complexidade, com o advento do art. 927, parágrafo único, do Novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.1.2002), cujo dispositivo afastou a necessidade em torno da demonstração de culpa quando a atividade desenvolvida pelos ofensores acarretar, por sua natureza, riscos aos direitos de terceiros (teoria do risco da atividade).[20]

Assim, no estágio atual da evolução do tema, a problemática da responsabilidade civil decorrente dos acidentes de trabalho transige com três possibilidades, assim discriminadas:

DISPOSITIVOS APLICÁVEIS

TIPO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.

Subjetiva.

Art. 225, § 3, da Constituição Federal  c/c o Art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.

Objetiva.

Art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

Objetiva.

As próximas linhas do presente tópicos serão dedicadas, justamente, à averiguação mais detalhada das condições necessárias para a incidência de cada uma das possibilidades acima descritas, que variarão ora em função das circunstâncias concretas a envolverem o acidente de trabalho ou a doença profissional, ora em razão da natureza do risco criado pelos agents responsáveis pela organização do ambiente laboral.

2.2 O princípio da reparação integral. Art. 5º, X, da Constituição Federal e art. 944 do Código Civil.

Anteriormente à perquirição em torno das possibilidades de coexistência entre os regimes da responsabilidade civil objetiva e aquiliana, faz-se mister salientar que a reparação dos acidentes de trabalho, assim como das demais espécies de danos, encontra no princípio da reparação integral, consagrado nos artigos 5º, X, da Constituição Federal e 944 do Código Civil, uma diretriz vinculante e inafastável. 

Em apertadíssima síntese, o postulado em referência preconiza que a reparação a ser provida pelo ofensor de um determinado direito, deve guardar estrita equivalência com o prejuízo imputado, a fim de restaurar, na maior medida possível, o patrimônio jurídico do lesado. Nesse sentido, a condenação não só deve abranger a compensação das lesões patrimoniais e imateriais (morais) das vítimas, como também deve alcançar os reflexos deletérios suportados por terceiros, como sói ocorrer com seus dependentes.[21]

Como corolário do princípio da reparação integral, formulou-se a noção de que  a condenação cível dos ofensores deve atender, na acepção de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, às funções compensatória, indenitária, concretizadora e punitiva, a fim de que com ela se possa lograr não só o restabelecimento, ou a amenização da situação pessoal dos ofendidos, na maior medida possível, como também a prevenção quanto à ocorrência de novas lesões.[22]

Nesse sentido, as funções compensatória e indenitária podem ser consideradas como as duas faces de uma mesma moeda. Com efeito, enquanto a primeira tem por móvel a fixação da condenação na exata proporção do prejuízo experimentado pelo ofendido, a última vislumbra, em sentido oposto, evitar excessos que acarretem o enriquecimento ilícito do lesado. Pode-se dizer, portanto, que ambas as funções ora apreciadas limitam-se mutuamente a fim de impedir, ao mesmo tempo, a fixação de reparações que estejam aquém ou além do razoável em cada caso concreto.

A função concretizadora, de seu turno, preconiza que a reparação dos danos sofridos seja personalizada, ou seja, leve em conta os prejuízos experimentados em concreto pelo  ofendido e com base neles, e em sua exata proporção, seja fixada a compensação. O postulado em apreço tem por intuito maior vedar a fixação de indenizações em abstrato, tal como sói ocorrer com os tarifamentos previstos, por exemplo, nas antigas leis de acidentes do trabalho (Decreto nº 3.764/19, Decreto nº 24.637/34 e Decreto-Lei nº 7.046/44) e na Convenção de Varsóvia sobre a aviação comercial, assinada em 1929 e ratificada pelo Brasil em 1931.  

No que tange à função punitiva, pode-se dizer que esta vislumbra, em síntese, a imposição de uma sanção de natureza cível ao ofensor, para incutir-lhe a ideia de “arrependimento”, ao mesmo tempo em que proporciona ao ofendido um certo sentimento de justiça realizada, no fito de aplacar-lhe o sofrimento. Nesse mesmo sentido, o aspecto em referência tem por escopo prevenir, através da condenação pecuniária, a ocorrência de novas lesões similares àquela que se busca reparar.

O aspecto punitivo, entre nós, é de existência controvertida, mormente em razão do ideário a preconizar a dicotomia funconal das esferas cível e criminal e ante a propalada possibilidade de que os ofendidos possam ser injustamente apenados duas vezes pelo mesmo fato. No entanto, a despeito de tal cizânia, pensamos que a função punitiva encontra plena guarida no princípio da reparação integral consagrado no art. 5º, X, da Constituição Federal e no art. 944 do Código Civil, porquanto visa compensar os dissabores experimentados pelos lesados com a condenação imposta aos autores dos danos.

Dito de modo mais preciso, se a condenação dos ofendidos em certa monta não tem o condão de restabelecer o status quo ante, logra, em certa medida, aplacar as sensações de tristeza, ira, angústia, frustração, perda e revolta experimentadas pelo ofendido e por seu círculo familiar com a lesão perpetrada. Trata-se, portanto, de aspectos da personalidade que a reparação visa restabelecer, ou pelo menos, a amenizar, razão pela qual sua inserção no cômputo da indenização encontra plena guarida no princípio da reparação integral.[23]   

Em outro sentido, a função punitiva tem por escopo  prevenir, por intermédio de uma condenação de grande monta, a ocorrência de outras lesões, de modo a dissuadir não só o ofensor, como também eventuais terceiros que venham a intentar práticas similares no futuro. É nesse sentido que a doutrina dos punitive damages foi elaborada e acatada não só pelos tribunais  dos países que adotam o sistema da Common Law, como também pelo Superior Tribunal de Justiça.[24]

E é exatamente nas questões afetas aos danos ao meio-ambiente (aí incluído o do trabalho) que a coibição de lesões futuras afigura-se mais defensável – também em razão dos princípios da prevenção e da precaução -, na medida que a punição pecuniária tem por efeito fazer com que os poluidores em potencial passem  apautar suas condutas pelos cuidados objetivos estabelecidos na Lei nº 6.938/81[25]

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No que diz respeito ao objeto das condenações, o princípio da reparação integral subjacente ao art. 5º, X, da Constituição Federal e 944 do Código Civil indica a necessidade de que a indenização abranja não só os danos morais e patrimoniais consolidados, como também as lesões emergentes, os lucros cessantes, a perda de uma chance, os danos “por ricochete”, enfim, toda e qualquer afetação negativa que a lesão provocou, ou venha  a provocar, na esfera jurídica do lesado e de terceiros.[26]

Em se tratando de acidentes do trabalho, tal aspecto do postulado da reparação integral enseja a  obrigação do empregador em arcar não só com a indenização pelo dano na esfera da personalidade do obreiro ocasionado por eventual perda de membro ou função, sem prejuízo das compensações pelo agravamento das lesões já existentes (danos emergentes), como também com as despesas médicas imediatas e ulteriores, com a compensação pecuniária pela impossibilidade total ou parcial de exercício futuro de atividade econômica (lucros cessantes e perda de uma chance), bem como com o pensionamento dos dependentes do acidentado, quando for o caso, nos termos do art. 948 do Código Civil (danos por ricochete).[27]    

Após a formulação dessas breves considerações, observa-se de forma palmar que o princípio da reparação integral não só tem plena aplicabilidade nas questões a envolverem a responsabilidade civil por acidentes de trabalho, como também deve orientar os intérpretes/aplicadores na análise dos casos concretos postos à sua apreciação.

2.3. A responsabilidade civil pelos acidentes do trabalho e doenças profissionais.

Uma vez calcadas as premissas que deverão orientar o intérprete/aplicador na resolução dos casos concretos a envolverem desequilíbrios no meio-ambiente laboral e que ensejam, por isso mesmo, a prevenção, a inibição ou a reparação dos acidentes do trabalho e das doenças profissionais, passa-se à análise das correntes doutrinárias e jurisprudenciais formuladas com vistas à definição do regime de responsabilidade civil aplicável ao tema.

Nesse sentido, é possível identificar a existência de três grandes linhas de entendimento, a saber: (i) a corrente que propala a aplicação pura e simples do art. 7º, XXXVIII, da Constituição Federal (responsabilidade subjetiva) a toda e qualquer suposto de acidente do trabalho e doença profissional; (ii) a tese em torno da responsabilização objetiva dos empregadores com arrimo na teoria do “risco criado” contemplada no art. 927, parágrafo único do Código Civil e, finalmente; (iii) a corrente que consagra a coexistência em abstrato dos dois regimes de responsabilidade (aquiliana e objetiva) e se vale da hermenêutica constitucional (em especial do postulado da “concordância prática” ou “unidade da constituição”) para promover a resolução em concreto das controvérsias, sem excluir a possibilidade de aplicação do art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 aos danos ocasionados ao meio-ambiente do trabalho.   

As próximas linhas serão dedicadas à explanação mais detalhada das sobreditas correntes, adiantando-se, desde já, nossa adesão à terceira corrente, haja vista que a exegese por ela preconizada logra conferir, ao mesmo tempo, eficácia plena tanto à diretriz insculpida no art. 7º, XXVIII, da Carta Magna (necessidade de comprovação de dolo ou culpa para a reparação cível dos acidentes de trabalho), quanto aos postulado insculpido no art. 7º, XXII (redução dos riscos inerentes ao trabalho) c/c o art. 225, § 3º, da Lei Maior, complementado pelo art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 (responsabilidade objetiva do poluidor do meio-ambiente laboral).

2.3.1. A primeira corrente. Responsabilidade subjetiva nos termos do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.

A primeira corrente concernente à responsabilização dos empregadores pelos acidentes de trabalho e doenças profissionais é a de mais singela explanação. Preconiza ela, em síntese, que a diretriz constante do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal – a condicionar a reparação cível pelos referidos sinistros à demonstração de dolo e culpa (responsabilidade subjetiva) – submeteria a ela toda e qualquer situação de infortunística laboral, independentemente das circunstâncias subjacentes aos casos concretos.

Dito em termos mais precisos, segundo a corrente em apreço, a reparação pelos infortúnios experiemntados por parte dos obreiros nos locais de trabalho somente imputar-se-ia aos empregadores nas hipóteses em que (i) houvesse comprovação precisa a respeito da intenção deliberada ou da assunção do risco de lesar a vida ou a integridade física daqueles (dolo em sentido estrito e dolo eventual, ou (ii) se demonstrasse a culpa dos organizadores dos ambientes laborais, seja por imperícia, imprudência ou negligência, para além da aferição do nexo de causalidade entre o evento protagonizado pelo empregador e o resultado lesivo.

Dentre os defensores de tal entendimento na doutrina, destacam-se Rui Stoco, Arnaldo Rizzardo e João José Sady que enxergam na norma constante do art. 7º, XXVIII, da Carta Magna um óbice intransponível para a aplicação dos dispositivos infraconstitucionais a preconizarem a responsabilidade objetiva do empregador/poluidor (art. 927, parágrafo único do Código Civil e art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81) às situações a envolverem desequilíbrios labor-ambientais (aí incluídos, naturalmente, os acidentes de trabalho e as doenças profissionais).[28]    

A corrente em apreço encontra, também na jurisprudência, grande ressonância. Nesse âmbito o aspecto mais salientado pelos arestos reside no propalado caráter específico conferido ao regime da reparação cível dos acidentes de trabalho pelo art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal que, ao consagrar a responsabilidade subjetiva, teria afastado a aplicabilidade de qualquer outra regulamentação infralegal em sentido contrário.[29]

Em que pesem, todavia, os argumentos acima formulados, não há como negar que a linha de entendimento ora apreciada, a pretexto de zelar pela primazia da norma constitucional, acaba por estabelecer interpretação isolada do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, de modo a ignorar fragorosamente os demais dispositivos da Lei Maior também aplicáveis a tal sorte de controvérsias (em especial, o próprio caput do art. 7º, seu inciso XXII e o art. 225, caput e § 3º) e, por conseguinte, a comprometer o próprio sentido unitário que a norma-ápice do ordenamento pátrio confere à temática da “responsabilidade civil por danos ocasionados ao meio-ambiente do trabalho”.

Trata-se, portanto, de situação em que tanto a doutrina e a jurisprudência interpretam o direito constitucional “em tiras”, na acepção crítica consagrada por Eros Roberto Grau, sem considerar a regência sistemática que a Carta Magna confere ao tema, erigindo ao lado da diretriz a propalar a responsabilidade subjetiva pelos acidentes de trabalho (art. 7º, XXVIII), os princípios da proteção do trabalhador (art. 7º, caput), da redução dos riscos laborais (art. 7º, XXII), da tutela do meio-ambiente equilibrado (art. 225, caput) e, finalmente, ra responsabilidade objetiva pelos desequilíbrios labor-ambientais (art. 225, § 3º da CF c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81).[30]

Diante da coexistência em abstrato das sobreditas diretrizes no texto constitucional, faz-se necessário, decerto, buscar mecanismos hermenêuticos que possam dar conta da aparente contradição que a elas subjaz, mormente no que diz respeito à convivência entre a responsabilidade objetiva do art. 225, § 3º e a responsabilidade subjetiva do art. 7º, XXVIII. Todavia, acreditamos que tal desiderato não será alcançado pela preponderância em absoluto deste último dispositivo em todo e qualquer caso a envolver acidentes do trabalho e doenças profissionais. 

2.3.2. A segunda corrente. Responsabilidade objetiva pelo risco da atividade. Aplicação do art. 927, parágrafo único do Código Civil.

Com a promulgação do Novo Código Civil em 2002, instaurou-se entre os estudiosos do direito acidentário do trabalho acalorado debate em torno da aplicabilidade do art. 927, parágrafo único do novel diploma à reparação das lesões ocasionadas peos infortúnios laborais. Procurava-se, mais precisamente, saber se a regra da responsabilidade objetiva pelos danos decorrentes das atividades a implicarem, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem, afastaria a necessidade de perquirição em torno do dolo e da culpa dos empregadores pelos acidentes de trabalho ocorridos em seus estabelecimentos.

A partir daí, produziu-se um farto material sobre o tema, possibilitando-se falar, propriamente, no surgimento de uma nova corrente. Na doutrina, diversos expoentes de peso manifestaram-se pela aplicabilidade plena do art. 927, parágrafo único do Código Civil, sob o fundamento de que a responsabilização objetiva em tela passaria a integrar o cabedal tutelar dos obreiros, em face da redação conferida ao art. 7º, caput, da Constituição Federal (princípio da proteção), cujo teor prescreve que os direitos dos trabalhadores abrangem, para além daqueles discriminados em seus incisos, “outros que visem à melhoria de sua condição social”.[31]

De forma suplementar, os partidários de tal corrente asseveram que a compatibilidade entre o art. 927, paragrafo único do Código Civil e a Constituição Federal decorreria não só de sua conformidade com o princípio protetivo (art. 7º, caput), mas também com as diretrizes emanadas dos postulados da dignidade humana (art. 1º, III), do valor social do trabalho (art. 1º, IV), da função social da propriedade e da empresa (art. 5º, caput e 170, III) e, finalmente, do meio-ambiente equilibrado (art. 170, VI e 225, caput).

Assim, segundo tal linha de entendimento, do sistema tutelar emanado dos sobreditos dispositivos poder-se-ia inferir que o art. 7º, XXVIII não representaria impedimento à objetivação da responsabilidade dos empregadores pelos infortúnios ocorridos naquelas atividades a envolverem riscos inatos, pois o advento da regra insculpida no art. 927, parágrafo único do Código Civil teria acrescido inequívoca melhoria às condições sociais dos trabalhadores, em pleno atendimento, portanto, ao princípio protetivo e aos retromencionados postulados de ordem constitucional.

A propósito, Claudio Luiz Bueno de Godoy, ao comentar o tema, salienta que o próprio advento do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, em 1988, representou considerável evolução no tratamento da indenização acidentária cuja consolidação, anteriromente, estava condicionada à comprovação de culpa grave ou dolo, a teor da Súmula nº 229 do Supremo Tribunal Federal.

Nesse diapasão, ainda segundo o autor, o intuito evolutivo perquirido pelo art. 7º, XXVIII, da Carta Magna conferiria pleno respaldo à objetivização consagrada no art. 927, parágrafo único do Código Civil, haja vista ter o dispositivo infraconstitucional em apreço carreado significativo avanço social para os trabalhadores na regulamentação da reparação cível pelos infortúnios laborais.[32]

De seu turno, José Affonso Dallegrave Neto destaca que não só o “solidarismo social” subjacente aos artigos 1º, III, 7º, caput, 170, III e 225 da Constituição Federal respaldaria a responsabilidade objetiva dos empregadores pelos acidentes do trabalho, como também a própria vicissitude fática concernente à assunção dos riscos da atividade por parte da empresa -  reconhecida juridicamente pelo art. 2º da CLT e pelo próprio art. 927, parágrafo único do Código Civil - daria guarida à tese em referência.[33]

Enoque Ribeiro dos Santos, por sua vez, atém-se ao entendimento de que a responsabilidade dos empregadores pelos danos ocasionados aos obreiros é, efetivamente,  objetiva, não apenas em face do disposto no art. 927, parágrafo único do Código Civil, mas também – e principalmente – da norma constante do art. 2º, § 2, da CLT, a positivar a assunção, por parte dos patrões, dos riscos inerentes à atividade de suas empresas.[34]

Isto posto, segundo a corrente em estudo, a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único do Código Civil, aplicada à infortunística laboral, limitar-se-ia a exigir do empregado acidentado a demonstração da ocorrência do dano, do resultado e do nexo de causalidade entre um e outro, sem impor-lhe a comprovação do elemento subjetivo inerente ao empregador ou seu preposto na materialização do sisnistro (culpa ou dolo).[35]

Nesse sentido, a responsabilidade dos empregadores pelas lesões ocasionadas aos obreiros somente poderia ser afastada se acaso aquele primeiro demonstrasse a ocorrência de fato exclusivo da vítima, fato de terceiro ou força maior apto a excluir o alegado nexo de causalidade entre a lesão sofrida pelo funcionário e a atividade regularmente desempenhada pela empresa.[36]  

A grande repercussão doutrinária da corrente em referência fez, inclusive, com que a tese por ela propugnada fosse cristalizada no Enunciado nº 37 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, realizada nas dependências do Tribunal Superior do Trabalho em 2007. O verbete em referência é calcado, fundamentalmente, na compatibilidade entre o texto do art. 927, parágrafo único do Código Civil e a diretriz evolutiva consagrada no princípio protetivo (art. 7º, caput, da Constituição Federal), conforme se infere de sua transcrição: 

37. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA NO ACIDENTE DE TRABALHO. ATIVIDADE DE RISCO.

Aplica-se o art. 927, parágrafo único, do Código Civil nos acidentes do trabalho. O art. 7º, XXVIII, da Constituição da República, não constitui óbice à aplicação desse dispositivo legal, visto que seu caput garante a inclusão de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.

Na jurisprudência, a corrente em apreço encontrou, igualmente, grande recepção e muitos julgados proferidos nos últimos anos vêm consagrando de modo expresso o reconhecimento da responsabilidade objetiva a depender tão somente da demonstração em concreto da presença do trinômio dano-resultado-nexo de causalidade naquelas atividades empresariais a envolverem riscos maiores do que os suportados em condições normais.[37]

Há de se registrar, no entanto, que alguns julgados, a pretexto de aplicar o art. 927, parágrafo único do Código Civil, continuam a perscrutar a presença dos elementos subjetivos  ora sob o entendimento de que o dispositivo em referência teria, em verdade,  consagrado a figura da “culpa presumida” dos empregadores pelos infortúnios ocorridos em seus estabelecimentos, ora mantendo-se atrelados à responsabilidade aquiliana, muito embora invoquem o referido dispositivo legal.[38]

Efetivamente, a corrente a propalar a aplicabilidade do art. 927, paragrafo único, do Código Civil às hipóteses de infortúnio laboral ocorridas nas atividades naturalmente  dotadas de risco à vida e à integridade física dos obreiros, representa significativo avanço em relação àquela linha de entendimento a enxergar no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal um óbice intransponível para a responsabilidade objetiva dos empregadores pelos acidentes de trabalho.

De fato, tal linha de entendimento não só tem a virtude de extrair do conjunto dos princípios constitucionais aplicáveis aos trabalhadores e à generalidade dos cidadãos o sentido tutelar que inspira a regulamentação da infortunística laboral e legitima a aplicabilidade do art. 927, parágrafo único do Código Civil a tais supostos, como também permite classificar a natureza da responsabilidade (objetiva ou subjetiva) em função dos riscos envolvidos na atividade empresarial, permitindo, desse modo, a convivência em abstrato do art. 7º, XXVIII, da Carta Magna com aquele dispositivo infraconstitucional.

No entanto, em que pese o avanço da corrente ora estudada nesse sentido, ela   não considera o desequilíbrio labor-ambiental como um fator apto a ensejar, de per se, a responsabilidade objetiva dos organizadores dos fatores de produção pelos acidentes do trabalho, a teor do art. 225, § 3º, da Constituição Federal c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, limitando-se a reconhecê-la tão somente naquelas hipóteses em que há um “risco especial” inerente às atividades regularmente desempenhadas pelos empregadores.

A importância da distinção ora formulada reside na possibilidade extremamente palatável de que os desequilíbrios provocados pelos empregadores no meio-ambiente do trabalho – a caracterizar o conceito de “poluição” formulado no art. 3º, III, da Lei nº 6.938/81 – venham a ocasionar acidentes de trabalho e doenças profissionais e ales equiparadas , mesmo naquelas situações em que as atividades empresariais não envolvam, por sua natureza,  os “riscos especiais” contemplados pelo art. 927, parágrafo único do Código Civil.

É exatamente nesse sentido que a terceira corrente vem acrescer à temática em referência uma possibilidade adicinal de incidência da responsabilidade objetiva pelos danos decorrentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, sem comprometer o convívio  em abstrato das três hipóteses ora contempladas no ordenamento jurídico.

2.3.3. A terceira corrente. Responsabilidade objetiva. Aplicação do art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 e sua coexistência em abstrato com os demais regimes.

Conforme já visto alhures, há atividades profissionais que não trazem consigo aqueles “riscos especiais” exigidos pelo art. 927, parágrafo único do Código Civil para a incidência do regime da responsabilidade objetiva. Não obstante, os infortúnios laborais ocorridos nesses misteres podem ter como origem desequilíbrios labor-ambientais ocasionados pelo empregador, cuja subsistência acarreta ameaças à vida e à integridade física dos obreiros.

Tais situações - excluídas, a princípio, do âmbito de incidência do sobredito dispositivo legal – encontram ampla tutela no direito fundamental ao meio-ambiente equilibrado, contemplado no art. 225 da Constituição Federal, que atrai, em razão da incidência do § 3º do referido dispositivo constitucional c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 e do princípio do “poluidor-pagador”, o regime da responsabilidade objetiva para as hipóteses em apreço.[39]

A sistemática em apreço, muito embora seja mais abrangente em relação àquelas previstas no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal e no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, não exclui a aplicabilidade em tese dos dois dispositivos, e nem tampouco do art. 225, § 3º, da Carta Magna c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81. Nesse particular, a coexistência dos três regimes ora apreciados no ordenamento jurídico e a presença, no texto constitucional, de princípios que conferem respaldo a ambos, enseja a incidência do postulado hermenêutico da concordância prática (também conhecido por “unidade da constituição”), cuja diretriz prima, justamente, pela conciliação recíproca dos postulados constitucionais e pela impossibilidade de supressão em abstrato de uns em razão de outros.[40]

Tal conciliação ocorrerá, na prática, a partir da análise das nuances fáticas presentes nos casos concretos. São elas que serão levadas em conta pelo intérprete/aplicador  para definir se a hipótese sob análise enseja a responsabilidade subjetiva do empregador com arrimo no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, ou se há risco inerente à atividade profissional ou poluição labor-ambiental a atrair a aplicação da responsabilidade objetiva estatuída, respectivamente, no art. 927, parágrafo único, do Código Civil e no art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.[41]  

Uma vez formulada tal assertiva, resta a dúvida: quais as premissas que orientarão o intérprete/aplicador do direito na tarefa de analisar os casos concretos de acidentes de trabalho e doenças profissionais e de definir o regime da responsabilidade civil aplicável à hipótese? É justamente a tal indagação que se pretende responder nas linhas seguintes.

Para tanto, a explanação a ser formulada terá como base as definições formuladas por Guilherme Guimarães Feliciano a respeito da “causalidade tópica” e da “causalidade sistêmica”e reforçadas pelo magistério conjunto de Angelo Antônio Cabral e Eduardo Alexandre da Silva, bem como de Júlio César de Sá da Rocha, autores estes que se filiam à corrente ora exposta.[42]

2.3.3.1. A causalidade sistêmica e a responsabilização objetiva com arrimo no art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.

Toda atividade humana engendra riscos a um ou mais bens jurídicos. Os riscos serão  juridicamente aceitáveis ou inaceitáveis em função (i) do juízo valorativo formulado pela sociedade a respeito das ameaças, (ii) de sua prejudicialidade aos objetos tutelados pelo ordenamento e (iii) de sua evitabilidade em abstrato.

Tal constatação originou a distinção, originalmente formulada no direito penal, entre o “risco permitido” e o “risco proibido”. Assim, enquanto aquele primeiro configura o risco tolerado pelo ordenamento jurídico, que não integra o objeto de uma determinada norma impeditiva e que, por isso mesmo, permite sua assunção em concreto pelos cidadãos, este último, por força de comandos legais objetivos e específicos, não pode ser assumido pelos destinatários da vedação.[43]     

Pois bem. Diante disso, indaga-se: a poluição do meio ambiente do trabalho, nos termos objetivamente definidos pelo art. 3º, III, da Lei nº 6.938/81, configura um risco permitido ou proibido? Dito em outros termos, é lícito ao organizador dos locais de trabalho  ameaçar a higidez física e psíquica dos obreiros por intermédio de uma ação ou omissão que esteja a causar desequilíbrios labor-ambientais?

A resposta é, evidentemente, negativa. De fato, o conteúdo institucional subjacente ao art. 225, caput, da Constituição Federal e ao art. 3º da Lei nº 6.938/81 -  lido no contexto da organização do trabalho -  impõe aos empregadores os deveres objetivos de evitar a implementação de medidas que resultem no desequilíbrio do meio ambiente laboral, de modo a ocasionar potenciais danos à integridade física dos obreiros (poluição) e de agir no sentido de eliminar os fatores que porventura estejam concorrendo para tal degradação.

Pode-se dizer, portanto, que a poluição do meio ambiente do trabalho é um risco proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Exatamente por essa razão, a responsabilidade pelos acidentes de trabalho decorrentes de tal espécie de degradação será aferida pela averiguação, em concreto, em torno da existência ou não de um desequilíbrio labor-ambiental provocado por ação ou omissão do empregador e do nexo de causalidade entre este último e o resultado lesivo, não havendo razão para perquirir-se, portanto, o elemento subjetivo do empregador-poluidor ou de seus prepostos (culpa e dolo), sendo esse, exatamente, o sentido subjacente ao art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.[44]

Com efeito, desequilíbrios labor-ambientais são ocasionados por fatores inerentes à organização inadequada dos espaços de trabalho por parte dos empregadores que, por não observarem as cautelas necessárias à preservação da higidez física e psíquica dos obreiros, criam ameaças a esta última, mesmo quando a atividade corriqueira do estabelecimento não envolva riscos inerentes, tal como exigido, em abstrato, pelo art. 927, parágrafo único, do Código Civil.[45]

Imagine-se, como exemplo de tal situação, um escritório de contabilidade  em que os trabalhadores  operam ao lado de uma central de ar-condicionado instalada pela direção do estabelecimento, cujo ruído extrapola os limites toleráveis pelo ouvido humano de modo a comprometer, a longo prazo, a audição daqueles que ali operam. Em tal hipótese, a atividade desenvolvida pela empresa (realização de perícias contábeis e cálculos) não traz consigo o risco de surdez. No entanto, o empregador, ao instalar  e manter a referida central de ar-condicionado, ocasionou desequilíbrio no meio-ambiente do trabalho, de modo a criar, através de poluição sonora,  risco à higidez física de seus empregados.

Ainda como exemplo de tal sutuação, tem-se a hipótese da empresa de vigilância que guarnece o uniforme de seus empregados com sapatos de solado metálico, criando para eles um risco não necessariamente inerente àquela atividade, qual seja, o de que os referidos trabalhadores, ao efetivarem rondas em terrenos descampados, sejam atingidos por descargas elétricas naturais (raios).

Há, também nessa situação, a presença de fator de risco não contemplado originalmente pelo art. 927, parágrafo único do Código Civil, pois a morte ou a perda de funções   por exposição a descargas elétricas naturais é uma ameaça não inerente à atividade de vigilante.  No caso ilustrativo, o sinistro só ocorreu porque o empregador, ao fornecer sapatos com solado metálico, criou um novo fator de risco, de modo a ocasionar desequilíbrio no meio-ambiente laboral e a comprometer, por isso mesmo, a integridade física e a vida de seus subordinados, ensejando, por essa razão, a aplicação do art. 225, § 3º da Constituição Federal c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.913/81.   

E, por fim, há – ainda como exemplos de riscos não contemplados pelo art. 927, parágrafo único, do Código Civil – as situações de assédio moral organizacional, quando a empresa institucionaliza pressões constantes sobre seus funcionários com vistas à colimação de alguma finalidade (vg: obtenção de metas, adesão a planos de demissão voluntária, etc.) vindo a criar no meio-ambiente de trabalho fator de desequilíbrio organizacional a ocasionar uma série de doenças psicossomáticas, tais como depressão, síndrome do pânico, fobias, que, levadas ao extremo, podem conduzir ao suicídio.[46]

Não se pode dizer, por evidente, que empresa alguma, seja ela de qual ramo for, tem como risco inerente às suas atividades a geração em massa de doenças psiccosomáticas decorrentes de assédio moral. Por essa razão, somente o enquadramento de tal modalidade de poluição labor-ambiental nas hipóteses contempladas pelo art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 é capaz de ensejar a responsabilização objetiva dos empregadores pelos danos à higidez física e psíquica ocasonados pelos empregadores nessas situações. 

Em suma: quando a organização inadequada dos locais de trabalho ocasiona acidentes laborais, está-se diante da figura da causalidade sistêmica, assim denominada justamente porque compreende os infortúnios decorrentes da sistematização deficiente dos fatores de produção que, em tais hipóteses, não têm por origem situação isolada a afetar um ou outro obreiro, mas sim um desequilíbrio ambiental causado, preponderantemente, pela ação ou omissão do empregador.[47]

 Em tais supostos, a responsabilidade do empregador será, sempre, objetiva, a teor do art. 225, § 3º, da Constituição Federal c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, pois o sinistro ocorreu em função de sua inobservância ao dever objetivo de zelar pelo equilíbrio do meio ambiente laboral de modo a evitar a hipótese de poluição prescrita no art. 3º, III, daquele diploma legal.

2.3.3.2. O risco inerente à atividade. Aplicação do art. 927, parágrafo único do Código Civil.

Há também – é claro – aquelas hipóteses em que o risco a ensejar a responsabilização objetiva dos empregadores pelos acidentes do trabalho e doenças ocupacionais a eles equiparadas é inerente à própria atividade desempenhada pelo estabelecimento. Tais situações, já verificadas em abstrato no item 2.3.2, ensejam a aplicação do art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

São situações que, muitas vezes, decorrem de desequilíbrios labor-ambientais criados pelos empregadores, mas que mantêm relação direta e inafastável com a atividade econômica por eles desempenhadas. É justamente tal característica que distingue a responsabilidade objetiva calcada no art. 927, parágrafo único do Código Civil daquela estudada no item anterior, a contemplar, de modo mais amplo, toda a gama de infortúnios decorrentes de poluição no meio ambiente de trabalho.[48]

Como exemplo de tal situação, tome-se a hipótese dos bancos que, no contexto atual, encontram-se sujeitos a operações criminosas cada vez mais ousadas e violentas, a envolverem, muitas vezes, ameaças, assaltos com reféns, sequestro de funcionários, ações a envolverem fatalidades decorrentes do uso de armas de fogo, etc.  Pode-se dizer, portanto, que a atividade desempenhada por tais estabelecimentos (manuseio e guarda de valores) traz consigo o risco de que venham ocorrer acidentes laborais decorrentes tais sinistros, de modo a ensejar a incidência da responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.[49]

Nesse mesmo sentido, tem-se a situação das empresas concessionárias que transmitem energia elétrica das usinas às residências através de cabos de altíssima voltagem. Naturalmente, a atividade por elas desempenhada acarreta risco de morte e de severos danos à integridade física a seus trabalhadores, por maiores que sejam as cautelas tomadas pela empresa no fito de evitar a materialização de tais infortúnios.

Enfim, o art. 927, parágrafo único do Código Civil – que, efetivamente encontra guarida constitucional nos princípios da proteção dos trabalhadores (art. 7º, caput), da dignidade humana (1º, III), do valor social do trabalho (1º, IV), da prevenção dos riscos laborais (art. 7º, XXII), da função social da propriedade (art. 170, III) e do meio ambiente equilibrado (art. 225, caput) – contempla aquelas hipóteses em que o risco inerente às atividade desempenhadas pela empresa atrai a responsabilidade objetiva dos empregadores pelos danos acidenários ocorridos naqueles estabelecimentos.

E tal modalidade de responsabilidade objetiva convive harmonicamente em abstrato não só com aquela contemplada no art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, como também com a responsabilidade aquiliana estabelecida no art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, que encontra na causalidade tópica as situações concretas de incidência, conforme demonstrar-se-á no item subsequente. 

2.3.3.3. A causalidade tópica. Perquirição do dolo e da culpa do agente. Aplicação do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.

A causalidade tópica contempla aquelas situações em que o acidente do trabalho decorre de eventos não relacionados aos riscos da atividade assumidos pelo empregador e nem tampouco resultantes da organização dos fatores de produção. Dito em outros termos, integram tal classificação as hipóteses em que o sinistro tem como causa uma falha humana ou sistêmica atribuível a elementos não relacionados, em sua origem, aos locais de trabalho.

Pode-se dizer, portanto, que na causalidade tópica, o risco inerente à materialização de infortúnios é aquele assumido pela generalidade dos indivíduos - dentro ou fora dos ambientes laborais – em sua vivência cotidiana. Por isso mesmo, terá ela lugar nas hipóteses em que as possibilidades acerca da materialização do sinistro são as mesmas tanto nos locais de trabalho, quanto fora dele.[50]

Sendo assim, não se pode presumir, ao contrário das duas situações estudadas acima, que o sinistro decorreu da organização equivocada dos fatores de produção (art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81) ou de  risco inerente à atividade desempenhada pela empresa (art. 927, parágrafo único, do Código Civil). Em tais situações, para imputar alguma responsabilidade ao empregador, far-se-á necessária a perquirição em torno de seu dolo ou de sua culpa, para além do nexo de causalidade entre o dano experimentado pelo obreiro e a conduta ou omissão patronal, nos termos do clássico modelo aquiliano.[51]

Como exemplo de causalidade tópica, tome-se as hipóteses do empregado que, no trajeto percorrido a pé entre sua residência e a empresa, é atingido por veículo que invade a calçada, causando-lhe sérios danos físicos, ou a dos obreiros que, já no desempenho de suas atividades corriqueiras no local de trabalho, são atingidos de modo fatal pela queda de aeronave nas dependências da firma.

Nesses dois exemplos extremos, as fatalidades tiveram como causa duas situações trágicas que poderiam afetar a generalidade dos indivídios dentro ou fora de seus postos de trabalho. De fato, não se pode imputar ao empregador a assunção dos riscos inerentes a um atropelamento ocorrido fora das dependências da empresa, ou à queda de uma aeronave nas instalações desta última e nem tampouco afirmar que a materialização de tais sinistros é decorrência da organização desequilibrada do ambiente laboral.

A depender do caso, o empregador pode até ter alguma responsabilidade pelo sinistro. No entanto, a perquisição em torno de tal dado dependerá, nessas hipóteses, da verificação em concreto dos elementos subjetivos “dolo” e “culpa”, não sendo aplicável, em tais supostos, o regime objetivo contemplado pelo art. 927, parágrafo único do Código Civil e pelo art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.     

Tem-se, pois, nas situações a denotarem a causalidade tópica, as hipóteses em que o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal será aplicável em sua plenitude. Convive o referido dispositivo, portanto, em situação de concordância prática com os demais preceitos constitucionais que respaldam a responsabilidade objetiva preconizada pelo art. 927, parágrafo único do Código Civil e pelo art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, sem que haja a preponderância em abstrato de uns em relação aos outros.

Vê-se, desse modo, que a aplicabilidade de um ou de outro regime (responsabilidade subjetiva ou objetiva) dependerá das nuances do caso concreto, cabendo, portanto, ao intérprete/aplicador tomar ciência integral delas, no fito de verificar, ao fim e ao cabo, qual a origem do dano (causalidade sistêmica, risco da atividade ou causalidade tópica) e qual o dispositivo de regência da situação (art. 225, § 3º, da Constituição Federal c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81, art. 927, parágrafo único, do Código Civil ou art. 7º, XXVIII, da Carta Magna).  

2.3.3.4. Conclusão do tópico. Quadro sinótico da responsabilidade civil pelos danos ao meio-ambiente do trabalho.

Diante do que foi exposto até então, é possível afirmar que a questão atinente à responsabilidade civil pelos danos ocasionados ao meio ambiente do trabalho, com destaque para as questões acidentárias, encontra-se, na atualidade, submetida ao seguinte regramento, a depender das nuances do caso concreto:

NATUREZA FÁTICA DO DANO

FUNDAMENTO LEGAL

TIPO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Causalidade Tópica.

(Danos que não decorrem da organização desequilibrada do local de trabalho e não integram os riscos inerentes à atividade desempenhada pelo empregador)

Art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal.

Subjetiva.

Causalidade Sistêmica.

(Danos que muito embora não integrem, necessariamente, os riscos inerentes à atividade desempenhada pelo empregador ,decorrem da organização desequilibrada do local de trabalho).

Art. 225, § 3, da Constituição Federal  c/c o Art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81.

Objetiva.

Risco da atividade.

(Danos que ntegram os riscos inerentes à atividade desempenhada pelo empregador ).

Art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

Objetiva.

 Em suma, a responsabilização objetiva ou subjetiva pelos danos ao meio-ambiente laboral dependerá das circunstâncias fáticas apreciadas em concreto pelos intérpretes/aplicadores, a denotarem as hipóteses de causalidade tópica ou sistêmica, ou as situações em que há efetiva à existência de riscos inerentes à atividade desempenhada regularmente pelo empregador. 

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Sobre o autor
Paulo Roberto Lemgruber Ebert

Advogado. Doutorando em Direito do Trabalho e da Seguridade Social na Universidade de São Paulo-USP. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EBERT, Paulo Roberto Lemgruber. O meio ambiente do trabalho.: Conceito, responsabilidade civil e tutela. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3377, 29 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22694. Acesso em: 20 abr. 2024.

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