Resumo: O presente artigo tem o objetivo de discutir os pressupostos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, bem como realizar uma análise crítica da normatização desta teoria no direito brasileiro, sopesando o entendimento doutrinário e, principalmente, jurisprudencial acerca do tema.
Palavras-chave: desconsideração da personalidade jurídica; teoria maior; teoria menor.
1. INTRODUÇÃO
O efeito da autonomia patrimonial atribui à sociedade a titularidade de um patrimônio próprio inconfundível e incomunicável com o patrimônio dos sócios.
Especialmente nas sociedades limitadas, as dívidas da sociedade não se transmitem aos sócios, tão pouco as dívidas destes são repassadas àquela, haja vista que tanto a sociedade quanto seus sócios são considerados como pessoas distintas e independentes umas em relação às outras.
Acontece que, sob o escudo da separação patrimonial, por vezes sócios e administradores utilizam a sociedade de forma abusiva ou fraudulenta, lesando credores ou terceiros, através, por exemplo, da constituição de sociedades fictícias, de operações societárias com fins dissimulados, da celebração de negócios jurídicos espúrios, da promiscuidade entre os patrimônios da sociedade e dos sócios, etc., acarretando uma crise de função do instituto da personalização.
Como reação aos abusos e fraudes que se ocultavam sob o manto da separação patrimonial, no final do Século XIX nasceu a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica que pregava a relativização do princípio da autonomia patrimonial franqueando a possibilidade de o juiz penetrar o véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio dos sócios no caso de abuso ou fraude em sua utilização.
No Brasil, com certo atraso, a desconsideração da personalidade jurídica foi inicialmente normatizada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), posteriormente pela hoje revogada Lei Antitruste (Lei nº 8.884/94), pela Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) e, por último, pelo Código Civil (Lei nº 10.406/02).
A interpretação dos pressupostos para a superação da autonomia patrimonial previstos nestes diplomas legais tem sido objeto de várias controvérsias na comunidade jurídica, principalmente em face da antinomia existente entre as referidas normas e da desnaturação da base axiológica da disregard of legal entity.
Neste contexto, o presente artigo se propõe a analisar criticamente a normatização da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro bem como a sua interpretação jurisprudencial.
2. A PERSONIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS LIMITADAS
2.1 CARACTERIZAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
Na disciplina societária, o Código Civil concebeu dois tipos de sociedade personalizada, a “sociedade empresária” e a “sociedade simples” (artigo 982 do Código Civil). A distinção entre a sociedade empresária e a simples “decorre do conceito de empresário” (BERTOLDI e RIBEIRO, 2009, p. 146).
Nos termos do caput do artigo 966 do Código Civil, “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.
Entende-se por atividade econômica organizada (atividade empresarial) àquela em que o empresário articula a combinação dos fatores de produção ou de circulação de bens ou serviços, quais sejam, “capital, mão-de-obra, insumo e tecnologia” (COELHO, 2007, p. 3).
Com efeito, se a sociedade tem por objeto o exercício profissional de atividade econômica organizada, ela classifica-se como sociedade empresária, não tendo este objeto, classifica-se como sociedade simples.
Nos mesmos termos, COELHO leciona que o objeto social explorado “sem profissionalmente organizar os fatores de produção confere à sociedade o caráter de simples, enquanto a exploração empresarial do objeto social caracterizará a sociedade como empresária” (2007, p. 111)
Cumpre observar que no parágrafo único daquele dispositivo legal há a previsão expressa de não se considerar como atividade empresarial o exercício de “profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.
Denota-se que a lei exclui a empresarialidade da atividade econômica quando o propulsor da sociedade é a atuação intelectual e pessoal dos profissionais que a integram. Vale dizer, a articulação dos fatores de produção não é o que alimenta a atividade econômica daquela sociedade, mas sim a pessoalidade do trabalho intelectual desenvolvido (científico, literário ou artístico) que é a pedra de torque da organização.
Ressalve-se que, por disposição da lei - parágrafo único do artigo 982 do Código Civil - a sociedade anônima, independentemente de ter, ou não, atividade empresarial, sempre será considerada uma sociedade empresária.
Sobre a caracterização da sociedade empresária leciona COELHO (2007, p. 110 e 111):
A distinção entre sociedade simples e empresária não reside, como se poderia pensar, no intuito lucrativo. (...). Isto porque também há sociedades não empresárias com escopo lucrativo, tais as sociedades de advogados, as rurais sem registro na Junta etc. O que irá, de verdade, caracterizar a pessoa jurídica de direito privado não-estatal como sociedade simples ou empresária será o modo de explorar seu objeto.. (...)
Por critério de identificação da sociedade empresária elegeu, pois, o direito o modo de exploração do objeto social.
(...) o enquadramento de uma sociedade no regime jurídico empresarial dependerá, exclusivamente, da forma com que explora seu objeto. Uma sociedade limitada, em decorrência, poderá ser empresária ou simples: se for exercente de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, será empresária; caso contrário ou se dedicando a atividade econômica civil (sociedade de profissionais intelectuais ou dedicada à atividade rural sem registro na Junta Comercial), será simples. Assentadas estas premissas, a sociedade empresária pode ser conceituada como a pessoa jurídica de direito privado não-estatal, que explora empresarialmente seu objeto social ou a forma de sociedade por ações. (grifos nossos)
Conclui-se que a “sociedade empresária” - cerne do presente estudo - distingue-se das demais modalidades de pessoa jurídica de direito privado em virtude do exercício de atividade empresarial tendo por escopo o fim econômico e a partilha de resultados entre os sócios desta sociedade.
Neste contexto, a sociedade empresária, como uma pessoa jurídica, é o sujeito de direito personalizado, com patrimônio próprio distinto do patrimônio de seus sócios, e com o poder de autonomamente praticar negócios jurídicos compatíveis com o seu objeto social, desde que não vedados por lei.
2.2. EFEITOS DA PERSONALIZAÇÃO
Da atribuição de personalidade jurídica à sociedade empresária emanam três principais efeitos, a saber: a titularidade negocial; a titularidade processual; e a responsabilidade patrimonial.
A titularidade negocial ou obrigacional da sociedade empresária lhe confere a capacidade jurídica de ser titular de direitos e deveres, podendo, em seu próprio nome, celebrar os mais variados negócios jurídicos, não obstante o faça através de seu administrador (sócio ou não sócio).
A titularidade processual da sociedade empresária consiste na capacidade de ser parte em processo judicial, assim, ela pode demandar e ser demandada em juízo. Decorre naturalmente da capacidade de direito acima referida.
E por fim, a responsabilidade patrimonial ou autonomia patrimonial, que atribui à sociedade a titularidade de um patrimônio próprio inconfundível e incomunicável com o patrimônio de cada um dos sócios.
A responsabilidade patrimonial é o efeito mais relevante da personalização da sociedade empresária, pois acarreta o rompimento da ligação entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio destinado à sociedade, remanescendo aos primeiros apenas o direito patrimonial de participar nos lucros e no acervo social líquido, este último quando e se a sociedade se extinguir.
Aliás, este rompimento é justamente uma das justificativas para a institucionalização da pessoa jurídica, neste sentido, explanam BERTOLDI e RIBEIRO (2009, p. 150):
Em verdade, com a personificação da sociedade, o resultado prático que se busca é justamente a separação do patrimônio dos sócios em relação ao patrimônio da sociedade, pois os sócios contribuem para os fundos sociais com parcela de seus patrimônios. Transferem-na para a sociedade, que passa a ser dela titular, restando aos sócios o direito à participação nos lucros sociais, se houver, e também sobre o acervo social líquido quando da extinção da sociedade. Veja-se, então, que as dívidas e os créditos dos sócios não se transformam em dívidas e créditos da sociedade, assim como as dívidas e os créditos da sociedade não se transmitem aos sócios. São pessoas – sociedade e sócios – distintas e independentes umas em relação às outras. (grifo nossos)
Não obstante a sociedade assumir a responsabilidade patrimonial pelas obrigações por ela contraídas, estas poderão, ou não, afetar o patrimônio dos sócios de acordo com o tipo societário que tenha sido constituído, conforme adiante abordado.
2.3. CLASSIFICAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA QUANTO À RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS
É certo que a toda sociedade empresarial, por ter responsabilidade patrimonial, responde ilimitadamente por suas dívidas. Entretanto, a responsabilidade dos seus sócios pelas dívidas sociais pode variar de acordo com o modelo legal de responsabilidade escolhido pelos sócios.
Com ensejo, um dos critérios pelos quais se classificam as sociedades refere-se justamente quanto ao grau de responsabilidade dos sócios pelas obrigações contraídas pela sociedade.
Mas antes de analisar os modelos legais de limitação da responsabilidade, cumpre observar que a atribuição de personalidade jurídica autônoma às sociedades, de per si, sempre atrai a aplicação do princípio da autonomia patrimonial, o qual determina que as obrigações da sociedade são de sua responsabilidade e não dos sócios.
Assim, possuindo a sociedade empresarial patrimônio suficiente para o integral cumprimento de todas as suas obrigações, o patrimônio particular de cada sócio é, absolutamente, inatingível por dívida social.
Vale dizer, seja qual for o modelo de sociedade personificada, a regra geral é a de que a responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é subsidiária, nos termos do artigo 1.024[1] do Código Civil e do artigo 596[2] do Código de Processo Civil, que asseguram aos sócios o direito de exigir o prévio exaurimento do patrimônio social.
Neste sentido ensina COELHO (2009b, p. 28 e 29):
Em razão da personalização das sociedades empresárias, os sócios têm, pelas obrigações sociais, responsabilidade subsidiária. Isto é, enquanto não exaurido o patrimônio social, não se pode cogitar de comprometimento do patrimônio do sócio para a satisfação de dívida da sociedade. A regra da subsidiariedade encontrava-se já no Código Comercial de 1850 e é reproduzida na legislação processual (CPC, art. 596) e civil (CC/2002, art. 1.024). Não existe no direito brasileiro nenhuma regra geral de solidariedade entre sócios e sociedade (simples ou empresária), podendo aqueles sempre se valer do benefício de ordem, pela indicação de bens sociais livres e desembaraçados, sobre os quais pode recair a execução da obrigação da obrigação societária. (...). A solidariedade no direito societário brasileiro, quando existe, verifica-se entre os sócios, pela formação do capital social, e nunca entre sócio e sociedade. A única exceção à regra geral da subsidiariedade está na responsabilização do sócio que atua como representante legal da sociedade irregular, não registrada na Junta Comercial; (...)
A responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, além de subsidiária, pode ser limitada ou ilimitada. (grifo nosso)
Portanto, denota-se que a responsabilidade dos sócios de uma sociedade personificada é sempre subsidiária por força artigo 1.024 do Código Civil e do artigo 596 do Código de Processo Civil, mas esta subsidiariedade pode ser limitada ou ilimitada.
O critério da limitação da responsabilidade diz respeito “à possibilidade ou não de os sócios virem a responder com seus próprios bens pelas dívidas da sociedade” (BERTOLDI; RIBEIRO, 2009, p.177). Segundo o referido critério, os tipos societários classificam-se em: sociedade ilimitada, sociedade mista e sociedade limitada.
Na sociedade ilimitada todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais se o patrimônio social não for suficiente para o integral pagamento dos credores da sociedade. Todo o saldo do passivo da sociedade poderá ser cobrado do patrimônio particular sócios. O modelo legal desta categoria é a sociedade em nome coletivo (caput do art. 1039 do Código Civil).
Na sociedade mista parte dos sócios tem responsabilidade ilimitada e outra parte do quadro social tem responsabilidade limitada. São modelos legais desta categoria as sociedades em comandita simples (caput art. 1045 do Código Civil) e a em comandita por ações, (arts. 1090 e 1091 do Código Civil).
Na sociedade limitada todos os sócios respondem de forma limitada pelas obrigações sociais. Quando o patrimônio social não for suficiente para o integral pagamento das obrigações sociais, os sócios responderão, solidariamente, apenas pela parcela do capital social subscrito que não tenha sido integralizado. O benefício da limitação consiste na regra de que a responsabilidade patrimonial do sócio não será superior à contribuição que ele se obrigou a investir para se tornar sócio ou acionista da sociedade.
São modelos legais desta categoria a sociedade limitada em sentido estrito (caput do art. 1052 do Código Civil) e a sociedade anônima (caput do art. 1088 do Código Civil).
No caso da sociedade limitada em sentido estrito, mesmo que um sócio tenha integralizado a quota que subscreveu, ele permanece responsável também pelo valor não integralizado pelos outros sócios. Portanto, na hipótese do capital social não estar totalmente integralizado, todos os sócios deste tipo societário são solidariamente responsáveis pelo valor pendente de integralização se o patrimônio da sociedade não for suficiente para satisfazer o seu passivo (parte final do caput do art. 1052 do Código Civil).
Tal regra não se repete na disciplina da sociedade anônima, o que leva a concluir que, sobre este enfoque, a responsabilidade do sócio da sociedade limitada em sentido estrito é maior que a do acionista da sociedade anônima, já que este ao contrário daquele “responde tão somente pela integralização de suas próprias ações, não tendo qualquer tipo de responsabilidade solidária em relação aos demais acionistas.” (BERTOLDI e RIBEIRO, 2009, p. 191).
Note-se, contudo, que na sociedade limitada em sentido estrito, “o limite da responsabilidade subsidiária dos sócios pode ser ´zero´”, ou seja, “se todo o capital social já estiver integralizado, os credores da sociedade não poderão alcançar o patrimônio particular de nenhum dos sócios. Deverão, em decorrência, suportar o prejuízo”. (ULHOA, 2007, p. 119)
De todo exposto, infere-se que nas sociedades limitadas em sentido amplo o regime de limitação da responsabilidade subsidiária dos sócios é o mais elevado grau de autonomia patrimonial que o direito societário estabelece para as relações entre as sociedades e seus sócios.
Essa autonomia, entretanto, não é absoluta, sendo que a própria legislação assim como a jurisprudência elencam as hipóteses excepcionais nas quais não se aplica a regra da “limitação” da responsabilidade. Dentre estas hipóteses excepcionais encontra-se o instituto denominado desconsideração da personalidade jurídica que será tratado na seção 3 deste trabalho.
Também cumpre observar que a responsabilidade subsidiária dos sócios não se confunde com a responsabilidade direta pela prática de irregularidades. Conforme COELHO, “na sanção às irregularidades praticadas na sociedade limitada, a responsabilização do sócio não depende do prévio exaurimento do patrimônio social” (2009b. p. 422). Em outros termos, o sócio que praticou a irregularidade pode ser demandado diretamente.
É a lei que estabelece expressamente os casos de responsabilidade direta dos sócios e também dos administradores pelas obrigações da sociedade, como, por exemplo, nos arts. 1009, 1016, 1055, § 1º, e 1080 do Código Civil.
Noutro giro, cumpre fazer alguns apontamentos acerca do regime jurídico brasileiro no que se refere à tutela dos chamados credores não negociais - aqueles que não dispõem de meios negociais para proteger-se dos riscos da atividade empresarial.
Dentre estes credores não negociais encontram-se os empregados da sociedade e os seus consumidores (padrão[3] ou por equiparação[4]). Com o advento da terceira geração dos direitos fundamentais, também foi inserida como credora não negocial a coletividade de pessoas detentora dos direitos coletivos e individuais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (previsto no art. 225 da Constituição Federal).
É importante observar que a legislação brasileira não sistematiza o regime desses credores não negociais perante os quais os sócios da sociedade limitada teriam, excepcionalmente, responsabilidade ilimitada. Tão pouco estabelece como seria a distribuição desta responsabilidade conforme a categoria ou participação de cada sócio no quadro e na administração da sociedade.
Para proteger estes credores não negociais quando a sociedade não tenha patrimônio suficiente para solver seus créditos, o legislador simplesmente sacou da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, inserindo-a, de forma deturpada, no § 5º[5] do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 4º da Lei dos Crimes Ambientais.
Deturpada porque ignorou que a base axiológica dessa teoria é o abuso da personalidade jurídica e, mais, que sua função é de propiciar “um aperfeiçoamento do instituto da pessoa jurídica, e não a sua negação” (COELHO, 2009b, p. 54).
Vale dizer, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não tem como base axiológica a tutela de credores não negociais. Portanto, para tratar dos credores não negociais o adequado seria alterar o próprio regime de limitação da sociedade limitada, desmascarando claramente as exceções à limitação de responsabilidade dos sócios e mais, diferenciando a responsabilidade dos sócios que interferem na gestão da empresa – que responderiam solidária e ilimitadamente – da dos sócios investidores minoritários, que apenas prestam o capital, sem poder de controle e sem participar, nem indiretamente, da administração dos negócios sociais – os quais manteriam a responsabilidade limitada.
Neste aspecto, pede-se vênia para transcrever a análise de COELHO (2009b, p. 418 e 419):
QUINTA PARTE – SOCIEDADE LIMITADA E OUTROS TEMAS (...)
2.2. Responsabilidade Ilimitada (...)
O direito positivo brasileiro é bastante insatisfatório na disciplina da matéria. Em primeiro lugar, deveria dispensar aos sócios da limitada tratamentos diferentes, segundo o vínculo de interesse que os une à sociedade. Os empreendedores majoritários - quer dizer, os que interferem na gestão da empresa - deveriam responder ilimitadamente perante os credores não negociais da sociedade, mas não assim os investidores minoritários - isto é, aqueles que apenas prestam capital, e não participam, nem indiretamente, da administração dos negócios sociais. Essa salutar distinção, com efeito, apenas se encontra na disciplina legal dos débitos fiscais da limitada.
Por outro lado, seria conveniente descartar as inapropriadas referências à desconsideração da personalidade jurídica (teoria menor), ao proteger consumidores (CDC, art. 28), estruturas do livre mercado (Lei n. 8.884/94, art. 18) e valores ambientalistas (Lei n. 9.605/98, art. 4-). Nesses casos, e nos demais relacionados a titulares de direito à indenização, o tecnologicamente correto seria a responsabilização ilimitada dos sócios empreendedores majoritários, sem referência à desconsideração da personalidade jurídica.
Aos créditos trabalhistas, deveria a lei também dispensar-lhes atenção especial. Como os empregados não têm, realisticamente falando, condições de negociar a incorporação aos seus salários de uma taxa de risco relacionada à limitação da responsabilidade dos sócios, o direito do trabalho deveria ser alterado para que os empreendedores majoritários respondessem pelas obrigações da sociedade oriundas de vínculo empregatício. A Justiça do Trabalho, mesmo sem previsão legal que a autorize, tem executado em bens do patrimônio dos sócios, indistintamente, as condenações decretadas à sociedade limitada.
Dentre os credores não negociais, o direito positivo cuida apenas do credor tributário e da Seguridade Social. Apenas eles podem invocar, na proteção de seus créditos, tratamento que afaste a regra da limitação da responsabilidade dos sócios, ao total do capital social subscrito e não integralizado. (...)
Em face da precariedade dos nossos textos legislativos, não se pode afirmar que o direito brasileiro tutele, integral e satisfatoriamente, os credores não negociais da sociedade limitada. (...)
Na tutela dos direitos dos consumidores, na proteção da concorrência e na repressão a práticas lesivas ao meio ambiente, a imputação da responsabilidade aos sócios deve atender aos pressupostos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Os empregados e demais credores não negociais, por fim, enquanto não editada regra que os beneficie expressamente, devem ter os seus direitos creditórios, perante a sociedade limitada, sujeitos à regra da autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade dos sócios. (grifos nossos)
Diante da lacuna legislativa, exsurge o uso indiscriminado da expressão “desconsideração da personalidade jurídica” para tratar de toda e qualquer situação em que o patrimônio dos sócios e/ou administradores é afetado pelas dívidas da sociedade, com os delineamentos que serão abordados no tópico 3.
2.4. FUNDAMENTOS PARA O REGIME DE LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DOS SÓCIOS
Sabe-se que o risco de insucesso é inerente a qualquer atividade empresarial. Se o insucesso de certa empresa ensejasse o sacrifício da totalidade do patrimônio dos empreendedores e investidores, como consequência natural, os detentores de capital não se sentiriam incentivados a empregar suas disponibilidades financeiras na atividade empresarial, com o receio de perder muito mais que o capital investido.
O regime de limitação da responsabilidade subsidiária dos sócios foi concebido como instrumento jurídico de estímulo para a expansão da atividade empresarial.
Nesta esteira, leciona COELHO:
Justifica-se a sistemática de submeter as perdas dos sócios ao limite do investimento, transferindo o prejuízo para os credores da sociedade, na medida em que ao direito positivo cabe, por meio do controle dos riscos, motivar os empreendedores na busca de novos negócios. Se todo o patrimônio particular dos sócios pudesse ser comprometido, em razão do insucesso da sociedade empresária, naturalmente os empreendedores adotariam posturas de cautela, e o resultante poderia ser a redução de novas empresas, especialmente as mais arriscadas. (2009b, p. 29)
De fato, o cenário de maior risco para os investidores implica na migração de seus investimentos para destinos mais seguros, como, por exemplo, os das aplicações financeiras, especulação imobiliária, etc. O maior prejudicado, neste contexto, seria a sociedade como um todo, uma vez que são nas empresas que se produzem os bens e serviços de consumo, os quais, mais do que satisfazer as necessidades ou até futilidades dos consumidores, geram renda para os trabalhadores e para outras empresas, assim como arrecadação para o Estado.
Além disso, a inexistência de regras limitadoras de perdas e responsabilidades leva o investidor-empreendedor a ampliar suas margens de lucros empresariais para compensar o elevado risco de insucesso, o que acarretaria a elevação dos preços dos bens ou serviços fornecidos no mercado.
Isso sem mencionar o prejuízo à competitividade no comércio internacional com os países cuja legislação ponha limites às perdas e responsabilidades dos sócios, especialmente considerando o atual mundo globalizado no qual as novas tecnologias de produção, de informação e de comunicação vêm reduzindo as barreiras naturais de tempo e espaço de modo a promover a integração dos mercados globais.
Portanto, a ratio essendi da limitação da responsabilidade dos sócios e acionistas é a de criar estímulos para a exploração das atividades econômicas, tendo como beneficiários finais os próprios consumidores (com a expansão dos bens de consumo e a ampliação da concorrência), os trabalhadores (com a criação de mais postos de emprego), os fornecedores de insumos e o Estado (com a arrecadação de tributos).