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O processo penal no Estado Democrático de Direito

17/03/2013 às 09:44
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A dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a necessidade de se reconhecer ao indivíduo a condição de sujeito de direitos na relação processual, e não objeto de manipulação do Estado.

O modelo constitucional de processo: garantias constitucionais do processo penal

No Estado Democrático de Direito, o poder político estatal é juridicamente limitado, isto é, apenas pode ser exercido dentro de determinadas restrições definidas pela ordem jurídico-política constitucional, marcada pelas dimensões de legalidade, separação de poderes e proteção aos direitos fundamentais.

Esse modelo de organização política de poder pressupõe que os indivíduos possuem certos direitos indispensáveis à própria existência e ao desenvolvimento da personalidade humana, que constituem verdadeiras barreiras de proteção contra a utilização arbitrária do poder do Estado. [1] O indivíduo é considerado como efetivo sujeito de direito em face da comunidade e do próprio Estado, cuja atividade deve estar norteada pelos princípios e garantias assegurados na Constituição.

A atuação repressiva do Estado em face dos indivíduos que praticam condutas tipificadas como crimes é uma atividade indispensável para a manutenção da ordem jurídico-política. Porém, no Estado Democrático de Direito, o exercício do poder punitivo estatal é juridicamente limitado pela instituição de amplas garantias que devem nortear a edificação e a aplicação da política criminal, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, o juiz natural, a motivação das decisões, entre outras.

O processo penal constitui, nesse contexto, o instrumento pelo qual o Estado exerce o seu poder punitivo, buscando a aplicação da pena ao autor da infração. Sobre a relação entre delito, pena e processo, Aury Lopes Júnior destaca que: “Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.” [2]

Por outro lado, o processo também pode ser visualizado sob o aspecto da tutela dos direitos fundamentais, ou seja, como uma garantia do indivíduo de que não será submetido a uma pena sem a observância dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Com efeito, em uma ordem constitucional fundada na instituição de amplas garantias e direitos individuais, como é o caso do Estado brasileiro, o processo penal deve necessariamente se desenvolver visando à efetivação desses postulados.

Segundo a lição de José Frederico Marques, o Direito Processual é um dos ramos das ciências jurídicas que tem o contato mais íntimo e próximo com os preceitos constitucionais, já que regula o exercício da atividade jurisdicional, uma das funções fundamentais do Estado. Sendo a jurisdição uma atividade específica de um dos órgãos da soberania nacional, isto é, do Poder Judiciário, não há dúvidas de que a atividade estatal realizada no processo deve buscar uma constante aproximação com os textos constitucionais. [3]

Como o conjunto dos princípios básicos do processo penal está delineado na Constituição, a Justiça Criminal deve necessariamente ser construída em harmonia com os princípios e valores éticos e políticos que informam a ordem jurídico-constitucional. O legislador ordinário está submetido a um regime de estrita legalidade, sendo a conformidade com a Constituição uma condição necessária para a legitimidade de qualquer norma jurídica:

Assentando-se na Constituição, o conjunto de princípios básicos do processo penal, claro está que a Justiça Criminal na organização de seus quadros e no funcionamento de seus órgãos, tem de receber direto influxo dos valores éticos e políticos que informam a ordem jurídico-constitucional.

(...) Uma vez que nossa Constituição foi elaborada em função dos ideais democráticos do Estado de Direito, é preciso situar as fontes primeiras da ordem processual numa linha de princípios que não destoe desse sentido político de toda a nossa organização estatal. [4]

Daí pode-se inferir que há uma correlação necessária entre o sistema político adotado e o conteúdo do direito processual penal. Em um Estado Democrático de Direito, o processo penal deve ser visualizado a partir dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição, ou seja, deve atuar como instrumento a serviço da ordem constitucional. A esse respeito, Geraldo Prado esclarece:

(...) a edificação de qualquer política criminal em um estado democrático está condenada à uma incoerência normativa se for desenvolvida à margem do nível jurídico superior e não considerar que o respeito à dignidade da pessoa humana é o princípio e fundamento do sistema político democrático, único espaço comum para qualquer pacto democrático. [5]

Assim, a sanção punitiva deve necessariamente ser precedida de um processo que não seja um processo qualquer, mas um processo de partes, em que seja assegurada ao indivíduo submetido à pretensão punitiva a efetividade dos direitos e garantias fundamentais constantes na Constituição.


Posição do investigado: sujeito de direitos e não objeto de investigação

O processo penal não se destina apenas a disciplinar a jurisdição penal, mas também a preservar os direitos e garantias fundamentais. A exigência de um procedimento específico para a realização da pretensão punitiva estatal é, principalmente, uma forma de resguardar a liberdade do indivíduo contra indevidas restrições advindas do Estado. Quanto ao tema, Cristiane da Rocha Corrêa afirma:

O processo penal deixa de ser um mero instrumento pelo qual se tutela o direito de punir do Estado e passa a ser também, e, sobretudo, o instrumento pelo qual se busca tutelar a liberdade jurídica do réu, por intermédio de regras que assegurem a efetividade dos direitos fundamentais garantidos a todos os indivíduos, mesmo aos submetidos à justiça penal. [6]

No mesmo sentido, confira a lição de Roberto Delmanto Junior:

Ocorre que, tratando-se da liberdade humana, o bem mais precioso que possuímos além de nossas vidas, entendemos que o processo penal deve ser visto não só como instrumento de distribuição de justiça criminal, um instrumento que viabiliza a busca da verdade e a aplicação da pena ao infrator penal (nulla poena sine iudicio), mas, sobretudo, como instrumento de tutela da dignidade e liberdade humanas. [7]

Com efeito, a busca da eficácia do processo penal deve ser entendida de um lado como eficiência da persecução penal e, de outro, como efetividade das garantias, de forma que os culpados sejam punidos e os inocentes sejam protegidos. Essa é a nota distintiva do processo penal, conforme anota Luigi Ferrajoli:

O que faz do processo uma operação distinta da justiça com as próprias mãos ou de outros métodos bárbaros de justiça sumária é o fato que ele persegue, em coerência com a dúplice função preventiva do direito penal, duas diferentes finalidades: a punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes. É essa segunda preocupação que está na base de todas as garantias processuais que circundam o processo e que condicionam de vários modos as instâncias repressivas expressas pela primeira. [8]

A persecução penal deve conciliar da melhor maneira possível os valores segurança e justiça, mediante a estrita observância das garantias constitucionais, de maneira que o processo penal seja, sobretudo, uma garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado. Esse é o entendimento de Cristiane da Rocha Corrêa, confira:

É necessário, portanto, que se conciliem na persecução penal os escopos de segurança e justiça, indissociáveis em uma concepção atual de processo penal. O processo não deve servir à sobreposição dos direitos do Estado contra o cidadão, mas sim como garantia do cidadão, até mesmo contra o Estado. O Estado deve ser o maior interessado na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e de outros valores cuja preservação é imposta pela ordem constitucional, além do simples interesse em que o processo se desenvolva e encontre o seu termo de forma satisfatória. [9]

O desenvolvimento do processo penal em um Estado Democrático de Direito impõe uma crescente valorização do sujeito passivo do processo frente ao Estado. A dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a necessidade de se reconhecer ao indivíduo a condição de sujeito de direitos na relação processual, e não objeto de manipulação do Estado. Busca-se tutelar, por meio do processo penal, a liberdade processual do imputado, considerado como efetivo sujeito no processo.

Nesse sentido, Aury Lopes Júnior afirma: “A proteção do indivíduo também resulta de uma imposição do Estado Democrático, pois a democracia trouxe exigências de que o homem tenha uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sacrificar ad nutum.” [10]

Destarte, o sujeito passivo da atuação penal estatal, seja na condição de investigado, seja na condição de acusado, deve necessariamente ser reconhecido como sujeito de direitos, ocupando uma posição de destaque enquanto parte, com verdadeiros direitos e deveres. Daí advém uma ampla possibilidade conferida ao indivíduo sujeito à atuação repressiva estatal de se opor à pretensão punitiva, na defesa de seu status libertatis, bem assim de exigir do Estado o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetivo sujeito no processo.


Necessidade de adaptar o Código de Processo Penal de 1941 à Constituição Federal de 1988

A relação processual penal deve necessariamente surgir e desenvolver-se em consonância com a estrutura democrática estabelecida pela Constituição. Em conseqüência, toda a legislação processual penal deve estar em harmonia com os preceitos previstos na Carta Constitucional.

Para tanto, vislumbra-se imprescindível uma nova leitura dos dispositivos processuais penais, em conformidade com a Constituição, buscando a maior eficácia possível das garantias constitucionais na aplicação da lei penal. A necessidade de adequação da legislação processual penal à Carta Constitucional é evidente no que se refere ao Código de Processo Penal vigente (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), instituído em um momento sócio-político em que prevalecia um sistema penal autoritário.

O Código de Processo Penal de 1941 surgiu na ditadura Vargas, em pleno Estado Novo, e na vigência da Constituição de 1937, imposta de forma unilateral e autoritária. Destaca-se, ainda, que o Código de Processo Penal sofreu influência direta da legislação processual penal italiana vigente na época, o Código Rocco, diploma processual fascista editado por Mussolini. [11]

Assim, é evidente que muitos dispositivos constantes no Código de Processo Penal de 1941 destoam do ideal democrático adotado na Constituição Federal de 1988. Destarte, o Código de Processo Penal precisa ser interpretado a partir dos princípios e garantias estabelecidos na Carta Constitucional, ou seja, deve adaptar-se e conformar-se com a Constituição, fundamento de validade de todas as leis. A respeito do tema, confira a lição de Aury Lopes Júnior:

1. (...) é imprescindível marcar esse referencial de leitura: o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e não o contrário. Os dispositivos do Código de Processo Penal é que devem ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritivo para se encaixar nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 1941. [12]

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Nesse contexto de inadequação principiológica da legislação processual penal frente à Constituição Federal de 1988, é imperativa duas ordens de movimento: a reforma do Código de Processo Penal vigente e a interpretação conforme a Constituição na aplicação da lei penal pelo Judiciário.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram aprovadas diversas mudanças pontuais na legislação processual penal, tanto em relação ao próprio Código de Processo Penal, mas também no tocante à legislação extravagante. Porém, um considerável avanço rumo ao processo penal democrático ocorreu em meados de 2008, com a aprovação parcial da reforma processual penal resultado dos trabalhos da Comissão da reforma, constituída pelo Ministério da Justiça e presidida pela eminente professora Ada Pellegrini Grinover.

Apesar de desejável um projeto de Código de Processo Penal inteiramente novo, que superasse a inconformidade constitucional com a completa harmonia do novo sistema, optou-se por reformas parciais, sob o fundamento de que uma reforma total seria inexeqüível operacionalmente. Através de reformas que tomam por base institutos, e não dispositivos isolados, tentou-se superar os obstáculos da atividade legislativa, mantendo-se a unidade e a homogeneidade do sistema. [13]

Com efeito, as dificuldades de aprovação de uma reforma processual penal são inúmeras, uma vez que estão envolvidos interesses de diversos ramos da atividade estatal. Não obstante, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional projeto de um novo Código de Processo Penal (PLS 156/09), que pretende superar esses desafios com a edição de um regramento que atenda às mudanças de paradigma que norteiam a Constituição Federal em vigor.

Porém, deve-se destacar que as mudanças na legislação processual penal devem ser analisadas sempre à luz dos direitos e garantias fundamentais constantes na Constituição. Qualquer alteração que implique em um conflito com os postulados democráticos previstos no regramento Constitucional devem ter sua aplicação afastada, em todo ou em parte, da mesma maneira que os primitivos dispositivos do Código de Processo Penal em dissonância com o modelo de processo penal consagrado.

Por isso, a atividade judiciária possui uma importância fundamental no movimento de adequação do Código de Processo Penal à Constituição, uma vez que incumbe ao julgador a tarefa de efetivar os direitos fundamentais previstos na Carta Magna. Dessa forma, em determinados momentos o juiz deverá promover a adaptação das normas processuais penais, conforme este sistema, e em outros deverá afastar a aplicação daquelas normas que sejam incompatíveis com a Constituição. [14]

Pela propriedade com que tratou o tema, transcrevo o seguinte trecho de lavra da professora Ada Pellegrini Grinover, verbis:

2. É fato notório que o Código de Processo Penal de 1941 se encontra totalmente superado pela realidade dos novos tempos, que exige um estatuto que prime pela eficiência, evitando formalismos e procrastinações inúteis, de modo a tornar o processo penal mais simples, célere, desburocratizado e aberto. Por outro lado, a Constituição de 1988 introduziu no sistema penal princípios e regras com as quais o Código de Processual de 1941 entrou em conflito, de modo que muitas de suas normas perderam eficácia em face da nova ordem jurídica ou devem ser interpretadas de modo diverso do tradicional, sob pena de não se coadunarem com a Constituição. [15]

Ademais, segundo o entendimento da jurista, a reforma processual deve também buscar alterações na estrutura administrativa e gerencial dos órgãos da justiça penal e do pessoal de apoio, bem como assegurar o instrumental técnico necessário para a operacionalidade do sistema. Com efeito, a crescente incorporação dos valores constitucionais não pode vir dissociada da previsão de estruturas procedimentais que garantam a sua efetiva implementação no sistema processual penal pátrio.


Notas

[1] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 28.

[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.23.

[3] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 89-90.

[4] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. I, Campinas: Bookseller, 1997. p. 81.

[5] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade das Leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 28.

[6] CORRÊA, Cristiane da Rocha. O princípio do contraditório e as provas irrepetíveis no inquérito policial. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 60. São Paulo: Revista dos Tribunais, maio-junho 2006. p. 224.

[7] DELMANTO JUNIOR. A lealdade na busca de provas no processo penal. In: A renovação processual penal após a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 249.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 556.

[9] CORRÊA, Cristiane da Rocha. O princípio do contraditório e as provas irrepetíveis no inquérito policial. p. 225.

[10] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. p. 11.

[11] TOVO, Paulo Cláudio; TOVO, João Batista Marques. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 122-123. 

[12] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. p. 10.

[13] GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do Código de Processo Penal. In: Justilex. Ano III. nº 33. Set/2004. p. 16.

[14] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade das Leis Processuais Penais. p. 48.

[15] GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do Código de Processo Penal. p. 16.

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Sobre a autora
Vanessa de Souza Farias

Graduada em direito pela Universidade de Brasília. Pós-Graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Analista processual no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Vanessa Souza. O processo penal no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3546, 17 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23949. Acesso em: 29 nov. 2024.

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