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Desnecessidade de produção de prova pericial nas lides que pleiteiam fornecimento de medicamentos

09/11/2012 às 08:47
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Os documentos produzidos pelo médico responsável que assiste ao autor da ação são suficientes para deferir o fornecimento, pelo Estado, de remédio pretendido.

 

1. INTRODUÇÃO

Com o presente artigo pretendo rebater comuníssimo argumento lançado pelo Estado em lides que postulam fornecimento de medicamentos por este: a necessidade de dilação probatória, com produção de prova pericial, a fim de se aferir a real necessidade do fornecimento do remédio pretendido.


2. DO DIREITO À SAÚDE INSCULPIDO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição Federal é clara e direta ao estabelecer, em seu artigo 23, II, a competência comum de União, Estados, Municípios e Distrito Federal para cuidar da saúde, cumprindo tal dever (artigo 196), sendo, por outro lado, direito social de todos (artigo 6º e o mencionado 196, ambos da Lei Maior).

Para o deslinde de tal dever e o exercício de tal direito, a própria Carta Magna instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), financiada, dentre outras fontes, por recursos da recursos da Seguridade Social e dotações orçamentárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Em sede infraconstitucional, o artigo 2º, da Lei n. 8080/90, assim determina:

“A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

Em síntese a respeito, como bem prelecionou o eminente Ministro Luiz Fux, quando judicava no Superior Tribunal de Justiça:

“O  Sistema  Único  de  Saúde    SUS  visa  a  integralidade  da assistência  à  saúde,  seja  individual  ou  coletiva,  devendo  atender  aos  que  dela necessitem  em  qualquer  grau  de  complexidade,  de  modo  que,  restando  comprovado  o acometimento  do  indivíduo ou  de um grupo  por  determinada  moléstia, necessitando  de determinado  medicamento  para  debelá-la,  este  deve  ser  fornecido,  de  modo  a  atender ao  princípio  maior,  que  é  a  garantia  à  vida  digna” [1] 


3. DA POSTULAÇÃO DE PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL, PELO ESTADO, AO SE MANIFESTAR EM FEITOS QUE BUSCAM FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS

Ora, sendo um direito fundamental do ser humano, direito de todos e dever do Estado (aqui dito de forma “lato sensu” abarcando União, Estados, Municípios e Distrito Federal), por si só desautoriza o argumento de dilação probatória prévia, a fim de, por prova pericial, ser verificada a necessidade ou não do fornecimento dos medicamentos postulados pelo jurisdicionado.

Com efeito, quem bate às portas dos fóruns e tribunais buscando determinado medicamento é porque o mesmo, sem dúvida, tem alto valor, inacessível à enorme parcela dos brasileiros, ou mesmo sequer existe no Brasil, sendo imprescindível (portanto, absurdamente cara) sua importação.

E, obviamente, o jurisdicionado tem pressa, pois necessita do mesmo para sobreviver, não postulando um luxo ou um mimo a lhe aformosear a vida.

Ante tal situação fática, é descabido o pleito de prova pericial, pois o direito à vida (artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal) e o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito que vivemos (artigo 1º, III, da Carta Magna) têm tamanha força e preponderância que, convencido o magistrado da real necessidade do fornecimento dos medicamentos postulados pelo autor na exordial, a mesma nem deveria ser cogitada.

Certo seria, ademais, que o Estado sequer lançasse mão de tal pleito – sem dúvida procrastinatório - e, nestas situações, “data venia” cruel, pois tem, do outro lado da demanda, uma pessoa, receptor da norma constitucional, que postula determinado remédio para lograr a cura ou a sobrevivência.

Afinal, também, visando o convencimento do magistrado, destinatário final da prova, o requerente acosta à petição inicial laudos, relatórios e atestados médicos – ou seja, da lavra de profissional habilitado para tanto, inscrito no Conselho Regional de Medicina e que acompanha o tratamento de seu paciente – garantindo a imprescindibilidade do medicamento pleiteado, devendo tal prova documental pré-constituída ser bastante.

Não se olvide, ademais, que o artigo 420, II, do Código de Processo Civil, é claro ao determinar o indeferimento de perícia quando “for desnecessária em vista de outras provas produzidas”, como acima explanado.

No mesmo sentido, nossa melhor doutrina, como giza a respeito Humberto Theodoro Júnior:

“Por se tratar de prova especial, subordinada a requisitos específicos, a perícia só pode ser admitida, pelo juiz, quando a apuração do fato litigioso não se puder fazer pelos meios ordinários de convencimento. Somente haverá perícia, portanto, quando o exame do fato probando depender de conhecimentos técnicos ou especiais e essa prova, ainda, tiver utilidade, diante dos elementos disponíveis para exame”. [2]

Entendo que somente em caso de manifesta fraude ou patente impropriedade do medicamento postulado, tal dilação teria cabimento, com produção de prova pericial.

Com efeito, assim delibera, também, a melhor jurisprudência, como se verifica dos arestos abaixo transcritos:

Recurso ex officio e Apelação Cível. Mandado de Segurança. Fornecimento de medicamentos prescritos aos impetrantes,supostos portadores de psoríase. Segurança concedida na origem.Inadmissibilidade. Denúncias de fraude na propositura de ações similares à presente que pendem sobre o subscritor da inicial. Necessidade, em caráter excepcional, de submissão dos impetrantes a perícia médica, a fim de determinar a real necessidade dos medicamentos. Dilação probatória incompatível com rito do mandado de segurança. Inadequação da via eleita.Extinção do processo, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 267, inc. VI, do CPC. Recursos providos. [3]

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. AUSÊNCIA DE PROVA DE ADEQUAÇÃO DOS MEDICAMENTOS RECEITADOS PARA TRATAMENTO DA DOENÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO DEMONSTRADO. O direito constitucional de acesso a medicamentos depende de comprovada necessidade, reconhecida por perícia médica realizada no juízo.O Mandado de Segurança não é via adequada para análise de controvérsia relacionada à obrigatoriedade de a autoridade pública fornecer os medicamentos pleiteados se, para tanto, faz-se necessária a dilação probatória. Apelação desprovida. [4]

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4. DA JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE RESSALTANDO A DESNECESSIDADE DE TAL PROVA PERICIAL

Portanto, o Poder Judiciário – esteio e garantidor do Estado Democrático de Direito – instado a se manifestar se posiciona, ressalvadas as situações excepcionais acima, de forma pacífica e enérgica repelindo a produção de prova pericial acerca da necessidade/adequação do medicamento cujo fornecimento se postula.

Confira-se, a respeito, as ementas abaixo transcritas, esgotando o tema:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PERÍCIA MÉDICA. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. A necessidade do medicamento pleiteado pelo autor vem corroborada em prova idônea, segundo orientação de profissional capacitado, não havendo falar em cerceamento de defesa em virtude do indeferimento da produção de prova pericial. Médico que acompanha o caso que tem melhores condições de indicar o tratamento adequado. Inexiste nos autos prova capaz de macular a idoneidade do profissional que assiste ao autor. NEGADO PROVIMENTO. EM MONOCRÁTICA. [5]

MEDICAMENTOS  Pretensão  de  fornecimento  gratuito. Direito  à  vida.  Dever  constitucional  do  Estado.  Indicação do  medicamento  que  melhor  atende  às  necessidades  do paciente  compete  ao  médico  que  o  assiste.  Aplicação  do art. 196 da  CF. Precedente do  STJ. Julgamento proferido por  decisão  monocrática,  nos  termos  do  art.  557  do  CPC. Recurso  improvido. [6]

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO ORDINÁRIA. CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A NECESSITADO. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA. DESNECESSIDADE. LEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO. Existindo documentação idônea, firmada por médico credenciado, onde descritas as moléstias das quais padece a enferma, apontando os medicamentos necessários, desnecessária a realização de perícia. Aplicação do art. 420, II, do CPC. O direito à saúde é assegurado a todos, devendo os necessitados receber do ente público o medicamento necessário. Aplicação do artigo 196 da Constituição Federal. O Município possui legitimidade passiva na demanda visando ao fornecimento de medicamento a necessitado, devendo responder pelo seu fornecimento. Posição do 11º Grupo Cível. Precedentes do TJRGS, STJ e STF. Agravo de instrumento a que se nega seguimento. [7]

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. ENTES POLÍTICOS - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. DIREITO AO RECEBIMENTO DE MEDICAMENTOS - REQUISITOS. PERÍCIA - DESNECESSIDADE. TUTELA ANTECIPADA - REQUISITOS. (...) 3. Para fazer jus ao recebimento de medicamentos fornecidos por entes políticos, deve a parte autora comprovar a sua atual necessidade e ser aquele medicamento requerido insubstituível por outro similar/genérico no caso concreto. 4. Desnecessária a realização de perícia quando as provas acostadas apresentam-se suficientes para o convencimento quanto à real necessidade de uso do medicamento pleiteado. 5. Presente a conjugação dos legais pressupostos a tanto, impõe-se a concessão de tutela antecipada em ação ordinária que visa a percepção de medicamentos especiais. [8]

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE ANTECIPOU OS EFEITOS DA TUTELA E DETERMINOU O FORNECIMENTO GRATUITO DO MEDICAMENTE NECESSÁRIO AO TRATAMENTO DE SÍNDROME DE DOWN E RINITE ALÉRGICA A MENOR. ALEGAÇÃO DE IMPRESCINDIBILIDADE DA REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA. DESNECESSIDADE NESTA FASE DE COGNIÇÃO. DOCUMENTOS QUE EVIDENCIAM O ‘FUMUS BONI IURIS’ E O ‘PERICULUM IN MORA’. (...) RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. [9]

DIREITO CIVIL. AÇÃO COMINATÓRIA. NULIDADE DE SENTENÇA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. PERÍCIA DESNECESSÁRIA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO. INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS FINANCEIROS. PORTADOR DE NECESSIDADES URGENTES. 1. O JUIZ INDEFERIRÁ A PERÍCIA QUANDO FOR DESNECESSÁRIA EM VISTA DE OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS. 2. A RECEITA É SUFICIENTE PARA ATESTAR NECESSIDADE DO MEDICAMENTO SOLICITADO.3. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. [10]

AGRAVO DE INSTRUMENTO - FORNECIMENTO DIRETO DE MEDICAÇÃO NECESSÁRIA AO TRATAMENTO DE BENEFICIÁRIOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS - LEGITIMIDADE PASSIVA DOS ENTES FEDERADOS - REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA - DESNECESSIDADE. [11]


5. CONCLUSÃO

Assim, ressalvadas as excepcionalíssimas hipóteses de fraude ou evidente e provada inadequação do medicamento postulado, mister ressaltar a propriedade dos documentos produzidos pelo médico responsável que assiste ao requerente do feito e a suficiência destes a embasar o convencimento do magistrado para deferir, com base nos cânones constitucionais acima, o fornecimento, pelo Estado, de tal remédio pretendido.

Condicionar tal pleito à prévia dilação probatória, com realização de prova pericial, é, também como visto, desnecessário e, até mesmo, desumano, posto serem as demandas ora narradas a mais pura expressão da necessidade do amparo do Estado a seu súdito e da imprescindível aplicação dos ditames constitucionais, no momento mais delicado da existência de qualquer ser humano: a busca pela cura e pelo tratamento a lhe garantir vida e sobreviência digna.


Notas

[1] STJ,  1ª  Turma,  R.Esp.  684.646-RS, j. 05.05.2005, DJU 30.05.05, p. 247, Rel. Min. LUIZ FUX

[2] JUNIOR. Humberto Theodoro. “Curso de Direito Processual Civil”, Vol. I, 26ª edição, Rio de Janeiro, 1999, Ed. Revista Forense, p.479

[3] TJSP. Apelação 2423224220098260000 SP 0242322-42.2009.8.26.0000, Rel. Des. Rui Stoco, j. 01/08/2011, 4ª Câmara de Direito Público.

[4] TRF4, AC 7100 RS 0000158-97.2010.404.7100, Relator: CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, Data de Julgamento: 23/03/2010, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 22/04/2010

[5] TJRS, Agravo de Instrumento Nº 70014630818, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 24/03/2006

[6] TJSP, 11ª Câmara de Direito Público AC nº 990.10.447515-5 Rel. Desa. Maria Laura de Moura Assis Tavares, j.18.10.10

[7] TJRS. Agravo de Instrumento Nº 70047418116, Vigésima Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro, j. 09/02/2012

[8] TRF4. AC 424 SC 2009.72.00.000424-6, Rel. Des. Maria Lúcia Luz Leiria, j. 19/01/2010, Terceira Turma

[9] TJSC. AI 645138 SC 2011.064513-8, Rel. Des. José Volpato de Souza, j. 22/02/2012, Quarta Câmara de Direito Público

[10] TJDF. AC 20050111356327 DF , Rel. Des. Jesuíno Rissato, j. 11/10/2006, 5ª Turma Cível

[11] TRF3. AI 49649 SP 2008.03.00.049649-0, Rel. Des. Marli Ferreira, j. 14/04/2011, Quarta Turma

 
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Sobre o autor
José Menah Lourenço

Advogado, palestrante e parecerista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENÇO, José Menah. Desnecessidade de produção de prova pericial nas lides que pleiteiam fornecimento de medicamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3418, 9 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22978. Acesso em: 29 mar. 2024.

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