Para que se possa compreender as funções dos princípios no âmbito dos processos administrativos, deve-se iniciar o estudo com a já clássica distinção entre princípios e regras.
O primeiro ponto de destaque está na abrangência ou generalidade de conteúdo. Enquanto o princípio possui ampla abrangência, aplicando-se a vários ramos do direito e a hipóteses diversas, as regras jurídicas possuem abrangência, em geral, restrita a determinado ramo do direito e aplicação específica para a sua hipótese de incidência. Justamente por este motivo, enquanto para uma regra jurídica é possível determinar os casos de aplicação, para os princípios a regra seria a indeterminabilidade de aplicação.
O segundo ponto de destaque e certamente o mais relevante é a referente aos “conflitos” e “colisões”. Diante de um conflito de regras jurídicas, o intérprete está diante de uma regra de exclusão segundo a qual deverá verificar a aplicação da regra “a” ou da regra “b” (DWORKIN, 2007) (ALEXY, 2008:92). De outro lado, diante de um conflito principiológico, ou melhor colisão principiológica, o intérprete pode aplicar ambos os princípios, porém um deles deve ceder, contudo este não deixa de ser válido ou aplicável. Neste sentido, observe-se trecho da doutrina de Robert Alexy:
Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e de acordo com outro permitido – um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta (2008:93) (grifos nossos).
De fato, tanto os princípios como as regras poderiam enquadra-se no gênero normas jurídicas, estando as regras no plano de validade (regra “a” X regra “b”), tendo por consequência a exclusão de uma delas) e os princípios no plano da ponderação, cuja consequência seria a utilização dos princípios conforme o grau de preponderância de cada um deles (CARVALHO FILHO, 2006:15).
Esta característica especial dos princípios os tornam elementos de relevância fundamental também no âmbito do processo administrativo.
A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42), agora denominada de Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, dispõe em seu art. 4º que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. No mesmo sentido o art. 126 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) afirma que “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”.
Aqui já se percebe uma das funções importantes dos princípios administrativos, qual seja: a função supletiva ou integradora. Vê-se que na lacuna legal, os princípios auxiliarão o julgador/intérprete na aplicação da lei. Ao lado da função supletiva, os princípios são fundamentais na própria interpretação da norma, ou seja, mesmo diante de uma regra expressa, o princípio cumprirá a sua função interpretativa da regra jurídica.
Deve-se lembrar também que a regra tem fundamento em um ou mais princípios do direito administrativo. Um exemplo claro é a regra que determina a necessidade de concurso público para o provimento de cargos na administração pública que está baseada nos princípios da impessoalidade, publicidade, supremacia do interesse público sobre o privado, etc. Trata-se da função fundamentadora dos princípios de direito administrativo. É justamente com base nesta função dos princípios administrativos que muitos doutrinadores conceituam os princípios de direito administrativo como “postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da administração pública”, “cânones pré-normativos” (CARVALHO FILHO, 2006:15).
De fato, além do reconhecimento da natureza normativa dos princípios pela doutrina e pela jurisprudência, reconhece-se também a sua eficácia mais intensa do que a da própria regra. O princípio possui em sua origem os próprios valores da sociedade, congregando determinação e valor. Esta é a lição de José Ricardo Cunha:
A grande virtude, pois, dos princípios é esta capacidade de condensar numa unidade operacional os aspectos axiológicos e deontológicos da normatividade jurídica, revelando que o dever ser das imperatividades do direito não pode ser dissociado de um núcleo ontológico que resguarde uma eticidade necessária à consecução dos fins do direito.
Assim, o comando (dever ser) não pode ser separado do valor que lhe justifica, impedindo que o direito seja reduzido à pura força ou violência institucional, muito embora não prescinda dela (2006:34).
No mesmo sentido, Marçal Justen Filho assim se manifesta:
Os princípios obrigam, talvez em termos mais intensos do que as regras. Já se disse que infringir um princípio é mais grave do que descumprir uma regra. Isso deriva de que o princípio é uma síntese axiológica: os valores fundamentais são consagrados por meio de princípios que refletem as decisões fundamentais da Nação (2005:52).
Vê-se que os princípios do direito administrativo não podem ser considerados como propostas irrelevantes ou sem conteúdo obrigatório, mas devem ser vistos como balizadores interpretativos, fundamentos legais e de conteúdo integrativo essenciais para a correta compreensão do Direito Administrativo.
Apresentas estas considerações, cabe tecer alguns comentários sobre o processo administrativo. Fernanda Marinela conceitua o processo administrativo como “o instrumento de legitimação da conduta dos Administradores, para documentar e padronizar as atividades administrativas” (2010:266). Já Maria Sylvia o conceitua de forma ampla como “a série de atos preparatórios de uma decisão final da Administração” (2010:623).
A doutrina não apresenta divergência quanto à aplicabilidade dos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e da celeridade processual no âmbito dos processos administrativos (MARINELA, 2010:970-983) (DI PIETRO, 2010:627-638). De fato, conforme destacado acima, a aplicabilidade dos princípios é extremamente abrangente e não é diferente quando o tema tratado é o processo administrativo.
Chamado por parte da doutrina de superprincípio, o devido processo legal foi especialmente tratado na Constituição Federal de 1988. Embora estivesse previsto desde a Constituição de 1824, com o “novo” diploma constitucional a sua aplicação passou a não mais se restrita apenas ao processo judicial (MARINELA, 2010:971). Nos termos do art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Corolário do princípio da legalidade, o seu conceito básico está ligado à necessidade de que o processo deve seguir o que determina a lei, afastando a possibilidade de decisões arbitrárias e buscando tornar a relação entre o particular e a administração mais igualitária. Guarda uma importante relação também com o próprio conceito de Estado Democrático de Direito e, portanto o Estado deve seguir o devido processo legal não apenas como uma mera faculdade, mas sim como um dever.
Somente a título exemplificativo, cite-se recente manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema:
CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. SUSPENSÃO DE BENEFÍCIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ALEGADA OFENSA AO ART. 5º, XXXV, LIV e LV. OFENSA REFLEXA. (...) II - Como tem consignado o Tribunal, o princípio do devido processo legal, de acordo com o texto constitucional, também se aplica aos procedimentos administrativos. Precedentes. III - Agravo regimental improvido. (STF, Processo: RE-AgR 552057; RE-AgR - AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI; Unânime. 1ª. Turma, 05.05.2009) (grifos nossos).
Também ligado ao princípio do devido processo legal estão os princípios do contraditório e da ampla defesa, previstos no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal que assim dispõe: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Os princípios surgem também como novidade no âmbito do processo administrativo com a indicação expressa da Constituição de 1988. Na Lei nº 9.784/99, há também referência expressa aos princípios do contraditório e da ampla defesa no seu artigo segundo, determinando a sua obrigatória aplicação por parte da Administração Pública. Marinela chama o princípio do contraditório como a democracia no processo, direito à participação (2010:972).
Numa visão mais simplista o princípio do contraditório está ligado à possibilidade de resposta, porém a doutrina deixa mais clara esta concepção:
O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação (DI PIETRO, 2010:631).
A ampla defesa pode ser associada à possibilidade de utilização de todos os meios de defesa em direito admitidos. Marinela destaca alguns pontos que seriam indispensáveis: caráter prévio da defesa com procedimentos e penas preestabelecidas; direito à informação geral, direito de vistas, direito de cópias; direito de produção de provas e viabilização de defesa técnica (2010:973-977).
Também com o caráter exemplificativo, cite-se a Súmula Vinculante nº 3:
Nos processos perante o tribunal de contas da união asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.
É importante ainda tecer algumas considerações sobre o princípio da celeridade, atualmente expresso na Constituição Federal, no art. 5º, inciso LXXVII (Emenda 45): “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Regra criada no âmbito da Reforma do Judiciário, a efetiva aplicação deste princípio apresenta-se como um desafio, tanto para a Administração Pública quanto para o Poder Judiciário. De fato, além da expressa previsão do princípio, uma reestruturação na legislação talvez fosse necessária para afastar determinados procedimentos ainda muito burocratizados e trazer a efetividade necessária. Para demonstrar a importância do referido princípio, basta imaginar que nenhum outro princípio teria relevância em face de um processo moroso e que nunca chegasse ao fim, ou seja, sem a celeridade necessária à efetivação da decisão administrativa.
Todos os princípios apresentados acima devem fazer parte do processo administrativo, especialmente nos casos em que o objeto do processo é a constituição de um crédito da Administração Pública e nas hipóteses de créditos não tributários esta regra não pode ser afastada.
É o regular processo administrativo de constituição do crédito não tributários que dá a ele os atributos de liquidez e certeza. Neste sentido, o crédito a ser satisfeito precisa ser determinado e apresentar o seu valor exato. No mesmo sentido, não pode haver dúvidas em relação a sua existência.
Interessante notar que o Código de Processo Civil apresentava os requisitos de liquidez, certeza e exigibilidade como se fossem dos próprios títulos executivos. Após uma série de críticas, a falta de técnica foi corrigida. Dinamarco, assim se manifestava:
Andou mal a lei do processo ao falar em título líquido certo e exigível (art.586). As qualidades de liquidez, certeza e exigibilidade não se referem ao título em sentido formal, ao ato jurídico dotado de eficácia executiva , mas ao seu conteúdo, ou seja , ao direito subjetivo atestado (1997:487) (grifos nossos).
E o Código de Processo Civil foi reformado neste ponto:
Art. 586. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título líquido, certo e exigível.
Art. 586. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.
A Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, apresenta as regras iniciais sobre a Dívida Ativa não tributária. Neste sentido, deve-se observar o seu artigo 39:
Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.
§ 1º - Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza, e a respectiva receita será escriturada a esse título.
§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais.
§ 5º - A Dívida Ativa da União será apurada e inscrita na Procuradoria da Fazenda Nacional (grifos nossos).
Vê-se que a apuração da liquidez e certeza volta a aparecer como requisito do crédito para que ele seja considerado apto à inscrição em Dívida Ativa. Outro ponto de fácil percepção é o caráter não exaustivo da definição de Dívida Ativa não tributária uma vez que o próprio legislador acaba o seu rol com um tipo aberto, “outras obrigações legais”. De qualquer forma, pontos principais devem estar sempre presentes, quais sejam, certeza; liquidez e exigibilidade do crédito.
Note-se ainda o importante papel desempenhado pela Advocacia Pública, pois cabe a ela apurar e inscrever os créditos em Dívida Ativa. O Advogado Público é o responsável pela apuração final do processo administrativo de constituição do crédito, verificando se foram respeitados todos os princípios acima analisados, especialmente os relacionados à legalidade do procedimento de constituição e seus corolários, ampla defesa e contraditório. De outro lado, a atuação da Advocacia Pública pode se dar também de forma preventiva, quando apresenta a sua manifestação durante o curso do processo de constituição do crédito. Esta manifestação pode se dar por expressa disposição normativa, como etapa obrigatória do processo de constituição, ou tão somente para sanar dúvida jurídica devidamente fundamentada.
A atuação da Advocacia Pública a análise da regular constituição do crédito pode ser prévia ou apenas no momento da inscrição em dívida ativa, mas jamais poderá se dar em desacordo com os princípios do Direito Administrativo, sob pena de que os vícios constantes no processo acabem por fulminar o crédito.
É bem verdade que a Lei nº 4.320/1964 cita apenas a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, porém, sabe-se que no âmbito das autarquias e fundações públicas federais cabe à Procuradoria-Geral Federal a competência para a apuração de liquidez e certeza dos créditos. Neste sentido, segue o artigo 10 da Lei nº 10.480, de 2 de julho de 2002, in verbis:
Art. 10. À Procuradoria-Geral Federal compete a representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais, as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial (Lei nº 10.480, de 2 de julho de 2002).
Em complemento à Lei nº 4.320/64, para a perfeita compreensão do tema, deve ser citada também a Lei de Execuções Fiscais, especialmente o seu artigo 2º:
Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
§ 1º - Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.
§ 2º - A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato.
§ 3º - A inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito e suspenderá a prescrição, para todos os efeitos de direito, por 180 dias, ou até a distribuição da execução fiscal, se esta ocorrer antes de findo aquele prazo.
§ 4º - A Dívida Ativa da União será apurada e inscrita na Procuradoria da Fazenda Nacional (grifos nossos).
Interessante destacar que o §3º acima citado, que relaciona a noção de inscrição ao ato de controle administrativo da legalidade, reafirma a linha argumentativa aqui apresentada, destacando a proteção aos princípios do Direito Administrativo na análise dos créditos constituídos pela Administração. No mais, verifica-se que a Lei de Execuções Fiscais reitera a necessidade de que o crédito seja líquido e certo.
Apresentadas todas estas noções, é fundamental que sejam verificados alguns julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tema:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CRÉDITO TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO PENDENTE.
É vedado o ajuizamento de execução fiscal antes do julgamento definitivo do recurso administrativo. O recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário, conforme previsto no art. 151, III, do CTN. Dessa forma, enquanto pendente o julgamento definitivo do recurso na esfera administrativa, inviável o ajuizamento de execução fiscal para a cobrança de crédito cuja exigibilidade está suspensa. Precedentes citados: REsp 1.259.763-PR, DJe 26/9/2011; EREsp 850.332-SP, DJe 12/8/2008, e AgRg no AREsp 55.060-PR, DJe 23/5/2012. (STJ; AgRg no AREsp 170.309-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 4/10/2012) (grifos nossos).
Com este julgado, percebe-se a necessidade de que o devido processo legal administrativo seja respeitado. Embora o julgado refira-se a crédito tributário, a análise não é diversa para a hipótese de constituição de crédito não tributário. Somente com a conclusão do processo administrativo, garantindo-se ao administrado a possibilidade de apresentação de defesa e a utilização de todos os recursos cabíveis, o crédito pode ser efetivamente constituído e, se não for pago, devidamente inscrito em dívida ativa. Assim, a própria Administração não poderia considerar o crédito como constituído. No mesmo sentido, o Advogado Público que analisou o crédito não poderia ter realizado a inscrição em dívida ativa de crédito que ainda estava sendo objeto de recurso administrativo não definitivamente julgado.
No exemplo que segue abaixo, observa-se um caso em que não houve respeito ao contraditório e a ampla defesa uma vez que teria havido vício de notificação do administrado:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. (....) NULIDADE DA NOTIFICAÇÃO POR EDITAL. ALEGAÇÃO DE QUE A NOTIFICAÇÃO OCORREU EM CONFORMIDADE COM A LEGISLAÇÃO LOCAL. SÚMULA 280/STF. (...)
2. No caso concreto, a Corte estadual afirmou que a nulidade da notificação do sujeito passivo realizada por edital, porquanto não esgotadas as outras modalidades de notificação, pode ser constatada de plano dos autos do processo administrativo juntado pela empresa executada, dispensando, pois, dilação probatória. A revisão desse entendimento exige o reexame do acervo fático-probatório considerado pelo Tribunal de origem, o que é inviável pela via do recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ.
3. Não é possível conhecer da alegação da recorrente de que somente realizou a notificação por edital depois de atendidas as condições exigidas pela legislação estadual, pois pressupõe a análise da aludida lei local, o que é vedado na instância especial ante o óbice da Súmula 280/STF. (...) (STJ, AgRg no REsp 1301928 / AL; 2012/0000024-1; BENEDITO GONÇALVES; PRIMEIRA TURMA; DJe 19/10/2012) (grifos nossos).
Por fim, cite-se um julgado que apresenta um posicionamento que, embora venha se tornando comum, não se pode concordar:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. COBRANÇA DE VALORES RELATIVOS À CONCESSÃO FRAUDULENTA DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. IMPOSSIBILIDADE.
O processo de execução fiscal não é o meio adequado para a cobrança judicial de dívida que tenha origem em fraude relacionada à concessão de benefício previdenciário. O valor referente ao benefício concedido de forma fraudulenta não tem natureza de crédito tributário e não permite sua inscrição na dívida ativa. O conceito de dívida ativa (tributária ou não tributária) envolve apenas os créditos certos e líquidos, conforme dispõem os arts. 2º e 3º da Lei n. 6.380/1980 e 39, § 2º, da Lei n. 4.320/1964. Ausente a liquidez e certeza em relação aos valores cobrados, impossível sua cobrança por meio de execução fiscal. Precedentes citados: AgRg no AREsp 171.560-MG, DJe 21/8/2012; AgRg no AREsp 16.682-RS, DJe 16/3/2012; AgRg no REsp 1.225.313-RS, DJe 18/4/2011. (STJ, AgRg no AREsp 188.047-AM; Benedito Gonçalves; Julgado em 4/10/2012; PRIMEIRA TURMA) (grifos nossos).
Da leitura da ementa, percebe-se que há trechos que estão em perfeito acordo com os argumentos apresentados neste artigo, porém a conclusão a que se chega é absolutamente contrária.
Primeiro é importante destacar os pontos de concordância. Uma questão clara é a natureza do crédito decorrente de fraude relacionada à concessão de benefício previdenciário. De fato, não há que se falar em crédito tributário. Trata-se de valores que foram desviados dos cofres do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por meio de artifício fraudulento, não guardando qualquer relação com o conceito de tributo.
Outro ponto de concordância está no fato, por várias vezes destacado neste artigo, de que somente os créditos líquidos e certos podem ser passíveis de inscrição em dívida ativa.
Em divergência, há duas questões fundamentais. A primeira delas é o fato de que os créditos decorrentes de fraude em benefícios previdenciários não teriam os requisitos de liquidez e certeza, essenciais para a inscrição em dívida ativa. Ora, constatada a irregularidade e a fraude na concessão do benefício previdenciário, cabe ao INSS instaurar processo administrativo para a constituição do crédito com respeito a todos os princípios aqui analisados. De fato, somente nas hipóteses em que o INSS falhasse na constituição do crédito, seja por vício ligado à legalidade, contraditório, ampla defesa, etc é que o crédito poderia ser considerado inapto para cobrança.
O outro ponto de discordância decorre deste primeiro e está ligado à conclusão final a que chegou o Superior Tribunal de Justiça. Ora, ao afirmar que “O processo de execução fiscal não é o meio adequado para a cobrança judicial de dívida que tenha origem em fraude relacionada à concessão de benefício previdenciário”, cria-se o pressuposto lógico falho de que todos os créditos cujo objeto seja decorrente de fraude relacionada à concessão de benefício previdenciário constituídos pelo INSS desrespeitam os princípios do processo administrativo e não estão aptos à inscrição em dívida ativa.
A única conclusão que se pode chegar é que a tese defendida pelo Superior Tribunal de Justiça não é somente de direito e dependeria de análise de circunstâncias fático-probatórias presentes nos autos, questão vedada pela Súmula nº 7 do próprio Tribunal (STJ Súmula nº 7 - Reexame de Prova - Recurso Especial - A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial). Deste modo, embora seja verdade que os créditos que não tenham os requisitos de liquidez e certeza não possam ser objetos de inscrição em dívida ativa para o posterior ajuizamento da execução fiscal, tal fato não pode viciar, de forma apriorística, todos os créditos decorrentes de fraude relacionada à concessão de benefício previdenciários.
Conclui-se que é fundamental a análise dos princípios do Direito Administrativo para a correta constituição dos créditos não tributários da Administração sob pena de tornar viciada a cobrança. Por fim, ressalte-se, mais uma vez, o papel do Advogado Público na apuração da regularidade do crédito, atuando como defensor da regularidade do procedimento de constituição e também como defensor do patrimônio público.
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. (2008), Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo: Malheiros.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. (2006), Manual de Direito Administrativo. 15ª. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
CUNHA, José Ricardo. (2006), Sistema aberto e princípios na ordem jurídica e na metódica constitucional. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris.
DINAMARCO, Candido Rangel. (1998) Execução Civil. 5ª ed. São Paulo: Malheiros.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. (2010), Direito Administrativo. 24ª. ed. São Paulo: Atlas.
DWORKIN, Ronald. (2007), Levando os direitos a sério. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.
JUSTEN FILHO, Marçal. (2005), Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva.
MARINELA, Fernanda. (2010), Direito Administrativo. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Impetus.