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O art. 10 da Lei nº. 8.429/92: debates sobre a modalidade culposa de improbidade administrativa

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22/11/2012 às 16:10
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Dentre as inúmeras questões polêmicas que decorrem da Lei nº. 8.429/92, destaca-se a possibilidade da modalidade culposa de improbidade ou, em outros termos, a (im)prescindibilidade do elemento subjetivo dolo para a formação do tipo dos atos de improbidade administrativa.

RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar mais detidamente a modalidade culposa dos atos de improbidade administrativa, prevista no art. 10, da Lei nº. 8.429/92. Para tanto, será preciso percorrer o conceito de improbidade administrativa, bem como os atos previstos na Lei nº. 8.429/92, discutir os posicionamentos da doutrina e jurisprudência pátrias, concluindo pela necessidade de se conferir uma interpretação da conduta culposa de improbidade administrativa consoante a regra da proporcionalidade.

Palavras-chave: Lei de improbidade administrativa. Conduta culposa. Interpretação teleológica.


1 O CONCEITO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A alusão à improbidade administrativa foi feita pela primeira vez na Constituição da República de 1988 (CR/88) em seus artigos 15, inciso V e 37, § 4º. Para regulamentar a matéria improbidade, foi sancionada a Lei Federal nº. 8.429, em 02 de junho de 1992, que prevê três modalidades de atos de improbidade: atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); atos que causam lesão ao erário (art. 10); e atos que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).

No entanto, conceituar improbidade não é uma tarefa simples. Segundo o dicionário Aurélio[1], improbidade é falta de probidade, mau caráter, desonestidade. Para Eduardo Pessôa[2], a improbidade é falta de retidão ou honradez.

A improbidade administrativa poderia, a princípio, ser assim definida:

Numa primeira aproximação, improbidade administrativa é o designativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo tráfico de influência nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos[3].

No escólio de André de Carvalho Ramos[4], desponta-se uma possível relação entre probidade administrativa e corrupção, figurando como essencial a tutela constitucional e internacional da probidade no Estado de Direito para assegurar os meios necessários de efetivação dos direitos fundamentais, que tem como essência a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, aduz o jurista que:

Esse agir em prol dos direitos humanos é erodido pelas práticas de corrupção, ou seja, para que o homem possa viver uma vida digna com a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais básicas, devem atuar os agentes públicos com probidade, devendo o ordenamento jurídico possuir instrumento para zelar por tal conduta e reprimir, sancionando, os faltosos[5].

Sobre o tema, mencione-se, ainda, a lição de Wallace Paiva Martins Júnior[6]:

A sobrevivência do Estado Democrático de Direito impõe, necessariamente, a proteção da moralidade e da probidade administrativa nos atos administrativos em geral, exaltando as regras de boa administração e extirpando da gerência dos negócios públicos agentes que ostentam inabilitação moral para o exercício de funções públicas. Bem percebe Fábio Medina Osório que a sobrevivência do Estado Democrático de Direito exige um 'combate duro e sistemático aos casos de corrupção e improbidade administrativa'.

Da mesma forma entende Léo da Silva Alves[7]:

Improbidade é desonestidade em seu sentido mais amplo. Implica a falta de zelo com dois elementos: o patrimônio público e o interesse público. Relaciona-se com a conduta do administrador e pode ser praticada não apenas pelo agente público, lato sensu, senão também por quem não é servidor e infringe a moralidade pública.

Para Marcello Caetano[8], a probidade administrativa funda-se no dever de “o funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício de suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro[9], ao afirmar que tanto na moralidade, quanto na probidade administrativa, se tem a ideia de honestidade, declara que:

Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos, de lealdade, de boa fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública.

O agente ímprobo pode ser conceituado como aquele que, muito além de agir em desconformidade com a lei, transgride os próprios princípios norteadores da moral, configurando-se como um agente desonesto.

Trata-se, portanto, de conduta humana positiva ou negativa, ilícita, que, também, poderá acarretar uma sanção civil, administrativa e penal, em virtude dos bens jurídicos atingidos pelo fato jurídico. Para estar caracterizada a improbidade administrativa basta a violação aos princípios insculpidos no caput do artigo 37, da Constituição da República de 1988 (CR/88), não sendo imperativa a necessidade de prejuízo ao erário.


2 OS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI Nº. 8.429/92.

Como visto, a improbidade administrativa consiste na violação à probidade administrativa que abrange os princípios da administração pública, a moralidade administrativa e os deveres éticos da probidade, como a boa-fé, a lealdade, entre outros.

A Lei nº. 8.429/92 enumera os atos de improbidade administrativa, por meio das figuras do enriquecimento ilícito (art. 9º), do prejuízo ao erário (art. 10) e do atentado aos princípios da administração pública (art. 11), sendo que o rol dos atos de improbidade enunciados pelo diploma legal é exemplificativo.

2.1 Atos que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º, da LIA).

A primeira espécie decorre do enriquecimento ilícito, prevista no caput do art. 9º, e mais detalhadamente nos seus incisos I a X, todos da Lei nº. 8.429/92. Segundo o art. 9º, da LIA, a conduta de improbidade gera enriquecimento ilícito quando o autor aufere qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º da lei.

Alguns juristas[10] apontam o enriquecimento ilícito como o mais grave tipo de improbidade, pois revela manifestamente um comportamento do agente público ou do terceiro beneficiado direcionado a afrontar a coisa pública, o que resta demonstrado por determinadas hipóteses previstas nos incisos do art. 9º, da LIA, tal como a aquisição de bens em montante superior à renda (inciso VII) e a incorporação ou uso de renda, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades públicas (incisos XI e XII).

Ressalte-se que o elemento subjetivo da conduta, embora omisso o dispositivo, restringe-se ao dolo; a culpa não se compadece com a com a fisionomia do tipo. Não se pode conceber que algum servidor receba vantagem indevida por imprudência, imperícia e negligência. Por outro lado, o tipo não admite tentativa, como na esfera penal, seja quando meramente formal a conduta (ex.: aceitar emprego), seja quando material (recebimento de vantagem). Consequentemente, só haverá improbidade ante a consumação da conduta[11].

2.2 Atos que causam prejuízo ao erário (art. 10, da LIA).

A segunda (e também polêmica) hipótese de improbidade administrativa está prevista no art. 10, da Lei nº. 8.429/92, enunciando os atos que causam lesão ao erário[12]. Representam eles qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação[13] dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º da mesma lei. Além da conduta genérica do caput, a lei relaciona as condutas específicas nos incisos I a XV.

O elemento subjetivo é o dolo ou culpa, como consta no caput do dispositivo. Neste ponto o legislador adotou critério diverso em relação ao enriquecimento ilícito. Para José dos Santos Carvalho Filho, o legislador realmente teve o desiderato de punir condutas culposas de agente, que causem danos ao erário, exigindo-se que haja comprovada demonstração do dano e do elemento subjetivo[14].

Tal problemática será aprofundada mais adiante.

2.3 Atos que atentam contra o princípio da administração pública (art. 11, da LIA).

A terceira espécie de improbidade administrativa, consoante art. 11 da Lei nº. 8.429/92, decorre dos atos ou omissões que violem os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Os incisos I a VII do dispositivo relacionam as condutas específicas.

Na análise do dispositivo, merece destaque o fato de a ofensa a princípios caracterizar-se como ato de improbidade administrativa, com o que se refugiu à clássica noção de que somente o enriquecimento ilícito e os atos danosos ao erário seriam idôneos para caracterizá-la[15].

Com efeito, a desonestidade e desídia, pejorativos ainda comuns entre alguns agente públicos, ramificam-se em vertentes insuscetíveis de serem previamente identificadas. Soltas as rédeas da imaginação, é inigualável a criatividade humana, o que exige a elaboração de normas que se adequem a tal peculiaridade e permitam a efetiva proteção do interesse tutelado, in casu, o interesse público. É este, em essência, o papel dos princípios[16].

Ante a importância dos interesses passíveis de serem lesados pelos agentes ímprobos, afigura-se louvável a técnica adotada pelos artigos 4º e 11, ambos da Lei nº. 8.429/92, prelecionando que a violação aos princípios regentes da atividade estatal, ainda que daí não resulte dano ao erário, consubstanciará ato de improbidade[17]. Deve-se observar, ainda, que os referidos dispositivos da Lei nº. 8.429/92 apresentam-se como verdadeiras normas de integração de eficácia da Constituição da República, pois os princípios por eles tutelados há muito foram consagrados nesta[18].

O elemento subjetivo é exclusivamente o dolo; não tendo havido na lei referência à culpa, como seria necessário, não se enquadrando como ato de improbidade aquele praticado por imprudência, imperícia ou negligência. Poderá constituir infração funcional e gerar a aplicação de penalidade, conforme a lei de incidência, mas de improbidade não se cuidará[19].


3 A IMPROBIDADE CULPOSA NA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Visto os atos de improbidade administrativa, impende ressaltar que dentre as inúmeras questões polêmicas que decorrem da Lei nº. 8.429/92, destaca-se a possibilidade da modalidade culposa de improbidade ou, em outros termos, a (im)prescindibilidade do elemento subjetivo dolo para a formação do tipo dos atos de improbidade administrativa.

Analisando o caput dos três artigos citados, observa-se que o único a admitir que uma conduta culposa seja capaz de tipificar o ilícito em tela é o artigo 10, da LIA.

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Com efeito, discute-se em doutrina e jurisprudência o citado artigo 10 que, de forma explícita, admite o enquadramento do agente público como ímprobo, seja por uma conduta dolosa ou culposa.

No que concerne ao elemento subjetiovo culpa em ato de improbidade, este é entendido como a vontade dirigida de praticar um ato ilícito, mas, por inobservância do dever de cuidado objetivo, o agente se descuida das formalidades legais, vindo a causar uma lesão aos cofres públicos não desejada, configurando a improbidade administrativa culposa.

Nesse contexto, revela-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e uma doutrina que se divide em correntes dissonantes sobre o tema. Tal desacordo reflete a aplicação não uniforme do instituto pelo poder judiciário e prejudica sobremaneira o combate à corrupção.

Relembre-se, ainda, que a aplicação da lei de improbidade administrativa deve ser feita com cautela, evitando-se a imposição de sanções em face de erros toleráveis e meras irregularidades[20].

A seguir, serão analisadas as vertentes doutrinárias e jurisprudenciais sobre a improbidade culposa.

3.1 A improbidade culposa na jurisprudência brasileira

Conforme explicitado anteriormente, a controvérsia reside no caput do art. 10, da Lei nº. 8.429/92 que expressamente prevê a conduta dolosa ou culposa como ato de improbidade administrativa que cause lesão ao erário.

O Superior Tribunal de Justiça exige a comprovação do elemento subjetivo, sendo que a culpa só cabe nos casos previstos no art. 10, da LIA. Nesse sentido:

Embora mereçam acirradas críticas da doutrina, os atos de improbidade do art. 10, como está no próprio caput, são também punidos à título de culpa, mas deve estar presente na configuração do tipo a prova inequívoca do prejuízo ao erário[21].

As condutas típicas que configuram improbidade administrativa estão descritas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92, sendo que apenas para as do art. 10 a lei prevê a forma culposa. Considerando que, em atenção ao princípio da culpabilidade e ao da responsabilidade subjetiva, não se tolera responsabilização objetiva e nem, salvo quando houver lei expressa, a penalização por condutas meramente culposas, conclui-se que o silêncio da Lei tem o sentido eloqüente de desqualificar as condutas culposas nos tipos previstos nos arts. 9.º e 11[22]. Grifamos.

Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10[23]. Grifamos.

Depreende da leitura dos arestos que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou a tese de que é indispensável a existência de dolo nas condutas descritas nos artigos 9º e 11, da Lei nº. 8.429/92 e, ao menos culpa nas hipóteses do artigo 10 do mesmo diploma legal, sendo imprescindível a comprovação de dano ao erário.

De acordo com o Ministro Castro Meira, a conduta culposa ocorre quando o agente não pretende atingir o resultado danoso, mas atua com negligência, imprudência ou imperícia[24].

Portanto, a jurisprudência, de forma cautelosa, tem aceitado condenações por improbidade administrativa na forma culposa.

3.2 A improbidade culposa na doutrina brasileira

A doutrina pátria defende a comprovação do elemento subjetivo do agente público ou terceiro, para além da conduta ímproba e do resultado, rejeitando a responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa. No entanto, há controvérsias, como abaixo será explicitado.

3.2.1 Constitucionalidade da modalidade culposa do ato de improbidade.

A primeira corrente doutrinária defende a constitucionalidade da modalidade culposa do ato de improbidade inscrita no art. 10, da LIA, aduzindo que o dolo não foi exigido expressamente pelo art. 37, § 4º da CR/88.

José dos Santos Carvalho Filho aduz que o elemento subjetivo dolo é pressuposto indispensável para a improbidade como enriquecimento ilícito (art. 9º, da LIA) e como violação aos princípios da administração pública (art. 11, da LIA), enquanto o elemento subjetivo poderia ser dolo ou culpa em relação à improbidade como danos ao erário (art. 10, da LIA)[25]. É o que se verifica:

O elemento subjetivo é o dolo ou culpa, como consta do caput do dispositivo. Neste ponto o legislador adotou critério diverso em relação ao enriquecimento ilícito. É verdade que há autores que excluem a culpa, chegando mesmo a considerar inconstitucional tal referência no mandamento legal. Não lhes assiste razão, entretanto. O legislador teve realmente o desiderato de punir condutas culposas de agentes, que causem danos ao erário.

Aliás, para não deixar que, da mesma forma, dispõe sobre prejuízos ao erário. Em nosso entender, não colhe o argumento de que a conduta culposa não tem gravidade suficiente para propiciar a aplicação de penalidade. Com toda a certeza, há comportamentos culposos que, pela repercussão que acarretam, têm maior densidade que algumas condutas dolosas.

Além disso, o princípio da proporcionalidade permite a perfeita adequação da sanção à maior ou menor gravidade do ato de improbidade. O que se exige, isto sim, é que haja comprovada demonstração do elemento subjetivo e também do dano causado ao erário. Tanto quanto na improbidade que importa em enriquecimento ilícito, não há ensejo para a tentativa[26]. Grifamos.

Cite-se, por oportuno, o ensinamento de Alexandre de Moraes para quem a tipificação de um ato de improbidade descrito no art. 10, da LIA, não exige a existência de vontade livre e consciente do agente em realizar qualquer das condutas nele descritas, responsabilizando-se também o agente cuja conduta, por imprudência, negligência ou imperícia, adéque-se àquelas previstas no art. 10. Somente nesses casos de improbidade administrativa – caracterizados pela existência de lesão ao erário – permite-se tanto a conduta dolosa quanto a culposa[27].

Na mesma linha, Pedro Roberto Decomain afirma que a culpa em sentido estrito (negligência, imperícia ou imprudência), pode ser tipificada como um ato de improbidade que causa prejuízo ao erário (art. 10). Assim, mesmo que o dano ao erário não seja impingido propositalmente, a situação poderá caracterizar-se como improbidade[28]. O jurista destaca a redação do inciso X, do art. 10, da LIA[29], que exige o comportamento negligente no trato do patrimônio público, como uma situação evidente da modalidade culposa. E, ainda, o agente público descuidado com o interesse público da administração que poderá incorrer em ato de improbidade:

A ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preservação daquilo que pertence à Administração Pública, é que configura a improbidade. E esse pouco caso pela coisa pública insere-se também no terreno da desonestidade. Não com a marca do propósito de produzir desfalque patrimonial (como acontece em relação a outros incisos), mas pelo menos com a marca da incúria no exercício da função, produzindo com isso o dano que houvesse o agente atuado como deveria, realizando o esforço com que o cargo lhe impunha para a preservação do patrimônio público, não teria tido lugar[30]. Grifamos.

3.2.2 Constitucionalidade da modalidade culposa do ato de improbidade com ressalva: necessidade de culpa grave.

A segunda corrente doutrinária igualmente admite a modalidade culposa de improbidade prevista no art. 10, da LIA. No entanto, acrescenta o requisito da gravidade da culpa, não se admitindo que qualquer culpa torne apto o reconhecimento da improbidade. Apenas quando o agente público falta com dever de “cuidado objetivo” ou comete ato eivado de culpa grave é que se pode reconhecer a improbidade administrativa.

Nesse sentido, Luiz Alberto Ferracini ao comentar o debatido art. 10, elucida que a improbidade relaciona-se à má-fé para prejudicar o poder público. Segundo o jurista,

Na culpa seria a falta pelo agente público, de cuidado objetivo. Em face disto, a observância do dever de diligência necessária e a imprevisibilidade objetiva excluem a tipicidade do fato. A imprevisibilidade pessoal exclui a culpabilidade. Assim sendo, incidindo ao agente público a imprevisibilidade dos elementos acima, o fato ser atípico[31].

Ainda, causídico da constitucionalidade da culpa grave como elemento subjetivo dos atos de improbidade lesivos ao erário, Fábio Medina Osório é categórico ao afirmar:

A culpa grave pode fundamentar a responsabilização de Parlamentares, Magistrados e membros do Ministério Público que, no desempenho de suas atribuições, causem, injustificadamente, por manifesto e desproporcional despreparo funcional, lesão ao erário, violando os princípios básicos que regem a Administração Pública, v.g., moralidade e ilegalidade[32]. Grifos no original.

O renomado jurista defende a hermenêutica da culpa na forma grave como elemento subjetivo da improbidade administrativa lesiva ao erário, afastando, por decorrência lógica, qualquer possibilidade de responsabilização do agente fundamentada apenas na culpa simples.

Carlos Frederico Brito dos Santos determinou a amplitude do termo culpa grave nos atos jurídicos ao equipará-lo com o dolo. Para angariar elementos em sua pesquisa, o jurista assevera que a culpa grave ou inescusável pode ser decomposta, facilitando sobremaneira a sua compreensão, nos pressupostos: Positivos: i) gravidade excepcional, de modo a ultrapassar o que comumente ocorre, mesmo no âmbito das falhas; ii) consciência do perigo; e iii) caráter voluntário do ato ou da omissão, que não pode ser fruto de simples inadvertência; e Negativos: i) falta de intenção de provocar o dano: se há intenção o caso é de dolo e não de culpa grave; e ii) ausência de toda e qualquer causa justificadora[33].

Sobreleve-se, por oportuno, a doutrina[34] que pretende estender a aplicação da modalidade de culpa grave para as demais hipóteses de improbidade previstas no artigo 11, da LIA, tendo em vista a redação do art. 5º[35] do mesmo diploma legislativo, que se caracteriza como normal geral do microssistema normativo estabelecido pela Lei nº. 8.429/92.

Apesar da mencionada doutrina[36] negar a culpa para os casos do art. 9º da LIA, afirma que a aplicação é perfeita ao art. 11 da LIA, pois é dirigido aos agentes públicos, assim entendidos os especificados no art. 2º do mesmo diploma legal.

Waldo Fazzio Júnior e outros[37], criticando a corrente doutrinária em exposição, defendem que não teria sido a intenção do legislador punir apenas nos casos de culpa grave as condutas do art. 10 da LIA e, sobretudo, haveria impropriedade no uso desse termo. Interpretar como culpa grave a modalidade culposa prevista no caput do art. 10 seria um equívoco, porque esta se iguala ao dolo. A equiparação do dolo à culpa grave é igualmente feita por outros autores[38].

Todavia, a citada doutrina preleciona que a conduta culposa do caput deve ser entendida como a falta de atenção evitável ao homem médio. Nas palavras de Waldo Fazzio Júnior,

O legislador, ao aludir à culpa, certamente não se refere à culpa grave, uma vez que esta é equiparada ao dolo, sendo, portanto, prescindível, porque a modalidade dolosa é a regra, entre os atos de improbidade administrativa[39].

Outro jurista que rejeita a graduação de culpa é Emerson Garcia, ao aduzir que a improbidade poderá ser verificada, seja a culpa leve, grave ou gravíssima. Qualquer que seja a modalidade de culpa, o ato de improbidade subsiste, pois assim quis o legislador ao disciplinar o art. 37, §4º da CR/88 por meio do art. 10, da Lei n. 8.249/1992. Já para as hipóteses dos arts. 9º e 11, da LIA, apenas o agente intencionado e que almejou o resultado lesivo pode ser punido[40].

Ainda, segundo Emerson Garcia, a culpa leve pode levar à não incidência do tipo legal, desde que o ato praticado seja escusável, por ser insignificante do ponto de vista da improbidade e, ainda, se a previsibilidade em relação ao dano fosse de difícil percepção ao homem médio[41]. Para o jurista:

Os graus da culpa podem ser úteis por ocasião da verificação do grau de proporcionalidade que deve existir entre ato e sanção, bem como para os fins de dosimetria desta[42].

3.2.3 Inconstitucionalidade da modalidade culposa do ato de improbidade.

A terceira corrente doutrinária defende a inconstitucionalidade da modalidade culposa de improbidade administrativa e sugere uma interpretação do art. 10, da LIA, conforme o art. 37, §4º, da CR/1988.

De início, argumenta-se que o conceito de improbidade administrativa não seria a simples violação à ordem jurídica ou a legalidade. Para o agente ser considerado ímprobo, faz-se necessária uma ofensa à moralidade administrativa que resulte em enriquecimento ilícito, obtenção de vantagem para si ou outrem ou que cause dano ao erário. Do contrário, não se justificariam as pesadas sanções definidas na própria Constituição da República de 1988 e delimitadas pela Lei nº. 8.429/1992.

Os juristas que endossam esse entendimento admitem apenas a conduta dolosa, ou seja, a vontade deliberada do agente público, como tipificadora do ato de improbidade[43].

Com efeito, sem a figura do dolo seria impossível a caracterização do ato de improbidade administrativa, porque o ímprobo é aquele que teve a vontade, a intenção, ou o animus de causar lesão ou prejuízo ao erário, bem como aos princípios constitucionais que norteiam a administração[44].

Nesse sentido, Benedicto Pereira Porto Neto e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho concluem que:

A Constituição Federal (bem como a legislação infraconstitucional) exige como elemento do tipo improbidade administrativa a intenção de praticar a ilegalidade. Elemento subjetivo é, portanto, requisito inafastável para tipificação da conduta punível na forma da Lei 8.429, de 1992. (...)

Um exemplo mais radical: também seria ato de improbidade, na visão estreita contestada, o ato de servidor que, desrespeitando normas de trânsito com outro veículo, causando danos ao erário; a simples inobservância das normas de trânsito, aliás, já representaria ilegalidade, e, por tanto, ato de improbidade.

Interpretação dessa ordem levaria a uma conclusão absurda: o administrador público que se utilizasse de sua competência para invalidar seu próprio ato estaria confessando sua conduta ímproba e, via de conseqüência, expondo-se às pesadas sanções constitucionais e legais. (...)

Em resumo, a vontade do agente, o fim por ele almejado, é fundamental para a caracterização do ato de improbidade[45]. Grifamos.

Outro argumento utilizado para restringir a improbidade na modalidade culposa é a figura da boa-fé. Se o agente atuou com boa-fé, sem a intenção de lesar o erário, não pode sofrer as mesmas pesadas sanções aplicáveis ao agente desonesto e ímprobo. De forma incisiva defende Mauro Roberto Gomes de Mattos,

Não pode o legislador querer desnaturar a figura da boa-fé ou da falta de intenção de lesar o ente público, para considerá-la, em igualdade de condições, com aquelas situações caracterizadoras da devassidão do agente público desonesto que traz no seu espírito intenções impuras e imorais reveladas na vontade de fraudar o erário[46].

Ademais, teria faltado ao legislador inconstitucional a devida consideração ao princípio da razoabilidade quando considerou qualquer ação culposa, que importe em lesão ao erário, como ato de improbidade administrativa. Por exemplo, o agente que causa uma pequena lesão ao erário involuntariamente, por uma omissão culposa, sofreria aplicação de sanções desproporcionais, reclamando uma interpretação conforme a Constituição[47].

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92, ART. 11. EXIGÊNCIA DE CONDUTA DOLOSA.

1. A improbidade administrativa, consubstanciada nas condutas previstas no artigo 11 da Lei 8.429/92, impõe "necessária cautela na exegese das regras nele insertas, porquanto sua amplitude constitui risco para o intérprete induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público e preservada a moralidade administrativa." (REsp 480.387/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 24.05.2004) .

2. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do STJ associam a improbidade administrativa à noção de desonestidade, de má-fé do agente público, do que decorre que a conclusão de que somente em hipóteses excepcionais, por força de inequívoca disposição legal, é que se admite a sua configuração por ato culposo (artigo 10, da Lei 8.429/92).

3. A doutrina do tema é assente que 'imoralidade e improbidade devem-se distinguir, posto ser a segunda espécie qualificada da primeira, concluindo-se pela inconstitucionalidade da expressão culposa constante do caput do artigo 10 da Lei 8.429/92.' (Aristides Junqueira, José Afonso da Silva e Weida Zancaner). É que "estando excluída do conceito constitucional de improbidade administrativa a forma meramente culposa de conduta dos agentes públicos, a conclusão inarredável é a de que a expressão 'culposa' inserta no caput do art. 10 da lei em foco é inconstitucional. Mas, além da questão sobre a possibilidade de se ver caracterizada improbidade administrativa em conduta simplesmente culposa, o que se desejou, primordialmente, foi fixar a distinção entre improbidade e imoralidade administrativas, tal como acima exposto, admitindo-se que há casos de imoralidade administrativa que não atingem as raias da improbidade, já que esta há de ter índole de desonestidade, de má-fé, nem sempre presentes em condutas ilegais, ainda que causadoras de dano ao erário." (Improbidade Administrativa - questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, São Paulo, Malheiros, 2001, pág. 108).

STJ, REsp 939.142/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21.08.2007, DJ 10.04.2008 p. 1. Grifamos.

Os defensores da inconstitucionalidade da modalidade culposa de improbidade aduzem, derradeiramente, que o tratamento sancionatório dispensado aos agentes de boa-fé e má-fé, previsto no art. 12 da Lei nº. 8.429/1992, não deve ser o mesmo, pois a igualdade e a razoabilidade/proporcionalidade restariam desatendidas. As sanções aplicáveis são desproporcionais quando recaem sobre o agente que pensa agir de acordo com a lei e com o interesse público, lastreado na boa-fé, mas que, por inabilidade ou falta de diligência fere a probidade administrativa. Isso não significa que o agente da conduta não será punido, por ex., em processo administrativo que possa, até mesmo, resultar a sua demissão ou mesmo uma ação de cobrança pelos prejuízos causados.

3.2.4 Imprecisão legislativa da modalidade culposa do ato de improbidade.

A quarta corrente doutrinária chega a conclusões parecidas por caminhos diversos, defendendo a imprecisão legislativa da modalidade culposa do ato de improbidade.

Sua defensora de destaque, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, vislumbra uma relação necessária entre a conduta do agente com a má-fé, para que reste configurada a improbidade. Conforme a jurista:

A quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de que todos conhecem a lei. Além disso, algumas normas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da lei de improbidade exige bom-senso, pesquisa da intenção do agente, sob pena de sobrecarregar-se inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes. A própria severidade das sanções previstas na Constituição está a demonstrar que o objetivo foi o de punir infrações que tenham um mínimo de gravidade, por apresentarem conseqüências danosas para o patrimônio público (em sentido amplo), ou propiciarem benefícios indevidos para o agente ou para terceiros. (...) Sem um mínimo de má-fé, não se pode cogitar da aplicação de penalidades tão severas como a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública[48].

Aduz, outrossim, que dos três dispositivos que definem os atos de improbidade, somente o art. 10, da LIA, fala em ação ou omissão, dolosa ou culposa. E a mesma ideia, de que nos atos de improbidade causadores de prejuízo ao erário, exige-se dolo ou culpa, repete-se no art. 5º da mencionada lei, sendo difícil dizer se foi intencional essa exigência de dolo ou culpa apenas com relação a esse tipo de ato de improbidade, ou se foi falha do legislador, como tantas outras presentes na lei. A renomada jurista entende que a  probabilidade de falha é a hipótese mais provável, porque não há razão que justifique essa diversidade de tratamento[49].

 

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Sobre a autora
Natália Hallit Moyses

Procuradora Federal. Chefe do Serviço de Orientação e Análise em Demandas de Controle da PFE-INSS. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOYSES, Natália Hallit. O art. 10 da Lei nº. 8.429/92: debates sobre a modalidade culposa de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3431, 22 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23072. Acesso em: 23 dez. 2024.

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