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Exposição e análise crítica da teoria eclética de Enrico Liebman: a necessária releitura das condições da ação

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01/03/2013 às 19:46
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4 CRÍTICA À TEORIA ECLÉTICA E ÀS CONDIÇÕES DA AÇÃO

Conquanto tenha sido aceita pela maior parte da doutrina e adotada pelo Código de Processo Civil, a Teoria Eclética não logrou a aceitação unânime dos estudiosos da Ciência Processual, sendo alvo de inúmeras críticas. Ainda que seduza à primeira vista, seus postulados não resistem a um exame mais criterioso e aprofundado; a plena aceitação de suas propostas leva a conclusões que, no mínimo, desafiam a lógica jurídica.

É possível, considerando-se apenas a aplicação prática da referida teoria no cotidiano forense, que se façam algumas adaptações à construção original de Liebman, bem como ao tratamento legal da matéria, de modo a torná-la aceitável. Cientificamente, porém, é bastante complicado – quiçá impossível – defender a existência da Teoria Eclética; o melhor seria extingui-la definitivamente, prosseguindo na árida busca por alguma corrente dogmática que explique de forma satisfatória a natureza jurídica do direito de ação.

A primeira crítica que pode ser dirigida à teoria em questão toma por base uma contradição interna na exposição de Liebman, isto é, a defesa de uma ideia que discrepadaquilo que o próprio autor afirma. Como se disse no tópico 2, supra, o processualista italiano define a ação processual como um direito subjetivo público,dirigido ao Estado, portanto, para logo em seguida dizer que este último não se encontra vinculado a tal direito.

O problema é que um direito subjetivo, por sua própria constituição ontológica, tem por base a exigibilidade de determinada prestação ou abstenção; o direito que não é dotado de atributividade, isto é, da possibilidade de seu titular exigir a prestação ou abstenção a que se vinculou a contraparte, não é direito subjetivo. A concepção de um direito subjetivo sem um dever correspondente a ser cumprido pelo outro sujeito da relação jurídica repugna os fundamentos da Teoria Geral do Direito. Liebman até poderia, se fosse o caso, defender a tese de que o direito de ação possui natureza sui generis, dirigindo-se ao Estado sem vinculá-lo; seu pensamento, assim, seria pelo menos internamentecoerente. Entretanto, dizer que a ação processualconsiste num direito subjetivo e que, ao mesmo tempo, seu destinatário não está a ele obrigado, é um sensível contrassenso.

Ademais, a própria ideia da não vinculação estatal à prestação jurisdicional(uma vez provocada a jurisdição, é claro), sob o frágil argumento de que o Estado-juiz também possui direto interesse na pacificação social, é de difícil sustentação.Como bem salienta o professor Moacyr Amaral Santos (2011, p. 192), não há incompatibilidade alguma entre o interesse estatal na resolução pacífica dos conflitos e seu dever de manifestar-se quando invocado.

Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos Cintra e Cândido Rangel Dinamarco (2012, p. 315), em defesa de Liebman, afirmam que se o Estado estivesse vinculado ao direito de ação ter-se-ia, nos casos de ação penal pública (promovida pelo Ministério Público), direito do Estado contra o próprio Estado. Não lhes assiste razão; o destinatário do direito da ação éna verdadeo Estado-juiz, ente não personificado (DIDIER JÚNIOR; GOMES JÚNIOR; WAMBIER, 2007, p. 560), enquanto seu titular, no caso da ação penal pública, é o Ministério Público – entidade completamente diferente, que sequer integra, propriamente, a estrutura do Poder Judiciário[9].

O próximo ponto problemático da Teoria Eclética é o que se refere à natureza jurídica da decisão judicial que reconhece a carência de ação. Para Liebman, conforme a exposição do tópico 3, supra, só há verdadeiro exercício da jurisdição na sentença que se debruça sobre o mérito da causa, afirmando a procedência ou não do pedido do autor; a que declara a inocorrência das condições da ação, dessa forma, não é jurisdição – e, como necessária consequência, não foi proferida no âmbito de um processo.

Tem-se, portanto, uma verdadeira vexata quaestio diante da decisão judicial que verifica a carência de ação: apesar de ter havido provocação do Judiciário, não se poderia dizer que o ajuizador da demanda exerceu direito de ação, posto que ausentes suas condições; jurisdição, igualmente, não teria ocorrido, já que para Liebman só é jurisdicional a sentença que decide o mérito da causa; além disso, tais atividades não teriam se desenvolvido em um processo, mas sim em algo (?) de caráter diverso. Explicar a natureza jurídica de todos esses atos, como se percebe, seria uma tarefa demasiadamente difícil, exigindo uma completa reformulação de toda a Teoria Geral do Processo.

Liebman, entretanto, não o faz; diante de todos esses aspectos polêmicos de sua proposta científica, o processualista italiano silencia.Não nos fornece respostas sobre qual é a atividade estatal desempenhada quando da verificação das condições da ação, já que jurisdição não é, tampouco explica o que provoca a atuação do Estado-juiz nos casos de carência de ação, uma vez que esta última, nessas situações, sequer existiu. Ademais, também fica sem resposta a qualificação que deve ser atribuída ao conjunto de atos que culminou com a sentença terminativa que declara o ajuizador da demanda carente de ação, pois processo não pode ser.

O silêncio de Liebman é, na verdade, extremamente eloquente: expressa, em suma, que não há resposta plausível para tais questionamentos.

Ressalte-se, comodito no tópico 3, supra, que a noção de não enxergar processo, ação e jurisdição nos casos de carência de ação é, dentro do sistema da Teoria Eclética, coerente; entretanto, como restou demonstrado nos parágrafos acima, tal concepção é insustentável diante dos imperativos da Ciência Processual.

Outro aspecto controverso da Teoria Eclética é o que concerne à profundidade da cognição judicial a ser desempenhada pelo juiz no momento da verificação da ocorrência das condições da ação. Para Liebman, estas devem ser aferidas pelo juiz em face do conjunto fático-probatório, e não somente diante das alegações do autor, o que leva à conclusão de que até mesmo depois de toda a fase de instrução e produção de provas o ajuizador da demanda poderá ser declarado carente de ação. O princípio da economia processual, que norteia as condições da ação, perde sentido em uma situação assim. Além disso, perceba-se que a efetiva prova da real ocorrência das referidas condições, isto é, que o autor verdadeiramente reúne todas elas, implica, necessariamente, a prolação de uma sentença de mérito que lhe seja favorável.

Bastante elucidativo é o seguinte exemplo: se o autor é mesmo credor e o réu devedor na relação jurídica material (legitimidade ad causam), se a dívida genuinamenteexiste, é exigívele não há outro meio de obter seu pagamento (interesse de agir) e se o pedido feito não é proibido pelo Direito (possibilidade jurídica do pedido), o Estado-juiz terá de decidir a lide em favor do autor.Os professores Ovídio Baptista da Silva e Fábio Gomes (2009, p. 107 e s.) bem afirmam que não conseguem imaginar como, diante de um caso em que o autor verdadeiramente comprove que atendeu todas as condições da ação, o juiz possa prolatar uma sentença de improcedência. A prova das condições é uma questão de mérito, que leva à detalhadainvestigaçãoda relação jurídica material levada à análise do Judiciário. Voltando ao caso do credor que ingressa em juízo com uma ação de cobrança: se fosse provado que a dívida por ele exigida já se encontrava prescrita, o autor, na ótica de Liebman, receberia uma decisão que o reconhecesse carente de ação (por impossibilidade jurídica do pedido/falta de interesse de agir), e não uma sentença de improcedência.

Aceitando-se sem ressalvas os postulados da Teoria Eclética, portanto, todas as decisões judicias denegatórias poderiam ser reduzidas a meros pronunciamentos de carência de ação. Afinal, após a instrução probatória, sempre que restasse provado que o pedido do autor é improcedente, seria possível encaixar a fundamentação da improcedência na falta de alguma das condições da ação. Isso porque, de certa forma, todos os casos de sentenças denegatórias podem ser enquadradas como reconhecedoras da impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que não é juridicamente possível conceder tutela jurisdicional ao direito material do autor que, segundo as provas, não tem razão.

Em resposta a essa grande incongruência dos ensinamentos de Liebman a doutrina nacional desenvolveu a chamada Teoria da Asserção, segundo a qual as condições da ação devem ser aferidas em face do que o autor afirmou na petição inicial – e não a partir do que restou provado nos autos, como queria o processualista italiano. Essa corrente dogmática ganhou grande apoio no meio científico e nos pretórios pátrios, que a adotam plenamente. O próprio Superior Tribunal de Justiça já consolidou sua aplicabilidade, ao estabelecer que “como se sabe, aplica-se a teoria da asserção em relação às condições da ação”[10].De fato, no âmbito do Direito Positivo e do cotidiano forense, a Teoria da Asserção é a melhor opção para atender ao comando do art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

Isso porque, de acordo com o caput do art. 268, a decisão que reconhecer a carência de ação não produz coisa julgada material – e este é, sem dúvida, um dos dispositivos mais ilógicos de toda a legislação processual.Afinal, o espeque teórico das condições da ação de Liebman é, justamente, a promoção da economia processual, o impedimento a que ações sem quaisquer chances de êxito tomem tempo e recursos do Estado-juiz. O legislador brasileiro encontrou uma forma bastante peculiar de fazer isso: permitindo que o autor, declarado carente de ação por decisão judicial, ajuíze a mesma demanda – partes, pedido e causa de pedir idênticos – quantas vezes quiser. Dizer que tal solução foi incoerentesoa quase como um elogio.

Adotando a Teoria Eclética inteiramente, isto é, aferindo as condições da ação em face das provas produzidas, chegar-se-ia à inevitável conclusão de que jamais se produziria coisa julgada material nas decisões de improcedência do pedido do autor. Isso porque a prova das condições da ação – exigida por Liebman – diz respeito ao mérito da causa; portanto, se o juiz lhe negasse a tutela jurisdicional (já que tal decisão poderia ser reduzida à declaração de ausência de uma das condições da ação, no mínimo à impossibilidade jurídica do pedido, como se argumentou acima)seu pronunciamento não produziria coisa julgada material. O caos jurídico reinaria; a criatividade do legislador pátrio, somada às incongruências de uma teoria extremamente falha, seria capaz de destruir quase todo o sistema jurídico brasileiro. A Teoria da Asserção, dessa forma, é a melhor saída, a nível prático, para solucionar esse enorme problema[11].

Cientificamente, entretanto, nem mesmo essa corrente dogmática é capaz de solucionar os vícios da Teoria Eclética.Na verdade, não há diferença ontológica alguma entre o pronunciamento judicial que declare a inocorrência das condições da ação e o que julgue improcedente o pedido do autor. Cumpre, novamente, trazer à baila o entendimento de Fredie Didier Júnior (p. 20)[12], segundo o qual o reconhecimento da carência de ação é, basicamente, um julgamento antecipado do conflito, evidenciando, antes da sentença de mérito, que o autor não possui direito material a ser tutelado. Em outras palavras, diz-se ao ajuizador da demanda que ele não é titular de uma pretensão material juridicamente protegida, apta a chamar sobre si a proteção do Estado-juiz.Constatar a ilegitimidade ativa do autor (isto é, o fato de que ele não é titular da relação jurídica material deduzida em juízo), por exemplo, é exatamente a mesma coisa de constatar que ele não possui, naquele caso, direito substancial algum a ser tutelado.O mesmo se diga da impossibilidade jurídica do pedido ou da falta de interesse processual.

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O problema da verificação das condições da ação, como se vê, é relativo ao mérito da causa; afinal, como é lição comezinhada Teoria Geral do Processo, o provimento judicial que reconhece a inexistência de direito que reclame tutela jurisdicional é decisivo do mérito.

Fica difícil, assim,diferenciar condições da ação e mérito da causa; na Teoria Eclética de Liebman tal diferenciação é literalmente impossível, já que o processualista italiano exige a efetiva prova das condições – e isso, como visto, culmina na própria resolução da lide. O único meio possível de diferenciar condições e mérito, portanto, é fornecido pela Teoria da Asserção; as condições seriam dados do plano material aferidos diante das afirmações do autor, enquanto o mérito consistiria no conjunto dos mesmos dados, só que verificados diante das provas produzidas. Distinguir condições e mérito através de um critério tão frágil é totalmente desarrazoado; a relação entre esses dois conceitos seria marcada, no mínimo, por um enorme grau de indefinição, haja vista que se aquilo que foi afirmado pelo autor – referente às condições da ação – fosse posteriormente provado, ter-se-ia a transmutação das condições emmérito após a instrução probatória. Se, todavia, o autor não fosse capaz de provar o que disse, as condições da ação permaneceriam apenas em estado potencial, abstrato, baseadas somente nas (falsas) alegações do ajuizador da demanda. Perceba-se o imbróglio jurídico criado por essa concepção.

Melhor seria, portanto, extinguir as referidas condições como categoria processual autônoma, eliminando-as do ordenamento pátrio. Essa tese é reforçada pelo fato de que todas elas são conceitos que, necessariamente, pertencem ao Direito Material. É no plano substancial que se descobrem os titulares da relação jurídica, que se verifica se o direito material alegado pelo autor é suscetível de ser tutelado pelo Estado-juiz e que se averigua a possibilidade de o provimento jurisdicional conduzir o ajuizador a uma posição jurídica mais vantajosa que a anterior. Todos esses dados, repita-se, não pertencem à esfera processual, mas sim à material – e é em face desta que eles adquirem sentido; são, portanto, questões de mérito.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As condições da ação, diante do que foi exposto, não merecem subsistir como categoria processual autônoma; elas são, claramente, problemas de mérito.Sua existência, como restou demonstrado, conduz a irrespondíveis questionamentos, como os que se referem à natureza do provimento judicial que reconhece a carência de ação e ao caráter do conjunto de atos ocorridos entre o ajuizamento da demanda e a sentença terminativa. Os equívocos cometidos pelo legislador pátrio somam-se às inconsistências científicas da Teoria Eclética e criam um quadro verdadeiramente vergonhoso no Direito Processual. O direito de agir é, em sua essência, incondicional; não há como admitir que se possa declarar, depois de impetrada uma ação, que o seu sujeito ativo é dela carecedor – menos ainda quando os elementos que impuseram essa carência são, como explicitado, referentes ao mérito da causa.

As referidas condições, portanto, devem ser urgentemente eliminadas do ordenamento jurídico brasileiro, de forma a conferir um pouco mais de coerência e lógica ao nosso sistema processual.

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Sobre o autor
Thiago de Lucena Motta

Estudante do curso de graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Editor-geral da Revista Jurídica FIDES (Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOTTA, Thiago Lucena. Exposição e análise crítica da teoria eclética de Enrico Liebman: a necessária releitura das condições da ação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3530, 1 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23839. Acesso em: 23 nov. 2024.

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